CRISE CLIMÁTICA

Idosos resistem a sair de suas casas apesar dos riscos durante as enchentes no Rio Grande do Sul

Resgates das faixas etárias mais velhas exigem paciência e diálogo por parte dos familiares e das equipes de socorro

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"Os idosos agem assim. São firmes, decididos, teimosos. Se sentem protegidos no seu ambiente, mesmo que vivam em solidão absoluta e só recebam visitas eventuais", diz psiquiatra - Foto: Carlos Messalla

Deitado, escutando radinho de pilha e ouvindo o noticiário da enchente, um senhor de 71 anos, ouvia a entrevista da psiquiatra do Hospital São Lucas da PUCRS e professora da Faculdade de Medicina daquela universidade, Nina Rosa Furtado.

Foi logo depois do resgate de uma idosa de 97 anos de um prédio alagado do bairro Sarandi, em Porto Alegre. Ela resistiu o que pôde. Não queria sair de jeito nenhum. Disse que tinha comida, café, chá, bolacha. Não precisava de socorro nenhum, não queria ir para outro lugar. Só ficar perto de suas coisas. "Aqui é meu mundo."

Não teve jeito. Com a pressão de familiares que estavam em um bote dos bombeiros, a senhora foi forçada a sair. Levada no colo, saiu contrariada.

Nina Rosa Furtado, entrevistada logo depois do resgate, disse que o comportamento era peculiar. A idosa está enraizada naquele ambiente, se sentia segura ali e nem a enchente era capaz de convencê-la a sair. Não tinha a extensão dos perigos que corria.

"Os idosos agem assim. São firmes, decididos, teimosos. Se sentem protegidos no seu ambiente, mesmo que vivam em solidão absoluta e só recebam visitas eventuais. Ali, eles sabem que têm a sua televisão, a sua cama, o seu chá, as suas coisas. Eles não sabem se mover fora daquele bolsão. Mesmo diante de uma catástrofe se sentem protegidos do resto do mundo", diz a psiquiatra.

Furtado também discorreu sobre esta fase da vida em que o exterior ao próprio lar é uma ameaça à sua rotina. "No seu habitat, o idoso sabe a hora certa de tudo: de tomar remédios, de ver os seus programas na televisão, de deitar e seguir em frente. Por isso, talvez, ocorra tanta resistência nos resgates", afirmou.

Os casos de resgate destas pessoas são complexos. Exigem muita paciência, diálogo, explicações demoradas, como foi feito com uma médica idosa de 75 anos do bairro Menino Deus. Não queria sair. Relutou, mas finalmente aceitou os argumentos do filho. Acabou indo para um hotel da zona Sul.

Deixou os seus companheiros no apartamento: seus gatos de estimação. Mas não sossegou enquanto não os retirou de lá. Depois de várias tentativas, pedidos de socorro ao filho com ligações uma atrás da outra, salvou os seus animaizinhos, que foram acabar numa clínica.

A idosa não se acalmou. Ainda liga de hora em hora para o filho exigindo voltar para casa. "Preciso ter calma nesta hora", relata o filho, que também é médico.

Outro caso interessante – além de centenas de outros que surgem na imprensa a todo momento – é o de um senhor, Alfredo de Souza Lima, 98 anos. É a segunda vez que ele atravessa uma inundação histórica — estava presenta nas enchentes históricas de Porto Alegre em 1941 — fora outras que testemunhou, com amplitude menor.

"Naquela época, 1941, a cidade alagou lentamente. Subiu devagar. Não teve essa mortandade que tem como essa de agora. O que eu me lembro, que eu via falar, morreu uma pessoa eletrocutada que parece que caiu na água", diz o idoso.

Na cheia de agora, em 2024, ele pela segunda vez teve sair da sua casa. Partiu com a filha para permanecer, temporariamente, em um abrigo do bairro Bom Jesus, na zona Norte da Capital.

Causam comoção também os casos de pessoas com mais de 100 anos, socorridas em Porto Alegre e em cidades devastadas do Interior. Uma senhora de 103 anos foi resgatada com o companheiro, também idoso, em Porto Alegre, como mostra um vídeo publicado nas redes sociais pelos familiares. Um jogador do Inter, Thiago Maia, também resgatou uma senhora de 90 anos de um apartamento prestes a inundar. Vídeo viralizou na Internet. Levou a senhorinha no colo, com a água na barriga.

As histórias são tantas e tão dramáticas que chegam a assustar o velhinho de 71 anos lá do início. Ele vai continuar escutando no seu radinho de pilha os dramas que vão se sucedendo à sua frente. Não se conforma com os destruidores do meio ambiente, com as leis que protegem a expansão indiscriminada do agronegócio, com a falta de respeito aos pobres, aos índios, e com a negligência de políticos.

"Não sei como vai se resolver tudo isso e nem quando tudo acabará", desabafa.


Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Katia Marko