É uma das missões das novas gerações: criar pontes com essa ancestralidade antes que ela se perca
* por Caroline Apple
Esta coluna nasce com o propósito claro de dar visibilidade e valorizar a interface brasileira dos psicodélicos. Isso significa colocar uma lupa na produção nacional e em todos os agentes que estão ajudando a construir essa história que apresenta nuances extremamente subjetivas e até mesmo controversas em meio a pluralidade cultural do Brasil.
Uma jornada ainda com poucas respostas, mas repleta de perguntas e reflexões que precisam ser feitas a partir do nosso ponto de partida como essa nação miscigenada de base ameríndia, negra e parda que somos, mas que carrega dores e estigmas de uma invasão não só territorial, mas também de sentidos, que reflete em tudo, inclusive no cenário dos psicodélicos no país.
E para começar esta conversa eu escolhi entrevistar o neurocientista Sidarta Ribeiro, que considero uma pessoa que consegue de forma honesta e humilde criar pontes entre a ciência moderna e os conhecimentos populares, considerando os mistérios como parte inerente da vida humana.
Tudo isso vejo como uma fagulha de um futuro possível de integração e respeito entre todos os saberes em prol de uma sociedade mais harmoniosa e justa. E isso não é um sonho, outra área de estudo de Sidarta. É uma realidade que já acontece através de cada um que se propõe a confluir uns com os outros e a aldear-se ou aquilombar-se com atitudes e olhares mais amorosos e acolhedores, grandes solventes das mazelas e conflitos desse mundo. Vida longa a espaços como este. Que se multipliquem.
Confira a entrevista:
Psicodelia Brasileira: Qual a importância da valorização da interface brasileira dos psicodélicos?
Sidarta Ribeiro: A primeira coisa que a gente tem que ter em mente é que quem descobriu o potencial dessas medicinas sagradas, psicodélicas, ancestrais foram os povos indígenas na América, no continente americano de Norte a Sul e muito fortemente no Brasil e no México.
Houve dois momentos em que a ciência biomédica olhou para isso e falou: “Uau, isso vai revolucionar a psiquiatria”. Muitos aspectos da medicina sagrada têm a ver com curar um enorme trauma que é a história deste continente, o trauma do genocídio indígena, o trauma da diáspora africana. Então os psicodélicos têm tudo a ver com a cura desse trauma.
O mundo biomédico científico lê isso dizendo: “Ah, são ótimos antidepressivos”. Mas do ponto de vista de quem descobriu essas medicinas, elas são muito mais do que isso. São entidades com as quais se estabelece uma relação que envolve cura.
No Brasil, nós, pesquisadores biomédicos, tivemos a oportunidade de fazer pesquisas que eram quase impossíveis de serem feitas em outros lugares, em grande parte pelo fato da ayahuasca ser uma substância legal desde a década de 1980 e ser uma substância de origem indígena que depois passou para a cultura ribeirinha, chegou a nós no meio urbano através de religiões sincréticas e se espalhou pelo planeta. Isso tornou o Brasil o terceiro país mais produtivo do mundo nessa onda mais recente das pesquisas com psicodélicos.
Quais os desafios do Brasil na realização dessas pesquisas?
Temos muita coisa ainda pela frente, como uma revolução do âmbito biomédico e também uma revolução sobre a necessidade de ter um diálogo igualitário, recíproco e justo que honre os povos ancestrais, que têm mais conhecimento sobre isso do que a gente, os não-indígenas, mas é preciso que estes povos não sofram apropriação cultural nesse processo, o que é difícil.
Hoje o capitalismo que demonizou as substâncias psicodélicas nas décadas de 1960, 1970 e 1980, está querendo ganhar muito dinheiro com elas na bolsa de valores. É uma luta cheia de tentáculos e é uma coisa bem complexa, mas de alguma maneira eu vejo como positiva pelo fato de que estamos falando em tratar o trauma.
Como o Brasil pode não cair na cilada de tratar os psicodélicos como puro produto utilitarista, como vemos acontecer em países como o Canadá e os EUA?
Isso é o Enigma da Esfinge. É um problema seríssimo, mas já temos pesquisadores no país olhando com atenção para isso e querendo trazer os psicodélicos e outros saberes tradicionais para as práticas integrativas na saúde pública.
Já temos no SUS (Sistema Único de Saúde) práticas integrativas que vieram do Oriente, da Europa e saberes de vários outros lugares, mas não tem nada de ayahuasca, rapé, sananga e kambô, por exemplo. Não tem nada de medicina indígena. Integramos ao SUS diversas medicinas tradicionais alternativas à indústria, mas não conseguimos ainda integrar a medicina indígena, o que fala muito sobre o nosso racismo estrutural.
Acreditam que é preciso garantir esses atendimentos feitos por indígenas, trazer os pajés e as majés para dentro do nosso sistema de saúde. No Chile, por exemplo, você consegue ser atendido por uma Maiche (curandeira Mapuche) e aqui nada.
As igrejas que servem ayahuasca têm feito esse trabalho de promover bem-estar mental, mas ainda não há nada assim no sistema público de saúde. Precisamos pensar em um modelo para o povo brasileiro, para o povão, que está à mercê dos antidepressivos convencionais.
Já temos sólida documentação biomédica, científica, sobre como a ayahuasca é um poderoso antidepressivo. Ela já está à disposição de quem pode pagar, mas na maior parte das vezes, só quem tem algum dinheiro é que tem se beneficiado.
Qual o grande trunfo do Brasil no estudo dos psicodélicos em relação a outros países do mundo?
O Brasil só terá bom futuro se a gente se jogar de corpo e alma e reconhecer e viver o que de fato somos. Somos um povo mestiço de raízes indígenas e africanas, tanto ou mais do que portuguesas. Há 200 anos, a língua mais falada aqui não era o português, era o nheengatu.
Temos um enorme trabalho a realizar de aldeamento e aquilombamento, de letramento, reconhecimento e busca das nossas raízes e ancestralidade. É uma das missões das novas gerações: criar pontes com essa ancestralidade antes que ela se perca completamente da memória.
E isso é o que o Brasil tem de grande diferencial em relação aos outros lugares do mundo que estão estudando as medicinas psicodélicas. O Brasil é biológica e culturalmente riquíssimo e um dos epicentros dessa possível transformação, que virá do interesse científico pelos psicodélicos a partir do resgate profundo que aponte para o futuro dessa ancestralidade em torno dessas substâncias, em torno dessas entidades sagradas dos povos indígenas ayahuasqueiros e outros que usam o rapé, o tabaco e até a água, a partir do sistema de crenças que cria realidades mentais (e espirituais, para quem crê).
São muitas maneiras, muitas tecnologias sofisticadas de engajar o corpo para se curar.
* Caroline Apple é jornalista há quase 20 anos com passagem por alguns dos principais veículos do Brasil, abordando, principalmente, temas relacionados aos Direitos Humanos, como a causa indígena. É uma das primeiras jornalistas no país a se especializar na cobertura de cannabis para fins medicinais. Daimista, ayahuasqueira e psiconauta, Carol é influenciadora digital sobre temas relacionados à espiritualidade e ao autoconhecimento com ênfase no uso da ayahuasca em contexto urbano.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Matheus Alves de Almeida