Existem modos possíveis de ser mãe em uma luta cotidiana e árdua para garantir esse direito
Lucía Eilbaum* e Mariana Pitasse**
O segundo domingo de maio é reservado, no Brasil, para a comemoração do dia das mães. Neste ano, a tragédia das enchentes, que atingiu diversas regiões do Rio Grande do Sul, cobrou a vida de centenas de pessoas, destruiu cidades, moradias e pertences, e obrigou a evacuar milhares de famílias de suas casas, impediu que o dia fosse festejado da forma esperada, desejada e planejada por muitas famílias.
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Essa catástrofe evidencia de forma descarada a impossibilidade de comemorar o dia das mães. Mas, essa impossibilidade é uma realidade comum que faz parte de uma série de direitos negados a muitas mulheres brasileiras no exercício de suas maternidades.
Este artigo inaugura a coluna no ambiente online do jornal Brasil de Fato destinada à Rede Transnacional de Pesquisas sobre Maternidades Destituídas, Violadas e Violentadas (REMA), que é uma rede nacional e internacional de pesquisa, acolhimento e transmissão de saberes frente às violências e violações praticadas contra mulheres em suas diversas experiências de maternidades.
A REMA surge da articulação de núcleos de pesquisa, de diversas universidades do Brasil (UFF, UERJ, Unicamp, Unb, UFSC, UFRGS, UFPE e UFAL) e do exterior (Universidad de Buenos Aires, Argentina, e a Kennesaw State University, Estados Unidos), com coletivos e movimentos sociais. Com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), do Ministério de Ciência e Tecnologia, o trabalho da REMA tem como foco produzir diálogos com políticas públicas e promover a divulgação científica sobre diferentes formas de maternar e, em especial, sobre as violências vivenciadas nessas experiências.
No espaço desta coluna, os textos vão apresentar e discutir a problemática central do projeto: as hierarquias reprodutivas que modelam as formas de exercer a maternidade e (re)produzem desigualdades sociais de gênero, classe, raça, território, religião, entre outras. Nosso objetivo é promover um diálogo amplo sobre o direito de maternar e as consequências de sua violação para mulheres, seus familiares e comunidades.
Nesse sentido, nos propomos a discutir questões como: quem tem e quem não tem o direito a ser mãe? A quem é e a quem não é reconhecido esse direito? Norteadas por essas perguntas e com base em casos que acompanhamos a partir da pesquisa empírica, sobre violações ao direito de cuidar e criar os filhos, nos atentamos para experiências diversas em relação ao direito a maternar.
Maternidades destituídas
No dia de 16 de janeiro de 2023, repercutiu nos jornais o nascimento do Miguel. Filho de Camila e Wagner, Miguel nasceu em um ônibus da linha 862, no Rio de Janeiro. Em bom estado de saúde, Camila e Miguel foram encaminhados para a maternidade. Cinco dias depois, a história teve uma reviravolta. Os pais denunciaram, em uma nova reportagem, que após a alta hospitalar, foram obrigados, ainda na maternidade, a entregar a criança e, desde então, não teriam recebido mais nenhuma notícia do filho.
Segundo as informações, a maternidade teria acionado o Conselho Tutelar que, por sua vez, teria acionado a juíza da Vara da Infância, Juventude e Idoso da Capital, quem decidiu pela retirada do bebê e o acolhimento dele em um abrigo. A justificativa apelava à "negligência" em relação ao fato do Wagner e os outros filhos não terem os documentos de identidade nem a carteira de vacinação.
A história de Camila e Wagner teve bastante repercussão, provavelmente pelo fato do Miguel ter nascido no ônibus. Contudo, histórias de mulheres que perdem a guarda dos seus filhos são recorrentes, em especial quando se trata de mães, pobres moradoras de bairros periféricos do Rio de Janeiro e de outras regiões do Brasil.
A REMA tem acompanhado decisões de destituição de maternidades nas quais se alega "negligência" ou "vulnerabilidade social" para acolher, abrigar ou colocar as crianças nos circuitos de adoção, à revelia de suas mães. São casos que envolvem alegações de uso de drogas, problemas de saúde mental, práticas religiosas vinculadas a religiões de matriz africana, comunidades tradicionais como quilombos, situação de rua, ou pobreza.
Como mostra a experiência de Camila e Wagner há um conjunto de instituições públicas envolvidas, como varas de infância, conselhos tutelares, maternidades e outras, que tomam suas decisões, mais fundamentadas em alegações morais, do que jurídicas ou técnicas, sobre quais mulheres e famílias estão aptas e quais não estão aptas, para exercer a maternidade.
Maternidades Violadas
"Eu sou Nohana Ribeiro, tenho 37 anos, sou negra, moradora de comunidade, e mãe solo de dois menininhos e quase morri por diversas violências obstétricas após o parto do meu segundo filho que vai fazer dois anos nesta quarta-feira. Eu cheguei na maternidade com a bolsa estourada, com histórico de parto de emergência, por pré-eclâmpsia, por um aborto espontâneo por má formação. Fiquei dois dias sem me alimentar, ninguém queria fazer meu parto, sem eu dilatar, sem ter contração. No dia seguinte fizeram meu parto (...) sofri uma infecção e ainda sofri violência por duas enfermeiras". Esse é um trecho do relato de Nohana, no debate público sobre violência obstétrica de morte materna, promovido pela Comissão de Defesa da Mulher, da Assembleia Legislativa do Estado do Rio (Alerj), no dia 25 de março deste ano.
As violências relatadas por Nohanna integram um leque de situações de violência obstétrica e de racismo obstétrico que acontecem em maternidades e hospitais no Brasil. Segundo o relatório "Nascer no Brasil", da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), 30% das mulheres atendidas em hospitais privados sofrem violência obstétrica, enquanto no Sistema Único de Saúde (SUS) a proporção é de 45%.
O trabalho da REMA nesse eixo tem focado em casos em que especialmente mulheres negras vivenciam uma realidade de negação de direitos sexuais e reprodutivos, colocando-as em situação de vulnerabilidade no acesso à saúde: desde ausência de atendimento, menos orientações, peregrinações para parir, insultos e discriminaçao, até mortalidade materna.
Maternidades Violentadas
No último dia 10 de abril deste ano, em parceria com a REMA, aconteceu, na sala Marielle Franco da Universidade Federal Fluminense (UFF), uma roda de conversa com mães de jovens assassinados pela polícia. Participaram sete mães de diversos territórios do estado do Rio e que integram a Rede Nacional de Mães e Familiares contra o Terrorsio de Estado e outros coletivos. Catarina, Glaucia, Ivanir, Dalva e Márcia contaram com detalhe como seus filhos - jovens, negros, vitais, alegres - foram arrancados delas pela força letal do Estado. Nadia, Maria e Penha contaram ainda como perderam mais de um filho para a violência de Estado.
Esses eventos críticos marcaram e ainda marcam a vida dessas mulheres e famílias. O dia das mães deixou de ser para elas um dia comemorativo, para ser um dia de memória, de tristeza, mas também de luta, como detalha Ivanir no seguinte trecho de uma entrevista concedida a pesquisadoras da REMA:
"E aí são datas, tem datas também que você vive a base de remédio. Natal. Não gosto de Natal. Tá entendendo? No ano novo não gosto de entrar no ano novo. Não gosto do dia dos pais, não gosto do dia das mães. São datas comemorativas que você tinha aquela pessoa. Tá entendendo? Aí eu lembro o que poderia estar com meu filho, com meus netos e tal. E aí [a mãe] tem que tirar força de onde ela não tem, porque ela tem outros filhos para criar. E tem os netos".
Assim como Ivanir, centenas de mães que perderam seus filhos lutam por justiça e verdade e lutam também para se manterem vivas e sobreviverem às múltiplas violências e problemas de saúde física e emocional. É através dessas lutas que cabe a elas exercer a maternidade, mantendo viva a memória dos seus filhos.
Direito a ser mãe
Os três eixos do trabalho da REMA - maternidades destituídas, violadas e violentadas - evidenciam violências que recaem sobre os mesmos corpos, afetando principalmente mulheres pobres, negras, jovens e migrantes, indígenas, quilombolas, cujos direitos já se encontram vulnerabilizados por outras violências (situação de rua, racismo, xenofobia, intolerância religiosa, desemprego, problemas de saúde, etc).
Por isso, a pergunta sobre quem tem direito a ser mãe não é retórica e desafia um certo senso comum que associa a maternidade ao desejo, à escolha individual ou, inclusive, a um suposto instinto materno! Ser mãe é um direito e como tal deve ser não só respeitado, mas também apoiado com políticas públicas que garantam também outros direitos, como à saúde, à moradia, à educação, à justiça e à vida.
Gestores das redes de saúde, assistência social e jurídica podem fazer, e muitos deles de fato fazem, a diferença quando se trata de lidar com experiências diversas sobre maternidade. O trabalho da REMA propõe, assim, debater como maternidades ditas "fora do lugar", "inadequadas" ou "não aptas", encobrem apenas argumentos morais que explicitam estereótipos e preconceitos - desiguais, racistas e machistas- sobre modos de vida diferentes.
Nesse sentido, comemorar o dia das mães é assumir que a "maternidade ideal" só existe na cabeça de certas pessoas que ditam as regras e tomam decisões. No dia a dia das mulheres, pelo contrário, existem modos possíveis de ser mãe em uma luta cotidiana e árdua para garantir esse direito.
*Lucía Eilbaum é pesquisadora da REMA/CNPq e professora de Antropologia da Universidade Federal Fluminense (UFF).
**Mariana Pitasse é jornalista, pesquisadora de pós-doutorado vinculada ao PPGA-UFF e ao INCT-InEAC e bolsista de apoio à difusão do conhecimento da REMA/ CNPq.
***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Jaqueline Deister