Quem observa a articulação da extrema direita no mundo, a forma como o bolsonarismo está conectado com a europeia e estadunidense num mesmo movimento político, pensa que ela é uma unidade ideológica consistente. Só que não.
Em geral, ela continua a ser fascista no mundo inteiro: mira um Estado autoritário e policial, a tutelar uma nacionalidade baseada numa identidade cultural coercitiva, que elimina a diversidade a partir da aniquilação dos adversários e de tudo aquilo que não pareça consigo.
Mas, a partir daí a agenda já não é mais a mesma.
No Brasil, identificamos a extrema direita como uma geleia ideológica, tão dissensiva quanto oportunista, cada corrente endereçando seus próprios temas. Ali se misturam militaristas, olavistas, anarcocapitalistas e neoliberais, fundamentalistas cristãos, e parte considerável da burguesia agrária, extrativista e da classe média comerciante e liberal. Uma mistura tão cheia de contradições entre si quanto de interesses comuns: são contra o Estado de bem estar social, a sociedade liberal e as instituições da democracia moderna.
Aqui, além do conservadorismo religioso e moral, a extrema direita é também neoliberal, entreguista, privatista e negacionista do meio ambiente, das mudanças climáticas, das vacinas e da história. Este conjunto de posições ideológicas carrega contradições e inconsistências que podem resultar em problemas políticos consideráveis, por exemplo, sobre como se posicionar frente às mudanças climáticas, cada vez mais evidentes e próximas de nós.
Na Europa, ao contrário, já há algum tempo a extrema direita vem contornando estas “falhas” de discurso, adotando uma suposta defesa do meio ambiente que inverte sua histórica postura negacionista. Por exemplo, estudo de Joe Turner e Dan Bailey com 22 partidos extremistas europeus publicado na Revista Environmental Politics em 2022 concluiu que o negacionismo ambiental não é mais o discurso ambiental predominante da extrema direita europeia. Ao contrário, ela tem adotado uma postura que pesquisadores tem denominado de “ecobordering”, termo usado para designar o endurecimento do controle das fronteiras por razões ambientais.
Como se sabe, a agenda principal da extrema direita europeia é o combate à imigração e aos imigrantes. Um “mal estar” colonial que lá se manifesta de forma brutal no conflito com as ondas migratórias das ex colônias que afluem todo o ano para a Europa. A soma desse afluxo migratório com o envelhecimento de sua população e a tendência conservadora de sua cultura, cria o temor de uma “substituição cultural”, conceito conspiracionista difundido pelo escritor francês Renaud Camus em seu livro de 2011, A Grande Substituição. Isso tem levado a extrema direita a colocar o combate à imigração como a mais importante agenda de defesa da identidade nacional e do modo de vida das nações e dos povos europeus.
Assim, o discurso ambiental emergente na extrema direita europeia busca culpar os imigrantes pela degradação ambiental, bem como estabelecer restrições de fronteira para proteger os privilégios das populações locais europeias. Embora não pareça, usar uma justificativa ambiental para a agenda anti imigração representa uma guinada de 180 graus no seu discurso ambiental, tradicionalmente negacionista.
Aliás, não é nova esta aproximação entre a defesa do meio ambiente, a intolerância étnico cultural a e a busca por construir uma identidade nacional supostamente pura. É amplamente conhecido que o partido de Hitler tinha de fato uma “banda verde”, uma ala ambientalista capitaneada por seu Ministro da Agricultura, Richard Darré, que herdou integrantes de movimentos naturalistas como o Wandervögel e o Völkisch, este último criador da expressão “Blut und Boden” (sangue e solo), que se tornaria um dos lemas do nazismo após ser popularizado por Darré em seu livro Uma Nova Nobreza Baseada em Sangue e Solo, publicado em 1930.
Nos EUA a questão ambiental e a defesa do meio ambiente também já não são mais uma pauta exclusivamente progressista ou de esquerda. Ao contrário, a defesa do meio ambiente tem estado na boca de muitos extremistas de direita, de movimentos tradicionalistas e conservadores como o Council of Conservative Citizens, passando por supremacistas brancos como Philip Santoro, do site American Renaisance, por terroristas solitários como Patrick Crusius, que evocou causas ambientais para justificar o assassinato de 23 pessoas em El Passo em 2019, até alguns dos invasores do Capitólio no 6 de janeiro de 2021.
Mas é mesmo na França que o discurso ambientalista da extrema direita tem se tornado mais consistente e teoricamente articulado, por obra de autores como Hervé Juvin, ex deputado do Parlamento Europeu pelo Rassemblement National, partido dos Le Pen, e do filósofo Alain de Benoist. O conceito por traz desta virada ambientalista da extrema direita francesa é o chamado “localismo”, pelo qual fazem a crítica ao neoliberalismo e ao comportamento “nômade” das populações mundiais, que gerariam os fluxos migratórios e comerciais que eles visam combater.
A tese é a de que a modernidade globalista visaria formar uma homogeneização global, destruindo as tradições, culturas e modos de vida locais. Contra isso o localismo propõe o que Juvin chamou de “ecologismo das civilizações”, visando preservar o que Benoist chamou de etnodiferencialismo, ou a diversidade cultural baseada na diferenciação étnica.
Na prática, o localismo francês propõe o re-enraizamento das populações locais, os europeus, chamados teoricamente de “sedentários”, contra o comportamento fluido e ambientalmente irresponsável e predatório dos “nômades”, certamente os imigrantes. Mas o localismo também propõe a revisão da logística econômica, valorizando produtos e empresas locais contra a crescente internacionalização do comércio. Marine Le Pen chegou a afirmar que o ambientalismo é filho do patriotismo, porque é filho do enraizamento. Tanto para Le Pen como para Marion Marechal, outra líder da extrema direita francesa, o ambientalismo é uma forma de conservadorismo, e as mudanças climáticas são um problema global que requer soluções locais.
No fundo, o localismo responsabiliza os fluxos migratórios e comerciais pelos problemas ambientais e climáticos, e propõe fechar a sociedade e a economia para os imigrantes e para produtos vindos, sobretudo, do Sul Global, e de países como China, índia e Brasil. Assim, a tese do Localismo acaba não só oferecendo uma saída “honrosa” para o negacionismo climático da extrema direita, como também um discurso aparentemente menos racista e xenofóbico para o combate à imigração na Europa.
Como se vê, o foco desta abordagem é o combate à imigração e ao liberalismo comercial, então, a revisão do negacionismo climático entra como uma faceta conveniente. Isso porque o negacionismo climático nunca foi sobre ciência, nunca foi contra a ciência, e sim contra as políticas globais de combate ao aquecimento global (chamadas por eles de globalistas), que atingem interesses econômicos poderosos e implicam em redução da autonomia nacional. Muitos negacionistas dizem mesmo que a tese do aquecimento global é uma conspiração da esquerda para aniquilar a liberdade econômica e instituir um governo global. É contra isso que se ergue o negacionismo climático, e é por isso que ele se localiza na extrema direita. Mas o localismo também se contrapõe a isso, e ainda oferece um discurso eufemisticamente teórico para o combate aos imigrantes.
Do ponto de vista do discurso, o localismo da extrema direita francesa supera uma série daquelas contradições que a extrema direita do Sul Global ainda carrega, pois foi capaz de unir nacionalismo, identitarismo étnico, conservadorismo de costumes, oposição à imigração e defesa do meio ambiente numa mesma plataforma política. Ele permite que obstruam as políticas contra as mudanças climáticas (isso eles continuarão a fazer) sem que precisem negar a emergência climática, afinal, “este é um problema global mas que tem soluções locais”, como dizem Le Pen e Marechal. E permite que aprofundem o combate à imigração sem que pareçam racistas ou xenófobos.
Enquanto o restante da extrema direita europeia ainda militava no negacionismo, a francesa vinha desde 2010 se convertendo a este ambientalismo nacionalista e populista. Agora, porém, via localismo ela oferece a plataforma de discurso mais bem acabada para este campo, que tende a se difundir para os demais países seguindo a tendência de a extrema direita francesa puxar o discurso político da extrema direita europeia.
Na verdade, esta higiene nas palavras e na teoria não afasta o localismo francês do que ele realmente é: uma corrente de extrema direita, de um identitarismo fascista, nacionalista e colonialista, com um discurso de culpabilização dos imigrantes pelos problemas ambientais que é uma farsa, só que agora, como já não podem participar da partilha colonial, pretendem fechar-se para desfrutar dos privilégios do colonizador apenas com seus iguais.
Mas ele já não é negacionista ambiental nem climático, como aqui. Ao contrário, aponta para o declínio deste negacionismo mesmo entre a extrema direita, face à evidência fática de tragédias climáticas cada vez mais frequentes e extremas. A extrema direita de lá e o próprio localismo é, na verdade, obstrucionista, ou seja, tenta obstruir pautas internacionais de gestão das mudanças climáticas com base em um localismo enganoso e inócuo para este fim.
Já no Brasil, a extrema direita continua a atuar dentro do paradigma do neoliberalismo, da predação ambiental e do negacionismo climático. Como em toda a parte, o negacionismo ambiental e climático, aqui, não tem a ver propriamente com ciência, ou com negar a ciência. A ciência é a vítima, simplesmente. O negacionismo daqui tem a ver com interesses econômico financeiros de algumas poucas categorias, particularmente dos grandes proprietários de terras e de setores extrativistas (mineradores, madeireiros, etc.), que precisam afastar as restrições ambientais para expandir suas atividades indiscriminadamente.
Em função disso, tem havido nos últimos anos um verdadeiro desmonte institucional na estrutura de fiscalização e na legislação ambiental, principalmente partir dos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro. Parte deste desmonte tem sido patrocinado, em grande medida, pela conhecida Bancada do Agro, que detém perto de 200 votos no Congresso Nacional, as vezes contando com a adesão dos mais de 300 parlamentares associados à Frente Parlamentar da Agropecuária.
Por iniciativa desta bancada, em plena tragédia climática no Rio Grande do Sul tramitam no Congresso Nacional, por exemplo, um projeto para liberar de proteção ambiental enormes áreas da Amazônia, outro que libera para exploração agrícola o Bioma Pampa, que representa praticamente um terço do território gaúcho, outro que libera de proteção grande parte do Pantanal, outro ainda que libera de licenciamento certos tipos de empreendimentos, inclusive agropecuários, e institui o auto licenciamento (ou uma autodeclaração de impacto ambiental), e tantos mais que tentam derrubar, uma a uma, as proteções ambientais que foram construídas na legislação brasileira desde 1981, com a Lei 1.938 que instituiu a Política Nacional de Meio Ambiente.
Parafraseando o Márcio Astrini, secretário executivo do Observatório do Clima, quando se vê o que está acontecendo no Rio Grande do Sul, que iniciou 2023 com uma seca severa e terminou com uma enchente dramática no vale do Taquari, e que agora em 2024 já protagoniza a maior tragédia ambiental do Brasil, é muito difícil qualquer pessoa trazer uma solução. Mas é fácil identificar quem tem trazido os problemas: o Congresso Nacional, com esta enxurrada de projetos de lei de destruição da legislação ambiental.
Enfim, os interesses do colonizador e do colonizado são diferentes, sobretudo se o colonizado tem o modelo mental do colonizador ainda à época da colonização, quando se tinha um território a espoliar e não um país a construir. Tudo tem a ver com o mal estar da colonização neste ocaso do neoliberalismo. A extrema direita de lá enfrenta o mal estar colonial tentando fechar seus países aos ex colonizados, à sua cultura e a seus produtos comerciais, usando para isso, inclusive, o discurso ambiental localista, nacionalista e identitarista. Já a extrema direita daqui quer emular, internamente, a mentalidade colonizadora que viu neste país continental um manancial de riquezas naturais a explorar indiscriminadamente. Para isso, não mede esforços para afastar as restrições ambientais.
Nossos extremistas jamais seriam localistas, jamais deixariam de ser negacionistas ambientais ou climáticos, pois aqui no Sul Global isso implicaria abandonar esta visão colonial espoliatória que os move.
* Renato Souza é professor do Programa de Pós Graduação em Extensão Rural da Universidade Federal de Santa Maria.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Vivian Virissimo