Desde seu nascimento em 1971, a Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural, conhecida nacionalmente pela sigla Agapan, vem esmurrando as paredes sólidas dos muitos negacionismos do clima. Comprou todas as brigas dignas e imprescindíveis: contra os agrotóxicos, a supressão de árvores nas cidades, o corte das matas ciliares, a contaminação dos rios, a destruição do Pampa em favor da agricultura predatória, as indústrias poluidoras, a derrubada da floresta para implantação de pastagens, a violência cega do agronegócio, a devastação da Amazônia.
Em abril, enviou uma carta ao governador Eduardo Leite (PSDB) expondo sua preocupação com o projeto de terra arrasada em curso e alertando sobre a ameaça das mudanças climáticas. É a mais antiga associação ecológica em atuação contínua no país e o Brasil de Fato RS foi conversar com seu presidente, Heverton Lacerda.
Jornalista, pesquisador do Grupo de Pesquisa em Jornalismo Ambiental da UFRGS e membro do Comitê de Combate à Megamineração do RS, ele falou sobre o quadro da dor vivido hoje pelo Rio Grande do Sul.
Confira a entrevista:
Brasil de Fato RS - No dia 26 de abril, pouco antes do mais recente período de chuvas, a Agapan encaminhou ao Palácio Piratini um ofício intitulado “Alerta ao Estado do Rio Grande do Sul e ao Governador do Estado”. Qual a advertência contida no documento?
Heverton Lacerda - O documento, protocolado sob o número 179/2024, tem o objetivo de oficializar ao governador e ao estado a informação, já de amplo conhecimento público, de que o mundo está enfrentando uma crise climática e que essa crise tem o fator antropogênico [ações humanas] como um de seus principais ingredientes de intensificação. Esperamos que eles se deem conta de que povo gaúcho reside nesse mundo em crise.
Agora, ou se mexem ou continuam nessa bolha opaca de onde só enxergam com as lentes da economia
A intenção também é garantir que o governador e o estado não usem o argumento de que ainda não sabiam da crise climática. Se não sabiam, como têm demonstrado pelo tipo de políticas que têm apoiado e encaminhado, agora sabem. Não podem mais, mesmo que quisessem, usar o argumento de que não sabiam da crise, sem serem desmentidos. Agora, ou se mexem ou se declaram de vez negacionistas climáticos e continuam nessa bolha opaca de onde só enxergam com as lentes da economia.
Acreditamos que isso, como ressaltamos no documento, ainda que não seja o objetivo maior, abre caminho para que a sociedade cobre nos âmbitos cabíveis. Estamos dispostos a puxar essa frente e conclamar a sociedade que se una a nós. Não se trata de um movimento partidário, mas de defender a vida como a Agapan vem fazendo desde 1971, sob o lema “A vida sempre em primeiro lugar”.
Não há mais espaço para negacionismo climático.
BdF RS - Qual a resposta que recebeu do governo Eduardo Leite?
Lacerda - A mesma que ele deu às comunidades atingidas nos eventos climáticos anteriores: nenhuma, até agora.
BdF RS - Na condição de mais antiga entidade ambiental em funcionamento no Brasil, quantas vezes a Agapan foi recebida pelo governador?
Lacerda - Nenhuma. No próprio documento protocolados dia 26 de abril, nos colocamos à disposição para o diálogo com a finalidade de construir soluções coletivas, aproveitando o conhecimento acumulado da Agapan ao longo de 53 anos de atuação. A intenção também é tentar uma aproximação, pois sabemos que o governo atual mantém distanciamento dos movimentos sociais. Acho que é hora de somar, não de dividir a sociedade.
No caso do governador, colocar o coletinho e falar pausado é tentar passar a imagem de uma pessoa operante. Mas não é a realidade
BdF RS - O governador tem sido visto ultimamente sempre com o jaleco amarelo, transmitindo preocupação perante o caos ambiental desatado sobre o Rio Grande do Sul. Porém, quando está no gabinete e sem o jaleco, Qual tem sido, na sua opinião, o comportamento dele, de seu governo e da sua base de apoio na Assembleia Legislativa quanto às grandes questões do meio ambiente?
Lacerda - Tocaste em um ponto que, embora possa parecer provocação, demonstra, na verdade, um tipo de atitude diante da crise climática que se assemelha ao que se denomina, no termo em inglês, que ficou mais conhecido, de greenwashing. É uma atitude que busca parecer mais do que é, que mascara uma realidade não muito boa.
No caso do governador, colocar o coletinho e falar pausado é tentar passar a imagem de uma pessoa operante, um herói em situações de urgência, controlando e resolvendo tudo. Mas isso não é a realidade que está acontecendo.
Se tivesse agido antes como um governador, não precisaria estar agora representando um papel de repórter do governo
O que se espera de uma pessoa empossada de um cargo de tamanha importância estratégica e gerencial é que planeje com antecedência e promova ações preventivas para evitar situações como esta que estamos vivenciando. Se tivesse agido antes como um governador, não precisaria estar agora representando um papel de repórter do governo, um papel que ele aproveita para se promover na mídia e tentar recuperar uma imagem que perdeu por falta de ação.
BdF RS - Como a Agapan reagiu quando o Código Ambiental do estado sofreu uma intervenção do governo Leite, ainda no primeiro ano de seu primeiro mandato, em 2019?
Lacerda - A entidade sempre se manifesta apontando, nesses momentos, os problemas que as fragilizações das leis ambientais podem causar. Também nos manifestamos antes, como o exemplo agora do projeto que se tornou lei para permitir destruição de Áreas de Preservação Permanente e enviamos ofício em dezembro do ano passado. Mas o atual governo e a base legislativa dele não têm ouvidos para nós. Se isso não mudar, a crise não será revertida, e ainda se ampliará. A população precisa agir para evitar isso.
BdF RS - O orçamento do estado para 2024 reservou R$ 115 milhões para enfrentar eventos climáticos. É muito ou é pouco?
Lacerda - Eu gostaria que fosse muito, que não precisássemos usar nenhum centavo para esse fim. Mas, como agora todos já estão vendo uma amostra do que pode estar por vir, percebe-se que esse valor é um trocado, não dá nem para a saída. Além de estar sendo divulgado superdimensionado, misturando valores para parecer maior. Onde está o PIB bilionário do agro, tão festejado pelo governo, neste momento?
O estado gaúcho tem operado mais próximo aos interesses do agronegócio, encaminhando políticas neoliberais
BdF RS - Neoliberalismo combina com ecologia?
Lacerda - Quando entendemos que a ecologia está muito próxima das culturas ancestrais, com seus valores ligados diretamente à compreensão de que fazemos parte da natureza, e que para nos proteger temos que cuidar do todo, fica quase impossível não identificar a grande distância que a separa da proposta neoliberal.
No entanto, nenhuma aproximação é impossível, desde que tenhamos as adaptações necessárias. Um exemplo: agroecologia e agronegócio. Encontramos muitas diferenças, de vários âmbitos – valores, tecnologias, práticas... No entanto, ambas atuam com agricultura.
A agroecologia, como o próprio nome já indica, produz com base nos preceitos ecológicos, com respeito à terra, à água, à fauna, aos trabalhadores, com consciência socioambiental. Já o agronegócio funciona com uma lógica onde a ecologia não é prioridade, mas sim os resultados financeiros.
O estado gaúcho tem operado mais próximo aos interesses do agronegócio, encaminhando políticas neoliberais, a exemplo do autolicenciamento, da legislação fiscal favorável ao exportador de commodities, entre outros.
BdF RS - Você já disse que o quadro que o Rio Grande do Sul enfrenta agora é “uma tragédia anunciada”. Depois de uma tragédia em setembro de 2023, com mais de 50 mortes no vale do Taquari, as mesmas cidades foram devastadas mais uma vez ao custo de mais mortes. Podemos pensar, então, que mais tragédias anunciadas estão à caminho?
Lacerda - Eu gostaria de acreditar na possibilidade de não ter mais tragédias desse tipo. Mas, para isso acontecer, é preciso que todos os nossos governos, com apoio irrestrito de todos os poderes públicos, classe empresarial e comunidades, se unam. Daí já podes perceber que é quase uma utopia, das mais ingênuas possíveis.
O que temos, então, é o anúncio de que estamos presos na parte inicial das mudanças climáticas (é só o começo). Se isso for compreendido com o real significado que tem, podemos agir para evitar novas tragédias, ou ao menos abrandar seus efeitos mais diretos.
Os cenários da crise apontam para coisas muito piores. Se algum gaúcho ainda duvida disso, é porque estamos realmente perdidos
Isso não vale só para o Rio Grande do Sul, vale para todo o planeta. A crise é planetária. No ritmo que estamos, continuando a emitir gases de efeito estufa, os eventos serão mais frequentes e mais intensos. Se essas informações não forem assimiladas, teremos muitas tragédias climáticas pela frente. O sofrimento será maior.
Hoje, estamos vendo alagamentos, falta de água, remédios, atendimentos médicos. Muito mais será descoberto quando as águas baixarem. Já pararam para imaginar a quantidade de produtos químicos, lixos hospitalares, e tantas outras coisas que foram cobertas pelas águas e que talvez tenham se misturado?
Os cenários da crise apontam para coisas muito piores: o nível dos oceanos subindo e cobrindo cidades inteiras, doenças se proliferando, escassez de alimentos, migrações em grande escala, acidentes biológicos e nucleares, etc. Se algum gaúcho ainda duvida disso, é porque estamos realmente perdidos.
BdF RS - Há algo de que se fala pouco hoje que é o caso da Mina Guaíba, uma imensa mina de carvão a céu aberto que se instalaria defronte a Porto Alegre. Até 2021, a mina tinha o apoio do governo Leite. Depois, ele declarou que o projeto estaria arquivado. Está mesmo arquivado? Ou pode ser ativado? E o que essa mina significaria para Porto Alegre e a Região Metropolitana em termos ambientais?
Lacerda - O governador só anunciou que o projeto estava ativado porque tinha essa informação em primeira mão, dada a sua condição privilegiada, mas não moveu uma palha para arquivá-lo. Se alguém tem mérito pelo arquivamento é a sociedade organizada, em especial em torno do Comitê de Combate à Megamineração no RS, que ajudamos a criar e que conta com a participação de inúmeras pessoas e entidades comprometidas com a questão socioambiental.
No entanto, resta uma sombra desse projeto nefasto, antiecológico e poluente. Temos acompanhado o movimento do processo na Fepam (Fundação Estadual de Proteção Ambiental). Por último, houve um movimento estratégico da parte da empresa Copelmi Mineração que nos preocupa por ter contado com o aceite da Fepam. Seguiremos atentos. Esse projeto não pode sair do papel, pois seria mais uma frente de impacto ambiental a se superar por aqui.
O público está dominado pelo privado. Acontece no governo estadual e nas administrações de Porto Alegre e de cidades do interior
BdF RS - O Rio Grande o Sul tem uma história de lutas ambientais que começou ainda nos anos 1950, com a fundação da União Protetora da Natureza (UPN), de Henrique Roessler, em São Leopoldo. Depois, nos anos 1970, nasceu a Agapan, com José Lutzemberger, Augusto Carneiro, Ilda Zimermann, Caio Lustosa e outros pioneiros. Na mesma época, teve Magda Renner, da Ação Democrática Feminina Gaúcha (ADFG), talvez a primeira ONG de mulheres em defesa do meio ambiente no Brasil. Criou uma legislação que barrou agrotóxicos e Porto Alegre teve a primeira secretaria de Meio Ambiente do país. Porque o estado regrediu nos últimos tempos?
Lacerda - São vários fatores. Vou salientar alguns. Eu começaria dizendo que temos um problema de narrativas equivocadas, porém altamente sedutoras. Há uma linha de pensamento neoliberal que tem conquistado votos através dessas narrativas que defendem interesses privados acima do interesse público. Como resultado, lideranças do setor privado estão dominando o Estado e muitos municípios gaúchos, além do parlamento estadual. O público está dominado pelo privado. Isso está acontecendo no governo estadual e nas administrações municipais de Porto Alegre e de cidades do interior.
É preciso conversar mais com a população gaúcha, submetida a narrativas empresariais que vendem falsas soluções
Órgãos públicos estão sendo sucateados para dar lugar a parcerias com o setor privado. Com isso, o Estado perde eficiência e protagonismo, além do controle sobre a coisa pública. Isso tudo corrobora para o processo em curso de enfraquecimento do sistema de proteção ambiental, pois o meio ambiente é considerado um entrave para o setor econômico.
É necessário conversar mais com a população gaúcha, em especial a do interior do estado, que fica submetida a essas narrativas empresariais que vendem falsas soluções bem embrulhadas. É preciso estar atento a isso, pois, além da imprensa comercial, que já desempenha um forte papel desinformativo para essa população, agora existem templos de cultos religiosos que reúnem milhares de pessoas e reforçam essas versões que atendem a interesses da alta classe empresarial, em detrimento dos interesses públicos, sociais e ambientais.
BdF RS - Esses pioneiros sempre advertiram que a conta iria chegar mas parece que chegou mais cedo do que eles próprios previram. Você imagina qual a reação que teria o mais irascível deles, Lutzemberger, diante da devastação que estamos assistindo?
Lacerda - Não convivi com o Lutz, mas dizem que ele não tinha papas na língua. Eu gostaria de ouvi-lo agora a respeito.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Marcelo Ferreira