A saída está no território da política para estabelecer compromissos com os interesses populares
Lenin dos Santos Pires*, Taísa Sanches** e Lucas Bernardo Dias***
Em fevereiro de 2024, o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, informou, através do aplicativo “X”, que o comércio ambulante na rua Uruguaiana, no centro do Rio de Janeiro, estava proibido. Como justificativa, utilizou uma investigação da Polícia Civil que apontou haver um vendedor ambulante que recepcionava celulares roubados e vendia no local. Para ele, vários dos celulares roubados eram comercializados ali, justificando uma ação enérgica de coibição de tal comércio. A ação teve apoio do Governo do Estado, resultando na interdição do local para comercialização de mercadorias por camelôs.
Anos antes, em abril de 2019, prédios construídos por grupos milicianos desmoronaram no bairro da Muzema, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, matando 24 pessoas e expondo as práticas milicianas na região. Após o ocorrido, a Prefeitura afirmou que tomaria providências contra ocupações irregulares e o Governo do Estado arrolou a localidade, assim como a favela do Jacarezinho, no Programa Cidade Integrada.
O que essas situações têm em comum?
Elas, como muitas outras, são representativas da realidade fluminense no que concerne à diferença de tratamento dos poderes instituídos frente à complexa associação entre informalidades e ilegalismos. Assim, considerar tais conceitos ao debater os desafios políticos e sociais fluminenses se faz fundamental no presente contexto.
Um olhar mais detido sobre as dinâmicas da sociedade fluminense poderá desvelar que diferentes segmentos, de forma direta ou indireta, se relacionam intimamente com o que podemos chamar de “informalidade”. Ou seja, é através de formas heterodoxas - mas não extraordinárias - de organização do trabalho, da produção e reprodução de moradias, da distribuição de mercadorias e de serviços urbanos, entre tantas outras dimensões que possam escapar a um certo “ideal formal”, que se dá o processo de produção e reprodução da “cidade”.
Os meios comerciais de comunicação, atores políticos de um modo geral e outros setores da sociedade costumam conjugar informalidade com ilegalidade.
Mas não é bem assim. Por exemplo, a construção de casas em terrenos públicos não pode ser considerada ilegal, a priori, mesmo que não se reconheça legalmente a propriedade de quem a ocupa. Afinal, o princípio do papel social da propriedade é uma pedra angular do nosso direito constitucional e envolve também aquilo que esteja sob a guarda do Estado. Igualmente, não se pode classificar como ilegal alguém que se apresente nas ruas para revender mercadorias, principalmente quando luta por sua dignidade. Neste caso a ilegalidade se observa quando explicitado categoricamente onde e como isso não pode ser feito.
Em todas as situações descritas lidamos com a dimensão dos ilegalismos, como nomeou o filósofo Michel Foucault. Segundo ele, o que pode ser classificado como ilegal resulta de um conceito derivado do formalismo jurídico. Assim, há aquilo previsto pela lei, bem como o que é interditado por ela. É a partir dessa rigidez que, muitas vezes, se pretende determinar aquilo que está na informalidade. A realidade fluminense, porém, não é tão simples, sendo constituída por fronteiras porosas.
No lugar da suposta neutralidade e universalidade das categorias que emanam da ordem jurídica, o conceito de ilegalismos sugere que “ordem” e “desordem” são dimensões que variam no tempo, podendo até interpenetrarem-se. Sua construção se dá a partir das lutas entre os interesses e posições políticas dos atores em um determinado campo de disputa. Assim, as fronteiras da lei variam e o que se inscreve nela é resultante da correlação episódica das forças que compõem e recompõem a gestão diferencial dos ilegalismos.
Ilegalismo não é um conceito oposto à ilegalidade: ele expõe a existência de jogos que incorporam as diversas modalidades de leis e normas, como também um amplo espectro difuso de práticas de controle social.
Comércio ambulante e acesso à moradia
Trabalhar na rua não é tarefa fácil. As adversidades decorrem, entre outras coisas, da falta de infraestrutura que propicie condições satisfatórias para seu exercício. Num espaço como a área central da Região Metropolitana do Rio de Janeiro não seria diferente. Lugar de inúmeras disputas, sua ocupação pelo comércio ambulante é atravessada por negociações, arranjos e acordos, revestidos de legalidade ou não, entre ambulantes, camelôs e autoridades públicas. Neste cenário, tal atividade pode tornar-se objeto de interesse e de intervenção do poder público, bem como de outros atores que veem nela a possibilidade de exploração econômica.
Chama atenção o modus operandi das investidas do poder público municipal, no que podemos chamar de “atuação estratégica”. As operações que visam coibir o comércio ambulante, apesar de pontuais e do forte apelo midiático com que são noticiadas, não são um fato recente ou isolado. A cada evento de magnitude internacional, por exemplo, observa-se a intensificação dos conflitos de rua envolvendo trabalhadores ambulantes e agentes municipais. Neste ano, a realização do encontro da cúpula do G20 tem sido a senha para coibições autoritárias. O evento contará com a presença de representantes das principais economias mundiais e desde já são implementadas ações que visam a produção de uma boa imagem da cidade, ou seja, uma abordagem marcada por uma perspectiva moral. Tudo isso acaba se constituindo num espetáculo constrangedor marcado pela instrumentalização da violência física e institucional, atingindo sujeitos e identidades sociais urbanas.
Situação semelhante pode ser observada nas favelas da cidade. Durante anos, elas se expandiram com o aval do Estado, que ao mesmo tempo em que fingia não vê-las, as reconhecia a partir de políticas de recriminação e remoções. Ou seja, bairros inteiros foram constituídos, e cresceram, sem se tornarem completamente reconhecidos pela legislação urbanística, a não ser quando políticas de remoção eram direcionadas a eles. Tal realidade permaneceu durante décadas, até que políticas públicas de regularização fundiária e urbanização passassem a existir, tais como Cada Família, Um Lote, no Governo Brizola, ou o Favela-Bairro, no governo César Maia.
Atualmente, o mercado imobiliário dentro das favelas é bastante representativo na cidade do Rio de Janeiro, sendo realizado majoritariamente às margens da legislação. Alugar, comprar ou construir um imóvel nas favelas são práticas atravessadas por agentes e organizações que regulam, controlam e exploram o acesso à terra e à habitação, mas que não operam dentro dos limites considerados legais, sem, no entanto, serem coibidas pelo Estado.
Dentre os agentes que operam em tal mercado é importante diferenciar entre aqueles que estiveram historicamente a cargo da representação coletiva das favelas, tais como as associações de moradores, que regulavam o acesso aos imóveis, e figuras cujo interesse é pautado pelos benefícios financeiros oriundos de sua exploração e controle, ou seja, grupos criminosos milicianos e relacionados ao tráfico de drogas. Tais grupos criminosos incorporaram o controle do mercado de imóveis dentro de suas práticas ao perceberem a oportunidade de ganho de lucros que teriam ali. O fazem em conjunto com outras práticas e a partir do uso da violência e coação, ou seja, as brechas da informalidade abriram caminho para práticas relacionadas aos ilegalismos. Os prédios que desabaram na Muzema representam apenas um exemplo desta realidade.
Estudo recente publicado pelo Observatório das Metrópoles (RJ) e pelo Grupo de Estudos de Novos Ilegalismos (GENI/UFF) demonstrou que as práticas de controle miliciano se expandiram para os condomínios do Programa Minha Casa Minha Vida, ultrapassando o poder das redes do tráfico nesses espaços. Tal expansão das milícias tem relação com o menor controle policial (do Estado) quando se trata desses grupos. O mapa abaixo é representativo disso.
Ou seja, há uma baixa repressão policial quando se trata de coibir práticas milicianas. Com isso, tais grupos ganham mais espaço para operar entre os limites do mercado legal – afetando programas habitacionais- e ilegal - a partir do controle violento do acesso às unidades habitacionais dos condomínios.
No Rio de Janeiro, morar, trabalhar e viver são verbos entrelaçados às noções de informalidade e ilegalismos. Os exemplos são vários. Há grandes dificuldades para obtenção das TUAPs (Taxas de Uso de Área Pública) - a autorização que regulariza a atividade dos ambulantes, concedida de modo precário pela administração municipal, acentuando condições de vulnerabilidade e tornando os comerciantes reféns de esquemas de extorsão. Guardadas as devidas proporções, o mesmo se aplica às favelas, quando a não regularização de imóveis transforma os moradores em objeto da ação oportunista de traficantes e, sobretudo, de milicianos.
Enquanto a prefeitura e o governo estadual demonstram surpresa com a suposta existência de uma “milícia do asfalto” para justificar, em tese, uma ação governamental em nome da “ordem pública”, as milícias propriamente ditas seguem crescendo e tocando o terror nas favelas fluminenses, lucrando econômica e politicamente.
Essas nuances que envolvem as relações do morar, trabalhar e viver na cidade são permeadas por um complexo jogo de interesses, envolvendo inúmeras disputas entre os mais variados atores estatais e não estatais, caracterizando, por sua vez, uma linha tênue que não só delimita as fronteiras entre informalidade e ilegalismos, mas, sobretudo, entre o tolerável e o intolerável.
Observa-se nesse jogo o duplo papel regulador do poder público: ora participando da regulação oficial desses mercados, criando barreiras muitas vezes intransponíveis aos interesses populares, ora se envolvendo na sua regulação, digamos, extra-oficial. No último caso, ancora neles, entre outras coisas, os pagamentos e premiações de seus agentes que operam no desvio, bem como a satisfação marginal de interesses de atores sociais capturados pelas suas dinâmicas. É o caso, por exemplo, dos vendedores e moradores que descrevemos até aqui.
Frente ao complexo cenário exposto, cabe visualizar caminhos para sua superação. A saída está no território da política e envolve a decisiva iniciativa por estabelecer compromissos duradouros com os interesses populares a partir da aproximação e da contínua escuta dos segmentos erigidos nas chamadas informalidades. É fundamental e urgente o comprometimento do poder público com a regulação democrática das práticas de trabalho, do acesso à moradia, entre tantas outras dimensões nas quais os ilegalismos podem ser observados, gerando segurança e bem- estar para concretização do que se possa considerar como pleno “direito à cidade”.
Revisão: Renata Melo
*Lenin Pires é professor do Departamento de Segurança Pública da UFF, integra a rede Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC), coordenando o Laboratório de Estudos sobre Conflitos, Cidadania e Segurança Pública (LAESP).
**Taísa Sanches é pesquisadora de pós-doutorado (FAPERJ) e professora visitante no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Integra a rede Observatório das Metrópoles (Núcleo RJ).
***Lucas Bernardo Dias é gestor público especialista em gestão municipal, mestre em planejamento urbano e regional pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente integra a rede Observatório das Metrópoles (Núcleo RJ).
****Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Mariana Pitasse