O país nunca prestou atenção nas mulheres negras como contribuintes, como donas da sua história
Dois novos livros de Ana Maria Gonçalves devem chegar ao público até o fim de 2024. As novas produções literárias tratam da temática racial e vêm 18 anos depois de a escritora mineira ter lançado Um defeito de cor (Record), cujo sucesso não para e, inclusive, vive novo boom de vendas.
Tema do samba enredo da Portela neste ano e de uma exposição de 131 artistas que, percorrendo o país, está agora em cartaz no Sesc Pinheiros em São Paulo, Ana Maria considera que Um defeito de cor “furou a bolha da literatura”.
“O desfile da Portela foi algo que eu nunca imaginava que poderia acontecer”, contou Gonçalves em entrevista exclusiva ao programa Bem Viver, do Brasil de Fato. Em abril, pouco depois de o enredo ser escolhido, a fila para autógrafos deu voltas em torno da quadra da escola e os livros esgotaram no primeiro dos três dias de um evento literário da Portela.
No período que se seguiu, pessoas passaram a se juntar na quadra da escola de samba carioca, na rua Clara Nunes, para ler e debater Um defeito de cor em um grupo de leitura organizado pela rainha da bateria, Bianca Monteiro.
A ficção histórica é protagonizada por Kehinde, uma africana escravizada nascida em 1810. A personagem é baseada em uma mulher que, como escreve Ana Maria, pode ser “uma lenda”, “inventada pela necessidade que os escravos tinham de acreditar em heróis, ou no caso, em heroínas” ou “inventada por um filho que tinha lembranças da mãe apenas até os sete anos”. Mas também, agrega, “pode não ser”. Este filho, nascido livre e vendido ilegalmente como escravo, se tornaria um dos mais importantes abolicionistas do Brasil.
Mas se os temas do livro ganharam outras linguagens artísticas, antes disso ele furou uma bolha dentro da própria literatura. Em 2006, após anos de pesquisa e a reescrita do livro por 19 vezes, Ana Maria Gonçalves foi a oitava mulher negra a publicar um romance no Brasil.
Os motivos de apenas oito romances de autoras negras terem sido lançados no país ao longo de 147 anos, os caminhos abertos a partir daí, a figura de Luiza Mahin, o divisor de águas que foi a revolta dos Malês em 1835 e as disputas sobre a história oficial do Brasil são alguns dos temas da conversa com Ana Maria Gonçalves.
Confira a entrevista:
Brasil de Fato: A exposição Um defeito de cor está em cartaz no Sesc Pinheiros, depois de ter passado por outras cidades. Como foi esse processo de curadoria e de pensar no livro imageticamente, a partir do olhar de 131 artistas?
Ana Maria Gonçalves: Essa exposição surgiu da ideia do Marcelo [Campos] e da Amanda [Bonan], que são os curadores do Museu de Arte do Rio. Quando me procuraram, já tinham mais ou menos uma ideia que não seria uma adaptação literal do livro. Acho que nem daria. Então, não é uma exposição sobre o livro: é uma exposição em diálogo com o livro. E me chamaram para fazer a co-curadoria com eles.
Então a gente decidiu que ia fazer uma exposição que passasse pelos 10 capítulos do livro. Com a maioria de artistas negros e negras, eu acho que não teria como ser diferente, já que o livro é a história oficial do Brasil contada através dos olhos e da experiência de uma mulher negra, que eu coloco como a personagem Kehinde, inspirada na figura da Luiza Mahin, mãe do Luiz Gama.
São pinturas, esculturas, jóias, panos, instalações, vídeos, tem uma experiência sensorial com a música também. Então a ideia era essa: cada um contribuir com um pouco para contar essa história do Brasil. Não só de maneira histórica, mas tratando de temas ainda extremamente contemporâneos. Como racismo, violência, ou seja, coisas que nos afetavam, passa pelo livro na época da escravidão, mas está aí em obras muitos atuais. E furar a bolha da literatura. Eu acho que isso é extremamente importante também.
Falando em furar a bolha da literatura, o livro foi tema do samba-enredo da Portela neste ano. De 2006, quando Um defeito de cor foi publicado, para cá, tiveram fases de boom do livro. Você acha que agora está numa nova fase, por conta de iniciativas como essas, da exposição e do carnaval?
Sim. O livro nunca parou de vender. Acho que a exposição trouxe uma visibilidade e o desfile da Portela foi algo que eu nunca imaginava que poderia acontecer.
A Portela tem certa tradição de tratar de temas literários. Tem também uma feira literária, a Fliportela. Esse ano acontece em agosto, mas ano passado foi em abril, logo no início do desenvolvimento do enredo.
A editora levou livros que achou que dava para vender nos três dias e esgotou no primeiro. Eu lembro de a fila de autógrafos dar voltas e voltas na quadra da escola. As pessoas estavam muito interessadas em ler o livro, entender o enredo. A Bianca Monteiro, rainha de bateria da Portela, junto com o professor Virgílio, fizeram um grupo de leitura. Então o pessoal ia para a quadra ler o livro junto e discutir.
Isso culminou num desfile em que estava todo mundo entendendo muito bem qual a contribuição que ia trazer, qual a história que estava sendo contada, qual a parte da história que o afetava e o que o fazia ir para a avenida defender o samba e a escola.
E durante o desfile o livro esgotou. Isso que já tinha sido impressa uma nova edição menos de uma semana antes do carnaval. Então a editora estava preparada, só não estava preparada para o frenesi que realmente foi, né? Esgotou essa primeira edição que já estava preparada para a venda do Carnaval e, nas duas semanas seguintes, esgotaram mais três edições. Então, com certeza, furada de bolha total.
Da publicação do livro Úrsula da Maria Firmina dos Reis em 1859, até a publicação de Um defeito de cor em 2006, foram oito romances escritos por mulheres negras no país. Você pode comentar tanto sobre o número tão baixo neste intervalo de quase um século e meio, quanto sobre a produção cultural e o reconhecimento de autoras e autores negros das últimas quase duas décadas, desde que seu livro saiu?
Eu fui a oitava escritora negra a publicar um romance no Brasil. Eu acho que isso diz do país. Um país que nunca prestou atenção nas mulheres negras como contribuintes, como intelectuais, como donas da sua própria história e da sua capacidade de contar o teu ponto de vista da história do país.
E diz muito também da indústria literária. Acho que a literatura é uma das artes mais elitistas do Brasil. Com as grandes editoras concentradas basicamente no Rio de Janeiro e em São Paulo, publicando romances de uma panelinha de gente que se indica.
Tem um trabalho da professora Regina Dalcastagne, da Universidade Nacional de Brasília (UnB), em que ela fez uma análise do mercado literário brasileiro e algo em torno de 80% a 85% dos romances publicados no Brasil são escritos por homens brancos do Sudeste. Então é também uma marca deste mercado, coordenado por homens brancos que publicam seus pares.
Eu acho que o livro pode ter contribuído para mudar um pouco da mentalidade desse mercado também. Desde que ele foi lançado, foi muito bem recebido por crítica, por leitores, pela academia e eu acho que nos dez anos seguintes aí a gente tem mais onze livros publicados por romancistas negras. Então teve uma melhora, que se a gente for pensar em termos de números é mínimo: quase um por ano.
Mas eu acho que abriu os olhos para uma demanda reprimida. Ou seja, o mercado não está publicando a gente agora porque ele é bonzinho, porque quer fazer inclusão, mas porque viu que realmente é um lugar onde se faz dinheiro também. É no que eles estão interessados, enfim.
E eu acho que trouxe uma contribuição extremamente grande porque a gente está disputando narrativas. Ou seja, a história oficial que foi contada para a gente, a gente também está entrando ali e falando “olha, não foi só assim, né? Acontece assim também”.
Você fez muita pesquisa para escrever o seu livro. Como é esse processo imaginativo de saltar da bibliográfica científica para a criação de personagens, de trajetórias humanas que contem, de forma ficcional, partes da história do Brasil? Qual papel você acha que a ficção histórica tem neste sentido de contar outra perspectiva em relação à história tida como oficial?
Uma coisa que eu disputo sempre é essa diferença entre a história oficial e a versão. Um defeito de cor não é uma versão, é a história oficial do Brasil também. Contada a partir do ponto de vista de uma mulher negra. Porque a partir do momento em que eu considero essa divisão, eu admito que existe uma história que não é a minha, da qual eu não faço parte.
Eu nunca tinha feito pesquisa. E eu entendi durante o processo de pesquisa para escrita de Um defeito de cor - que durou dois anos -, o que eu gosto. Eu falo que sou uma reescritora. Acho que eu gosto mais da parte da pesquisa e da reescrita do que da escrita em si.
Contraditoriamente, o processo de pesquisa foi o mais emocional para mim. Parafraseando a Toni Morrison, que falava que escrevia os livros que queria ter lido e não encontrou, acho que Um defeito de cor também foi isso para mim. Porque eu não tinha encontrado ainda um livro que reunia aquela quantidade de informações que iria nutrir uma necessidade minha naquele momento, que era me entender como mulher negra num país racista como o Brasil.
Então ter contato com as informações é que foi a parte emocional para mim. De realmente chorar, de entender, de me emocionar, de me revoltar.
E durante esse processo da pesquisa fui fazendo um pré-roteiro, digamos assim, da história que eu queria contar. E sentar para contar é um processo muito técnico. Tem escritores que trabalham de maneira completamente diferente, às vezes inversa. Mas o processo de escrita para mim é prático, quase braçal.
E aí depois a reescrita é burilar o texto, acho que é o que me dá mais tesão. É você achar a palavra que queria dizer, deixar a frase com uma musicalidade redondinha. Isso é o que me faz de verdade sentir que consigo escrever. E eu reescrevi esse livro 19 vezes até chegar numa versão que falei “não consigo mais melhorar, é isso aqui”. Foram dois anos de pesquisa, um de escrita, dois de reescrita.
No início do livro você conta como se deparou com esse tema, como o tema se deparou com você. E aí você cita um livro do Jorge Amado que literalmente caiu na sua frente, e que em algum momento ele fala do Alufá Licutã, da Revolta dos Malês e faz uma provocação, pergunta onde estão os jovens historiadores para contar essa história, repor a verdade, diz que é um tema para um grande romance. Você acha que cumpriu essa missão lançada por Jorge Amado?
Acho que sim. Ou seja, a rebelião Malê é uma história que eu nunca tinha ouvido falar, né? E entendi como uma das rebeliões mais importantes da história do Brasil. Acho que a história da escravidão começou a ser mudada ali.
Foi quando as pessoas do poder, os brancos, começaram a entender a intelectualidade, a entrega, a vivência, a agência que havia dentro das comunidades negras. Que era quase uma vida subterrânea, principalmente dentro desses grandes centros urbanos, como Salvador.
Eu acho que não só por causa do livro, mas porque o tema começou a interessar mais pessoas também, a gente começou a entender o que era. E mudar uma imagem que se tinha, por exemplo, de escravizados passivos, gente que não era dona do próprio destino. Começou-se a entender ali uma individualidade, uma agência. E a revolta realmente mudou o curso da história e do entendimento do que seria o futuro do Brasil naquele momento. Então, se o livro contribuiu para isso, eu estou bem feliz.
Tem um tanto de mistério em torno da história do livro porque é uma ficção baseada em histórias reais, e a própria figura da Luiza Mahin é um mistério. Se tornou um símbolo, inclusive evocado pelo movimento negro. Ao mesmo tempo, do ponto de vista historiográfico, são levantadas dúvidas se ela de fato existiu ou qual foi a sua história, a partir da lembrança que Luiz Gama descreve numa carta para um amigo. E você cita um manuscrito que encontrou. Fique também à vontade se preferir não responder essa pergunta e manter o mistério, mas esse manuscrito realmente apareceu ou foi uma inspiração imaginativa? Você de fato encontrou pistas sobre a Luiza Mahin?
Eu falo desse manuscrito no prólogo do livro. E tudo o que está no prólogo é verdade - menos o manuscrito. O manuscrito foi uma ferramenta literária para... no início eu não entendi direito, porque eu escrevi o livro naquela ordem que ele aparece. Então o prólogo foi a primeira coisa que eu escrevi. Quando eu terminei o livro, falei “acho que vou arrancar esse prólogo”. Aí a editora perguntou “onde está o manuscrito?”. Eu falei “você acreditou? Ah, então vou deixar” (risos).
O interessante é que traz elementos para a gente discutir coisas importantes que você elabora na pergunta. Muita gente me pergunta “Luiza Mahin existiu?”. E aí eu digo, “graças a Deus eu não sou historiadora e não preciso dar minha opinião com base em documentos. Sou uma ficcionista”.
E para mim não tem motivo para se duvidar da voz de Luiz Gama. Se ele está falando “essa é minha mãe, a minha mãe fez isso, fez aquilo”, por quê que a gente está duvidando da palavra dele? Por que ele é um homem negro? Porque duvida-se da nossa contribuição para o desenvolvimento dessa história?
Então isso é problema dos historiadores, para mim é assunto encerrado. Luiz Gama disse que a mãe dele era essa e que ela existiu assim, para mim está perfeito. Tanto que eu escrevi 900 e tantas páginas para tentar dar conta da vida desta mulher. Hoje eu me sinto feliz de ter deixado este prólogo para poder tocar nesses assuntos.
Você escreveu uma obra prima da literatura brasileira. É difícil a continuidade depois de escrever uma obra deste tamanho? Tem algum livro que você gostaria de ler e, por não ter encontrado, está escrevendo?
Eu acho que só vale a pena escrever sobre assuntos que eu ainda não consegui ler sobre, que me ajudem a me situar no mundo. Eu sou uma escritora de pesquisa. Então, já tiveram coisas que eu falei “quero escrever sobre isso”, aí comecei a pesquisar e de repente achei um livro que satisfez a minha curiosidade. Aí eu acho que não tem mais por quê.
Foi bem difícil depois de Um defeito de cor. Fiquei quase sete anos sem conseguir escrever nada. Se começava, nunca conseguia chegar ao fim. Uma cobrança minha, cobrança de leitores, de um novo livro.
E a partir daí eu entendi que meu tema é racismo, nas suas mais diversas manifestações, e que me interessa contar uma história, né? Então nesse meio tempo eu fui escrever para teatro, para cinema, começando agora para TV. E sai, eu acho que no final do ano agora, um ou dois livros. Vamos ver...
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Edição: Matheus Alves de Almeida