As plataformas digitais sempre resistiram a regulamentação, mas essa resistência ganhou nova forma
Por Alexandre Arns Gonzales*
A conjuntura está marcada pelo aquecimento do debate regulatório sobre as plataformas digitais – a exemplo da discussão na Unesco, em 2023, sobre regulação de plataformas e a agenda sobre integridade da informação na cúpula do G20, em 2024. Resistir às tentativas regulatórias, as plataformas digitais sempre resistiram, mas essa resistência parecia ser operada através de um duplo movimento: por um lado, através do enfrentamento direto às iniciativas regulatórias; e, por outro, pequenas doses de concessões de transparência sobre seus serviços, sobretudo a cada novo ciclo eleitoral.
Como exemplo de enfrentamento direto, há o caso de 2021 na Austrália, quando o Google ameaçou e a Meta cumpriu, recuando depois, o bloqueio de acesso às noticias em seus serviços. Tratava-se de uma resposta à lei australiana que obrigava as empresas remunerarem o jornalismo e os grupos de comunicação pelas notícias publicadas em suas plataformas digitais. O mesmo ocorreu em agosto de 2023, no Canadá, mas dessa vez, até o presente momento, sem recuo por parte da Meta que, desde então, mantém bloqueado o acesso à notícias em suas plataformas no país. Outro caso é no próprio Brasil, quando em 2023 as plataformas digitais violaram os próprios termos de uso e destinaram grandes inversões de dinheiro em propaganda contra o projeto de lei, que previa obrigações das plataformas digitais quanto à identificação e combate aos riscos sistêmicos decorrentes dos seus sistemas; obrigações de transparência sobre suas ações, humanas e algorítmicas, de moderação de contas e conteúdos; entre outras questões.
Quanto às pequenas doses de concessões, isto tem sido praticado, especialmente, a cada novo ciclo eleitoral. Desde 2018, ao menos até 2022, as plataformas digitais fazem acenos com a implementação de alguns meios de transparência, como a Biblioteca de Anúncios da Meta e o Relatório de Transparência sobre Publicidade Política do Google, e alguns compromissos, como, por exemplo, remoção e sanção sobre conteúdos que reproduzissem alegações falsas de fraude sobre as urnas eletrônicas. Embora insuficientes para constituir um efetivo escrutínio público e social sobre o poder privado que essas plataformas detém sobre o discurso público, essas iniciativas – na ausência de outros instrumentos mais efetivos de transparência – são importantes e foram conquistadas a partir de pressão de setores da sociedade e autoridades públicas. Mas o problema está aí. Antes de mais nada, elas são concessões das empresas de plataformas digitais à sociedade e assim como podem oferecer, também podem retirar.
Mesmo diante de um histórico recente de desova de golpistas sobre o Capitólio dos Estados Unidos da América (EUA) em 2021, sobre a Praça dos Três Poderes do Brasil em 2023 e delações de ex-funcionários, expondo a desconsideração das empresas aos riscos de seus serviços sobre a integridade eleitoral, as plataformas digitais iniciaram um movimento de retirada das concessões: em junho de 2023, o YouTube anunciou que suspenderia as remoções de conteúdos que reproduzissem alegações falsas sobre fraude nas eleições de 2020 no EUA; e a Meta suspendeu a manutenção CrowdTangle, ferramenta que permitia um relativo monitoramento do alcance e engajamento de determinados conteúdos publicados no Facebook e Instagram. As plataformas digitais estão dobrando a aposta em uma linha política de menosprezo aos riscos que seus sistemas algorítmicos oferecem ao discurso público, em geral, e à integridade eleitoral, em específico? Se sim, quais as causas para esta mudança de postura agora?
Das múltiplas causas possíveis, penso em uma, sem menosprezo às demais possíveis: a cobrança de grandes grupos acionistas com o enxugamento de despesas operacionais das empresas de plataformas digitais.
A expressão pública mais evidente do movimento das grandes plataformas digitais em reduzir seus custos, para atender as demandas de maiores margens de lucros, está nas ondas de demissões em massa que empresas como Meta e Google tem iniciado desde o último trimestre de 2022. Tanto a Meta quanto o Google, desde então, tem registrado taxas negativas de contratação. Em paralelo, podemos pensar que, de certa maneira, cada nova regulação aprovada por um país no mundo, pressiona por alguma elevação de suas despesas porque, afinal, demanda trabalho e tempo para organizar, tratar e expor informações internas para atender as exigências de prestações de contas, seja para executar os pagamentos bilionários por notícias e direitos autorais, como o caso da Austrália e Canadá; seja para atender a produção periódica de relatórios de transparência, cujo caso emblemático é a Lei de Mercados Digitais e a Lei de Serviços Digitais da União Europeia
À União Europeia a Meta informou que, dentro do universo de 40 mil trabalhadores da empresa, 15 mil são moderadores de conteúdos, terceirizados ou não. Entre abril e setembro de 2023, a empresa informou que havia 1.362 moderadores especializados em algum dos 24 idiomas da União Europeia e dedicados ao bloco de países. A maior era a equipe especializada em alemão (242 pessoas), que é a maior delas; francês (226); italiano (179); espanhol (163); inglês (109); polaco (65) e português (58). A Google, com relação ao YouTube, sublinhou que os números que ela apresenta de trabalhadores não representam o número total de moderadores únicos especializados em determinado idioma, mas o número total de moderadores que, entre janeiro a junho de 2023, avaliaram conteúdo em determinados idiomas. Isto significa que no seu relatório há uma sobreposição de contagem. Por exemplo, o YouTube teve 15.142 moderadores avaliando conteúdos em inglês na União Europeia e, a título de contraste, 464 moderadores avaliando conteúdos em português.
Diante deste cenário, não é estranho ponderar que os investimentos materiais e humanos para atender as exigências de segurança nas plataformas digitais seja redirecionado e concentrado sobre os países em que há a instituição de regras de transparência e responsabilizações duras, deixando outros países descobertos em termos desses investimentos. Da mesma forma não é estranho pensar também que as empresas prefiram dobrar a aposta no enfrentamento, endurecendo sua resistência contra novas regulações que possam representar novos custos e, em última instância, expor irregularidades e contradições das métricas e informações sobre suas ações e discursos. Recorrer à instrumentalização ideológica sobre uma ideia de suposta “liberdade” para aliar-se, como foi o caso no Brasil, às forças de extrema-direita, seja na disputa em torno de legislações no Congresso Nacional, seja atacando a legitimidade das investigações sobre os golpistas de 8 de janeiro de 2023, faz parte dessa estratégia de endurecer suas ações contra iniciativas que instituam meios de escrutínio público e social sobre seus modelos de negócios.
*Pesquisador colaborador voluntário do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília e bolsista de pós-doutorado do Instituto da Democracia e Democratização da Comunicação (IDDC-INCT).
Edição: Matheus Alves de Almeida