Coluna

Tirar o aborto do canto, do canto silencioso do segredo

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Manifestante pelo direito ao aborto durante a Marcha Mundial das Mulheres - Elaine Campos/Acervo Marcha Mundial das Mulheres
Toda vez que nos calamos abrimos espaço para que a extrema direita reforce sua visão patriarcal

Por Sonia Coelho e Maria Fernanda Marcelino*

A prática de abortar existe desde que a humanidade existe. É um evento frequente e cotidiano da vida das mulheres. Ao longo da história, a prática foi aceita ou criminalizada, dependendo das dinâmicas dos interesses sociais e econômicos do capitalismo patriarcal e racista em cada país e território. 

Nos anos 70, dentre outras agendas, o movimento feminista trouxe para o debate público e coletivo a questão das sexualidades das mulheres e a imposição da heterossexualidade como único modelo para as mulheres se relacionarem, baseado nos desejos apenas dos homens. As mulheres exigiram autonomia e liberdade para seus corpos e subjetividades, mas também contracepção para não engravidar, e o direito de decidir quando manter ou não uma gravidez. Ou seja, pautamos que a maternidade não pode ser obrigatória e que as mulheres têm direito a ter autonomia e soberania sobre seus corpos e sua vida. 

Em muitos países da Europa e também nos Estados Unidos, o aborto foi legalizado a partir desta luta feminista. Segundo um estudo da ONG Centro para Direitos Reprodutivos, em 77 países o aborto é legalizado. Em outros países, as condições em que se pode fazer o aborto variam dentro de alguns permissivos, que vão desde salvar a vida da mãe, em casos anencefalia, gravidez decorrente de estupro, assim como condições sociais, dentre outras. 

No entanto, 22 países proíbem a prática do aborto em qualquer circunstância, como é o caso da Nicarágua e El Salvador aqui no continente, onde uma mulher pode morrer em caso de ter uma gravidez ectopia (nas trompas) por não poder realizar o procedimento para salvar a sua vida, assim como ela pode ser castigada com prisão caso tenha um aborto espontâneo e não consiga provar. É cruel!

No Brasil, desde 1940 o Código Penal prevê o aborto em casos que visam salvar a vida da mãe, casos de gravidez resultante de estupro,  e mais recentemente, em casos de anencefalia. Porém muitas mulheres pobres e negras, e principalmente crianças, não têm acesso a este direito, a grande maioria dos municípios brasileiros não tem este serviço oferecido pelo SUS, ao mesmo tempo que os governos dos estados e municípios têm se negado a abrir este tipo de atendimento nos hospitais, e pior, fechando serviços de referência de aborto legal, como no caso de São Paulo com o hospital Nova Cachoeirinha e Jabaquara. Isso empurra as mulheres que têm direito ao aborto legal para procedimentos clandestinos e arriscados.

As mulheres que abortam em situação de clandestinidade recorrem as mais variadas situações e procedimentos, o que revela as grandes e estruturais desigualdades, pois as mulheres que mais morrem, as que ficam com sequelas físicas, psicológicas, são processadas e presas, são em grande parte mulheres da classe trabalhadora, pobres, negras, jovens e com baixa escolaridade, principalmente. 

Isso não é de agora, desde o final dos anos 80 e início dos anos 90, os setores conservadores já colocavam em suas pautas a necessidade de maior criminalização do aborto para se contrapor à  luta feminista pela legalização. Essa estratégia não ocorreu apenas no Brasil, mas foi e segue sendo construída internacionalmente, vide a cruzada empreendida por setores das igrejas junto com outras alas reacionárias contra o que eles chamam de “ideologia de gênero”

Hoje, os setores conservadores e a extrema direita seguem se articulando e se organizando para colocar o tema da criminalização do aborto, os direitos das mulheres e da população LGBTQIA+ no centro da política como parte de seu projeto e disputa política e ideológica. Essa ofensiva, a partir dos temais ligados à “moral e costumes”, é usada como uma forma de acirrar a lógica patriarcal, racista e capitalista, e fortalecer seu projeto fascista e ultra neoliberal para minar a democracia brasileira. 

Tais movimentações deste campo significou, por exemplo, o fim de iniciativas de educação sexual nas escolas, maior perseguição e violência contra as pessoas LGBTQI+, e a distribuição de livros e vídeos reacionários e preconceituosos nas escolas. 

O crescimento da extrema direita tem expressões em muitas partes do mundo, com figuras abomináveis como Donald Trump, nos EUA, Victor Orban na Hungria, Mohammad bin Salman, na Arábia Saudita, e aqui no Brasil, com Jair Bolsonaro. Nos EUA, Trump conseguiu, por exemplo, alterar os membros da Suprema Corte colocando pessoas aliadas a questões religiosas e contra o aborto, e que hoje estão criando uma situação dramática no país, de verdadeiro retrocesso nas leis que asseguravam os direitos sexuais e reprodutivos nacionalmente, e deixando a decisão para os Estados. Neste contexto, onde o conservadorismo é mais forte, as mulheres pagam a conta.

Em contrapartida, uma recente e boa notícia foi o caso da França, quando o governo e setores feministas e de esquerda perceberam a movimentação da extrema direita no país, rapidamente se mobilizaram para colocar o direito ao aborto na constituição, o que dificultará qualquer manobra dos grupos de extrema direta e assegura a cidadania das mulheres.

Uma das várias estratégias da extrema direita é manter o aborto como um assunto tabu. Tentam através de projetos de lei regredir as leis mínimas existentes, difundindo a ideia de que as mulheres são irresponsáveis e sem discernimento, como se as mulheres não fossem sujeitas de direitos.

São discursos que enfatizam uma falsa preocupação com a vida dos não nascidos no ventre das mulheres. Uma contradição sem tamanho, já que são os mesmos que defendem o armamento da população e festejam uma ação policial em que as balas perdidas matam crianças indo pra escola. São os mesmos que impedem que a saúde pública, a construção de escolas e creches, e tantas outras políticas públicas possam ser fortalecidas, construídas e ampliadas com qualidade. Ou seja, são a favor da vida, mas ignoram o fato concreto de que mulheres da classe trabalhadora que decidem por exercer a maternidade não têm acesso à  condições materiais e/ou dignas para educação e cuidados com as crianças.

Por que não podemos falar em aborto?

O aborto é uma prática muito presente nas famílias, mas é tratado como segredo, tabu, tratado como algo vergonhoso que não pode ser dito.  E é justamente em períodos eleitorais, por exemplo, que a extrema direita usa o tema como estratégia sensacionalista para deslegitimar sua concorrência, relacionando o tema como se fosse uma informação “bombástica” que pode ameaçar a disputa eleitoral, assim como usam de chantagem para intervir nos discursos da esquerda sobre a temática. São várias as formas de esvaziar o debate e gerar desinformação e preconceito, para que apenas as vozes que querem criminalizar as mulheres pela prática do aborto possam ser ouvidas e ecoadas.

Enquanto isso o tema é tratado como se fosse um assunto prioritário de líderes religiosos, parlamentares, juízes, médicos, ou seja, homens, que atualmente ecoam com mais força as ideias de criminalização da prática. Mas não só, pois sabemos que as mulheres lideranças da extrema direita também se fazem presentes nestes discursos.

Neste sentido, falar, informar e debater a prática do aborto e temas ligados a sexualidade é fundamental para quebrar os preconceitos, estigmas e tabus contra as pessoas que abortam, mas também porque pautar corpos e subjetividades livres é parte da reconstrução da democracia no Brasil. Temos que disputar uma visão de democracia que incorpore a dimensão das desigualdades vividas no dia a dia das mulheres, pessoas LGBTQI+, população negra, indígenas, enfim, todo o povo.

Quando é tempo para falar de aborto?

O debate sobre o aborto é tratado com muitas dificuldades por parte da esquerda e de setores dos movimentos sociais. Na campanha eleitoral o debate é interditado porque dizem que o tema provoca perda de votos; em um contexto de um governo eleito pelo povo e principalmente pelas mulheres, como no caso de Lula,  o debate é muitas vezes interditado para não inflamar a extrema direita, uma vez que  o governo precisa negociar outras pautas; e em contextos em que somos oposição, como durante o governo Bolsonaro, não se pode falar sobre o assunto porque seria visto como “cortina de fumaça” e o foco dos debates precisam ser outras agendas mais amplas. 

Tais exemplos ilustram complexidades e dificuldades da esquerda e dos movimentos sociais em compreenderem de fato as pautas e demandas das mulheres e do feminismo, e que tais lutas são também constitutivas da luta de classes e da construção de um projeto socialista de igualdade, como diria Nalu Faria, liderança da Marcha Mundial das Mulheres, falecida em outubro passado.

Esta ideia de recuo e necessidade de ceder nas agendas e a dificuldade de enfrentar temas que parecem “difíceis” fortalecem a visão “moral e religiosa” defendida pela extrema direita, como se eles fossem portadores da verdade e de valores que toda a sociedade deveria seguir. 

Silenciar não é a solução. Toda vez que nos calamos abrimos espaço para que a extrema direita reforce sua visão patriarcal, racista e ultra neoliberal, além de mobilizar setores da classe trabalhadora que acaba tendo estes setores como referência pois é a única voz pública na sociedade.

A estratégia usada pelas mulheres argentinas ao longo de quase duas décadas nos inspiram, elas realizaram encontros nacionais e se colocaram nas ruas, pressionando os partidos de esquerda e sindicatos a se posicionar, assim como escancararam o tema, especialmente com as mais jovens. A maré verde ocupou a mesa de jantar, diziam as Socorristas em Rede, mulheres argentinas que acompanham outras mulheres para abortar de forma segura. Elas nunca se colocaram como um grupo clandestino, realidade possível diante da cultura daquele país e da popularização do debate dentro dos lares.

Em casa, na Unidade Básica de Saúde (UBS) e hospitais

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), experiências de países onde o aborto é legalizado e das próprias mulheres que o realizam com pílulas, por exemplo, demonstram que é uma prática segura, eficiente, não invasiva e barata – não fosse a clandestinidade. Inclusive a utilização desse método prescinde de atendimento especializado, podendo tanto médicas/os como enfermeiras/os e redes como as Socorristas em Rede, na Argentina, fornecer informação orientação, cuidados e acolhimento.

Neste âmbito é importante destacar também que apesar das mulheres seguirem sendo vítimas de golpes no ambiente virtual, foi com a popularização da internet que elas encontraram conexões com outras mulheres e puderam ter acesso a informações seguras de como usar corretamente os comprimidos, além de apoio emocional para concluir o procedimento em casa, sem intercorrências. 

Por isso sabemos que casos de aborto poderiam tranquilamente ser acompanhados por profissionais da saúde nas UBS e feito em casa. Isso rompe com o senso comum de  que o aborto é sempre um procedimento perigoso e que deixa traumas. O que deixa traumas e  sequelas é a clandestinidade, o julgamento, o procedimento feito em condições inseguras e sanitárias precárias.

Não fazemos sozinhas, portanto não precisamos abortar solitárias

A decisão é das mulheres, mas as condições para acessar ao procedimento é responsabilidade de toda a sociedade. E neste sentido, é preciso refletir já que também são sujeitos nesta relação. Uma mulher tem capacidade de engravidar apenas 1 vez a cada 9 meses, seu período fértil é de aproximadamente 5 dias em um ciclo de 28 a 30 dias, já os homens tem condições de engravidar uma mulher a qualquer momento, estão sempre férteis e no entanto não são cobrados, recriminados, ou criminalizados. 

Por isso a criminalização do aborto apenas justifica-se para colocar e manter as mulheres em lugar de subordinação, controlando o corpo, a sexualidade e aliado também ao controle do trabalho das mulheres, numa ótica que permita que o sistema opere reproduzindo as opressões.

Recentemente, em março deste ano, o Ministério da Saúde (MS)  elaborou uma nota técnica inteiramente baseada na ciência e dentro do que está previsto em lei, mas após as pressões da extrema direita, o MS recuou. O SUS, através do Ministério da Saúde, precisa urgente retomar com força as pautas dos direitos sexuais e reprodutivos, pois o seu recuo fortaleceu setores conservadores. 

Vemos isso no caso do Conselho Federal de Medicina (CFM), que publicou no início de abril a Resolução nº 2.378  determinando a proibição da utilização da técnica de assistolia fetal utilizada em procedimento de aborto em casos de estupro de gestações acima de 22 semanas. A norma é totalmente contrária a lei de 1940 para impedir que médicos façam o procedimento de aborto em gestações mais avançadas, como acontece muito em casos de crianças e adolescente vítimas de estupro  que engravidam, e que por isso têm mais dificuldade de saber que estão grávidas. Nestes casos, a família só percebe quando a gravidez está avançada.  

A pedido de ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal, Sociedade Brasileira de Bioética e Centro Brasileiro de Estudos da Saúde, a resolução foi suspensa no dia 18 de abril. O CFM deve recorrer, o que ainda representa um risco de retorno da resolução. 

Por isso enfatizamos o tempo inteiro que é  responsabilidade do Poder Executivo prover políticas que protejam as mulheres e meninas, que contribua com a formação das equipes de atendimento e qualifique os protocolos do SUS, para um melhor acolhimento, a exemplo da experiência do Uruguai que, antes de legalizar o aborto, ofertava orientação para redução de danos e assim proteger a vida e saúde das mulheres.

Os governos populares precisam falar e agir sobre esta agenda,  mesmo entendendo seus limites pelas coalizões, precisam criar estratégias para sair do cerco da extrema direita e pautar a questão da despatriarcalização e laicidade do estado, acolher as mulheres e se somar as nossas vozes por um mundo justo, com igualdade, como, nós, feministas dizemos: por uma vida que vale a pena ser vivida para todas as pessoas!

*Sonia Coelho é assistente social e Maria Fernanda Marcelino é historiadora. Ambas são militantes da Marcha Mundial das Mulheres e integram a equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista.

** ** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Matheus Alves de Almeida