Nas primeiras horas do dia 25 de abril de 1974 forças armadas progressistas derrubaram a ditadura salazarista que governou Portugal por mais de quatro décadas. O movimento conhecido como Revolução dos Cravos não apenas instituiu a democracia no país, mas também levou à independência de ex-colônias na África - cujas lutas de independência foram cruciais para que ela ocorresse - e deu esperança para povos que ainda ansiavam por liberdade, como o nosso. O Brasil de Fato preparou algumas reportagens para contar a história e marcar o aniversário de 50 anos da Revolução dos Cravos. Clique aqui para acessá-las.
"Grândola, Vila Morena
Terra da Fraternidade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó cidade"
Quando os versos da canção acima foram transmitidos pela Rádio Renascença de Portugal às 00h25 da madrugada do dia 25 de abril de 1974, não apenas foi dada a senha para a mobilização de militares que derrubaram a ditadura salazarista no país. A então relativamente pouco conhecida música de Zeca Afonso se tornou imediatamente um clássico, para sempre identificada com a tomada de poder pacífica. O hino da Revolução dos Cravos.
Pouco mais de uma década depois, era possível escutar esses versos em rádios brasileiras. Era 1987 e o suave fado da original havia sido substituído pelo punk da versão da banda paulista 365.
"A música Grândola, Vila Morena do 365 foi importante para a minha geração por ser reflexo do quadro político da época", diz Eduardo Rocha, jornalista e professor universitário. "Ela me permitiu um diálogo maior com a história, conhecer o movimento revolucionário de Portugal."
"Tinha a estética punk, que era a minha formação nos anos 80 e o conteúdo político, que tinha tudo a ver com o cenário de reconstrução pelo qual o Brasil passava."
O país vivia um momento de efervescência política, com a ditadura oficialmente terminada, mas resistindo em vários aspectos. De outro lado, o rock nunca havia sido - e nunca seria novamente - tão popular no Brasil, com Rádio Pirata ao Vivo do RPM se tornando um dos discos mais vendidos no país em todos os tempos (é o quarto) e o lançamento de álbuns clássicos como Cabeça Dinossauro dos Titãs e ll do Legião Urbana - todos lançados em 1986.
"O disco [do 365] foi lançado em um momento em que a democracia ainda não estava plenamente consolidada no país, com o prosseguimento de elementos da ditadura no processo de 'transição controlada' (o próprio presidente da República, José Sarney, foi responsável por censurar o filme de Je Vous Salue, Marie (1985), de Godard) e com uma Constituição ainda em processo de elaboração pela Assembleia Nacional Constituinte", explica o historiador André Santoro Fernandes.
"Portanto, a opção pela música não parece, simplesmente, casual, mas diretamente relacionada às demandas do período. Grândola, Vila Morena se tornou simbólica não apenas na Revolução dos Cravos, mas para os próprios punks do Brasil", completa.
Porta de entrada para a História
"Em 1974 fui acompanhar meu pai que era músico, guitarrista de fado, e se apresentava bastante em um programa da TV Tupi, o Caravela da Saudade. Lá ouvi pela primeira vez a música e ela sempre ficou na minha cabeça", conta Ari Baltazar, guitarrista do 365.
"Quando começamos a banda, havia a campanha pelo voto direto [Diretas, já], o fim da ditadura e achei que tinha muito a ver as duas coisas, resolvi fazer uma versão à lá Sex Pistols."
"Muitas pessoas conheceram a música pelo 365 e quando descobrem a história dela, ficam com o queixo caído. É uma história linda, né?"
Até hoje, Grândola, Vila Morena é a música que encerra os shows da banda - que segue na ativa, com agenda de apresentações e gravando novas músicas. Mas, como a versão punk foi recebida em Portugal?
"Ela toca com frequência nas rádios rock de lá, em programas da TV e é encarada como uma homenagem muito respeitosa. Claro que sempre tem um ou outro que enxerga de forma negativa, mas a grande maioria entende a mensagem e a intenção."
Eduardo Rocha concorda, explicando que "no ano 2.000 estive em Portugal e, num trem, conheci um grupo de jovens na faixa dos 20 anos. Mencionei o 365 e eles todos começaram a cantar a versão punk. Foi muito emocionante."
Hino libertário
Grândola é uma cidade de menos de 7 mil moradores na região rural portuguesa do Alentejo. O termo "vila morena" do título é referência à cor castanha, da terra, das casas e dos rostos curtidos de sol de seus habitantes. Gravada em 1971, foi das poucas aprovadas pela censura salazarista para ser cantada no I Encontro da Canção Portuguesa, um mês antes da Revolução dos Cravos.
Apesar de não ser originalmente uma música de protesto, sua mensagem de solidariedade e democracia cativou os presentes no festival, que passaram a pedir sua execução em rádios. Na plateia do festival, estavam também comandantes que preparavam a insurreição militar. Eles já haviam decido que a senha para o início da Revolução seria o toque de uma música por rádio. Grândola, Vila Morena virou escolha natural.
Desde então, a canção se tornou uma espécie de hino libertário em Portugal, sendo entoada em protestos diversos - e não apenas nas celebrações do 25 de abril. Além do 365, ela foi regravada por diversos artistas, tanto brasileiros como portugueses. Veja abaixo a original de Zeca Afonso:
Edição: Leandro Melito