Rio de Janeiro

Coluna

Criminalidade e violência na produção dos territórios populares no Rio de Janeiro

Tráfico e milícia, parecem estar entrelaçados e ser alimentados por uma política de segurança pública ineficiente - Tomaz Silva/ Agência Brasil
A ação de grupos armados ligados às forças oficiais em territórios populares tem raízes históricas

Adauto Lucio Cardoso*, Daniel Hirata** e Orlando Alves dos Santos Junior*** 

A política de segurança deve estar na agenda das eleições municipais de 2024. O motivo pode ser descrito de modo muito simples: a criminalidade e a violência têm grande relevância na produção da cidade, impactando profundamente a vida cotidiana. Nesse sentido, o desafio é construir uma agenda de segurança pública orientada pela democracia, justiça socioespacial e pelo direito à cidade. Esse é o argumento defendido neste artigo. 

A atuação de grupos armados ligados às forças oficiais em territórios populares tem raízes históricas que remontam aos grupos de extermínio e às chamadas polícias mineiras. Nas últimas décadas, esse fenômeno tem ganhado novos contornos na metrópole do Rio de Janeiro, bem como em outras regiões metropolitanas brasileiras. No caso do Rio, essas transformações estão ligadas a diversos fatores. De um lado, testemunhamos a ascensão das facções organizadas do tráfico de drogas controlando diversas favelas cariocas.

De outro, a população da cidade vem assistindo à expansão das milícias e seu controle de diversos territórios populares.

Sobretudo aqueles situados nas periferias. Ambos os fenômenos, tráfico e milícia, parecem estar entrelaçados e ser alimentados por uma política de segurança pública ineficiente, violadora de direitos humanos, que tem demonstrado sua incapacidade de entender as dinâmicas da criminalidade e suas configurações socioterritoriais. 

Até aí nenhuma novidade. Mas algo recente merece atenção: temos assistido nos últimos anos a uma enorme capacidade dos grupos criminais de se reconfigurarem e se transformarem. O motivo é a busca por adaptação às políticas de segurança implementadas pelo Estado, inclusive por meio de cooptação de agentes públicos. Isso ficou evidente com as últimas denúncias apresentadas pela Polícia Federal e pelo Ministério Público sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco.

Nessa etapa, em que os mandantes foram, segundo as autoridades, apontados de forma cabal, emerge dentre os acusados uma família das mais tradicionais da cena política do Rio de Janeiro, com representantes em nível municipal, estadual e federal, do Tribunal de Contas do Estado, principal órgão de fiscalização e controle, além do chefe de polícia. Em seu conjunto, a rede criminosa que atuou na bárbara execução de Marielle mostra proximidade com práticas de contravenção, milícias e matadores profissionais, favorecendo seus negócios. 

No caso das milícias, o Mapa dos Grupos Armados do Rio de Janeiro, produzido pelo laboratório de pesquisa Novos Ilegalismos – GENI/UFF e pelo Instituto Fogo Cruzado, indica que as milícias têm avançado no controle dos territórios, investindo, inclusive, na expansão para novas áreas da cidade e da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Esse avanço não tem ocorrido apenas em áreas anteriormente dominadas pelo tráfico, mas também sobre territórios anteriormente não controlados.

Ao mesmo tempo, estudos acadêmicos e reportagens revelam que os grupos milicianos vêm investindo em novas atividades econômicas, antes não tão exploradas, desenvolvendo, assim, um novo modelo de negócios. Nesse aspecto, destacam-se a produção e a exploração das atividades imobiliárias, da infraestrutura e dos serviços urbanos – mobilidade, gás, internet, entre outros – com efeitos diretos sobre a produção e a gestão da cidade. 

A atuação da milícia em atividades imobiliárias merece destaque.

A partir de casos denunciados pela imprensa e por outras fontes, podemos identificar quatro modalidades de atuação: (a) controle e intermediação do acesso à terra urbana, em especial em áreas de proteção ambiental; (b) produção própria de unidades habitacionais, sejam elas realizadas de forma legal ou não para serem comercializadas (venda ou aluguel); (c) controle da produção habitacional promovida pelo poder público, com destaque para o caso dos conjuntos produzidos no âmbito do programa Minha Casa Minha Vida – MCMV; (d) controle da produção privada nos territórios controlados, com casos de expulsão de famílias que se recusam a acatar as normas comportamentais impostas pelos milicianos. 

Nos casos de grilagem de terras e produção habitacional, os relatos publicados mostram que os dois processos se complementam. Isso acontece a partir da regularização dos empreendimentos, obtida por meio da utilização deturpada de instrumentos originalmente voltados para o cumprimento da função social da propriedade, como as Áreas Especiais de Interesse Social (AEIS), que permitem o reconhecimento da legitimidade e da possibilidade de legalização de áreas de moradia popular.

Como parte da sua estratégia de grilagem, o urbanismo miliciano busca utilizar esse instrumento para regularizar os loteamentos clandestinos por ele produzidos, seja através de projetos de lei de iniciativa de vereadores ligados aos grupos criminosos, seja pressionando a população que adquiriu os imóveis a procurar apoio na Defensoria Pública para buscar a regularização. Essas práticas vieram à tona de forma bastante clara com a divulgação do relatório da Polícia Federal sobre o caso Marielle, no qual é apontada como razão presumida para o assassinato um conflito entre Marielle e o então vereador Chiquinho Brazão em torno da aprovação de projetos de lei que viabilizavam a regularização de áreas ocupadas pela Milícia na Zona Oeste do Rio de Janeiro.

As facções do tráfico de drogas, por sua vez, apesar de manterem o comércio de entorpecentes como principal atividade econômica, também diversificaram seu modelo de negócios e passaram a controlar o comércio de serviços urbanos, adotando práticas iniciadas pelos grupos milicianos. Em diversos territórios populares, há também evidências de alianças entre milicianos e traficantes, seja para disputar o conflito com grupos rivais, seja para garantir o controle dos territórios. 

Os agentes e as instituições de segurança, com raras e relevantes exceções, têm alimentado o círculo vicioso e a expansão do controle territorial dos grupos armados por meio de práticas que têm contribuído para agravar o cenário de insegurança e impunidade da cidade. De forma geral, vale destacar dois dispositivos. Em muitos territórios populares as práticas ilícitas são reguladas pelo conhecido “arrego”, ou seja, pelo pagamento de propina aos agentes de segurança que são coniventes com as atividades dos grupos criminais. Outro dispositivo são as operações militares, que de forma violenta e desrespeitando os princípios básicos dos direitos humanos, têm promovido assassinatos e chacinas nos territórios populares onde ocorrem. 

Operações militares em favelas e territórios populares estão se disseminando como um padrão de intervenção das polícias militares em vários estados da federação, mas o caso do Rio de Janeiro aparece como principal paradigma. Por aqui as chacinas não têm sido fatos episódicos, mas parte de um processo de violência policial cada vez maior contra a população negra, pobre e residente em favelas. No Rio de Janeiro, a violação de direitos fundamentais durante as operações policiais não é algo excepcional, sendo rotina nas favelas e periferias do estado a invasão de domicílio, destruição de patrimônio, agressões físicas e verbais, assédio, mortes e execuções sumárias.

Sempre posicionado dentre os estados com maior percentual de mortes decorrentes de intervenção policial na relação com as mortes intencionais violentas, o impacto da atuação das polícias no Rio de Janeiro tem reflexos nacionais, ocupando especial espaço na mídia e nos debates acadêmicos e jurídicos. 

A política de segurança pública dos sucessivos governos estaduais do Rio de Janeiro tem aprofundado a criminalização da pobreza e o caráter racista do sistema de justiça, promovendo a militarização da cidade, o que tem forte impacto sobre as possibilidades de promoção da igualdade em suas múltiplas dimensões.

O crescente processo de militarização e milicialização do espaço urbano tem fortes impactos sobre as possibilidades de exercício do direito à cidade.

É, portanto, fundamental que a agenda da política de segurança tenha verdadeira relevância no debate das eleições municipais de 2024. É imprescindível o fortalecimento das ações da sociedade civil, e mesmo de agentes públicos, para enfrentamento do cenário de profunda violência experimentado em nosso país. 

Como pauta de ação, alguns caminhos parecem incontornáveis. Concluímos listando alguns deles:  (i) ampliar o debate social e institucional sobre a política de segurança pública nas favelas e territórios populares; (ii) defender a elaboração de planos estaduais de redução da letalidade policial; (iii) debater e propor políticas e medidas visando a desmilitarização e o maior controle das ações das polícias, militar e civil; (iv) sustentar a defesa do fim das operações militares como dispositivo de rotina do policiamento nos territórios de favela; (v) promover canais de controle social e de gestão democrática das políticas estaduais de segurança pública; (vi) instituir mecanismos de gestão comunitária dos territórios populares a fim de incentivar padrões de solidariedade local fundados na tolerância, na paz, na democracia e na justiça social; (vii) incorporar medidas e dispositivos de fortalecimento comunitário nos programas urbanos implementados pela Prefeitura do Rio de Janeiro, levando em consideração os territórios que estão sob controle de grupos armados; (viii) assumir o controle sobre o uso e ocupação do solo na cidade a partir de um planejamento urbano participativo e democrático que seja capaz de impedir a expansão desregrada e violenta da cidade pelo domínio de grupos armados.

Revisão: Renata Melo 

*Adauto Lucio Cardoso é professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ) e pesquisador do Observatório das Metrópoles. 

**Daniel Hirata é professor de Sociologia da Universidade Federal Fluminense e coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI/UFF).

***Orlando Alves dos Santos Junior é professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ) e pesquisador do Observatório das Metrópoles.

**** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato. 

Edição: Mariana Pitasse