Praias paradisíacas, peregrinação por lugares sagrados, cidades modernas e cosmopolitas. Esses são alguns atrativos oferecidos pelo Ministério do Turismo de Israel, em um estande compartilhado com nove agências de turismo na WTM Latin America, maior feira de turismo da região, que aconteceu entre segunda (15) e quarta-feira (17) no Expo Center Norte em São Paulo (SP).
No estande, Israel é apresentado sem nenhuma menção à sua ofensiva militar na Faixa de Gaza, responsável pelo massacre da população palestina. O número de vítimas fatais ultrapassou 33 mil palestinos — cerca de 70% mulheres e crianças —, com mais de 8 mil pessoas desaparecidas debaixo dos escombros. Foram destruídos 35% dos prédios e praticamente todos os mais de dois milhões de habitantes foram forçados a deixar suas casas.
No mapa turístico de Israel distribuído pelo Ministério do Turismo israelense, a Faixa de Gaza aparece com hachuras, sem nenhuma legenda com informações sobre o território. "O mapa de Gaza é um absurdo, está riscado, apresentado como um não território, um não lugar", aponta Shajar Goldwaser, ativista judeu em apoio à causa palestina, formado em relações internacionais e membro do coletivo Vozes Judaicas Por Libertação.
Um aspecto importante a ser observado sobre o turismo promovido por Israel, aponta Goldwaser, "é o apagamento do apartheid vigente, por meio de estratégias de invisibilização."
"Quando você está no território israelense, conforme a definição de 1948 da ONU, que não inclui Gaza, Cisjordânia e as Colinas de Golam, vê uma sociedade europeia típica, prédios modernos. Israel gosta de se vender como uma nação moderna, onde a ancestralidade palestina foi apagada."
No mapa turístico de Israel, não estão identificadas de forma clara as regiões ocupadas por Israel. A legenda informa apenas que colorações diferentes identificam áreas A, B e C segundo o Acordo de Oslo de 1993, sem especificar o que cada uma delas representa. "O projeto colonial israelense é não fazer essa diferenciação entre os territórios", aponta Goldwaser.
No acordo, Israel e a Organização para Libertação da Palestina previam o fim da ocupação militar israelense na Cisjordânia, na Faixa de Gaza e em Jerusalém Ocidental, o que não aconteceu, tornando os territórios ocupados um verdadeiro arquipélago onde as ilhas seriam as terras palestinas, cercadas de assentamentos ilegais por todos os lados.
As áreas A, indicadas no mapa, são exclusivamente urbanas e controladas tanto no âmbito civil quanto no militar pela Autoridade Nacional Palestina. As áreas B são áreas rurais no entorno da cidade, com controle civil palestino e controle militar israelense e as áreas C não há nenhuma presença de autoridade palestina, tanto na esfera civil quanto militar - é nessa área onde estão situados cerca de 60% do território da Cisjordânia.
Os movimentos de Israel no período de Oslo fortaleceram sua presença colonial na Cisjordânia, com o crescimento dos assentamentos: pelos últimos dados de 2020, são 451.700 colonos na Cisjordânia e 229.377 em Jerusalém Oriental. No mapa abaixo é possível ver a divisão correta do território da Cisjordânia em áreas A, B e C.
Cisjordânia
No território palestino ocupado da Cisjordânia, a violência ilegal praticada por colonos israelenses é diária, com mais de 500 assassinados e milhares detidos desde outubro.
É neste território palestino ocupado que estão pontos turísticos importantes como Belém, Jericó e o Mar Morto. Oferecidos nos pacotes de viagem a Israel, não há nenhuma menção à segregação territorial feita pelas tropas israelenses a esses territórios. Na verdade, não se lê a palavra "Palestina".
"Na Cisjordânia há uma infraestrutura de rodovias segregadas, uma segregação espacial e racial. Ônibus conseguem atravessar pontos turísticos sem conhecer a Cisjordânia - sem cruzar com qualquer tipo de aldeia, sem avistar nenhuma população palestina. A mesma coisa para Jericó e para Hebron, onde está o túmulo de Abraão. Tem um sistema de estradas segregadas que te leva até o túmulo de Abraão sem você ver um palestino sequer", relata Goldwaser.
No mapa turístico distribuído pelo governo israelense, a cidade de Hebron aparece grafada como Hevron, sua pronúncia em hebraico, e não há nenhuma menção ao nome árabe da região, Al Halil. Como ponto turístico de Hebron, o mapa destaca o Túmulo dos Patriarcas (Cave of Makhpela), mas não há nenhuma referência à mesquita de Abraão (Ibrahim Mosque).
Os assentamentos perto de Hebron são lar de alguns dos mais radicalizados colonos judeus em terra palestina e a mesquita de Abraão foi palco de um dos mais famosos episódios violentos contra a população árabe.
Em fevereiro deste ano se completou 30 anos do massacre promovido por um colono judeu contra muçulmanos que rezavam na mesquita de Abraão que matou 29 feriu mais de 100 palestinos. As vítimas foram atingidas por tiros de espingarda, disparados pelo médico militar israelense Baruch Goldstein. Nascido nos EUA, Baruch Goldstein emigrou para Israel em 1983 e morava no assentamento judeu de Kiryat Arba, nos arredores de Hebron.
"Isso é muito comum para mostrar a narrativa israelense dessa historiografia que promovem, que não é real, mas é a história oficial. São locais que recebem muito turismo internacional, mas não mostram uma identidade palestina, há uma forma de maquiar isso", aponta Goldwaser.
Turismo religioso
O turismo religioso, voltado aos peregrinos que buscam visitar lugares sagrados, é o carro-chefe oferecido pelas empresas ao público brasileiro, voltado principalmente a católicos e evangélicos. Esse roteiro tem sido explorado por líderes populistas de extrema direita na América Latina, como o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), o presidente argentino Javier Milei e o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos).
“A maioria dos turistas que vão daqui pra Israel, vão em busca do turismo religioso. Agora nós estamos trabalhando o inverso, de atrairmos turistas não apenas de Israel mas da comunidade judaica internacional para o Estado de São Paulo, da mesma forma que estamos trabalhando, estimulando a atração de turistas da comunidade muçulmana", disse ao Brasil de Fato
o secretário de Turismo do governo de São Paulo, Roberto de Lucena.
Pastor da igreja evangélica pentecostal O Brasil Para Cristo, e autor do livro Fé, Trabalho e Esperança, Lucena reproduz o discurso do govenador Tarcísio de Freitas (Republicanos) de apoio a Israel, sem críticas ao massacre contra a população palestina.
“Não poderia deixar de passar nesse estande para dar um abraço em vocês, dizer que as nossas orações e o nosso coração está com Israel. A maioria absoluta do povo brasileiro ama Israel. Por 12 anos eu fui membro do Congresso Nacional e a minha cadeira era dedicada a Israel. Hoje eu estou no governo do Estado, o governador Tarcísio de Freitas acabou de voltar de Israel. Ele também ama Israel."
O governador paulista fez visita oficial de cinco dias a Israel no mês de março, onde se encontrou com o primeiro ministro, Benjamin Netanyahu, o presidente israelense Isaac Herzog e o ministro da Defesa, Israel Katz. Tarcísio também visitou a sede da Israeli Aerospace Industries, de aviação civil e militar e desenvolvimento de tecnologia eletrônica.
Em seu retorno ao Brasil, o governador de São Paulo participou da feira LAAD Security & Defense e destinada à forças policiais, forças armadas, autoridades e profissionais dos setores de segurança e defesa que contou, também, com a presença de Israel.
A coordenadora de campanhas para América Latina do Comitê Nacional Palestino do movimento de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS), Andressa Oliveira Soares, diz que "o Estado de São Paulo tem se mostrado extremamente cúmplice de Israel nesse momento".
"O governo de São Paulo tem um direcionamento de apoiar Israel, então resta pra gente manifestação, pressão política através dos parlamentares. A gente envia cartas à secretaria de Turismo, mas a gente sabe que a diretriz é apoiar Israel", afirma ela.
Desde o início do massacre na Faixa de Gaza, o BDS tem feito uma campanha de pressão para que as companhias aéreas deixem de voar para o território israelense. Soares aponta que o turismo em áreas ocupadas faz parte da estratégia israelense de controle dessas regiões.
"É preciso discutir o impacto de fazer turismo e ganhar dinheiro em cima de uma ocupação. A questão religiosa e o turismo são utilizados para reforçar a mensagem de que aquelas terras ocupadas ilegalmente pertencem a Israel. Se trata de usar isso como um controle da narrativa e uma infiltração no território."
O movimento BDS surgiu durante a campanha contra o apartheid na África do Sul. Com base nessa experiência, Andressa aponta que as práticas do governo israelense trazem as mesmas características de segregação populacional baseada em elementos raciais.
"A gente vê a questão do turismo como forma de propaganda que o Estado de Israel utiliza de se mostrar um país equilibrado, estruturado, tecnológico e avançado, enquanto o resto são bárbaros. É a desumanização que embasa o apartheid e mostra a negligência internacional em apoiar Israel."
Para Shajar Goldwaser a imagem que Israel busca mostrar por meio do turismo religioso é a de um país "defensor dos valores cristãos, um bastião ocidental no Oriente Médio". "Tem muito dessa subjetividade, de que Israel seria uma nova grande cruzada ocidental e os neopentecostais tem essa visão de Israel como guardiã dos locais sagrados do cristianismo, por mais que seja uma nação judaica."
Andressa Soares aponta que o turismo religioso está atrelado principalmente à ascenção do sionismo cristão e tem sido utilizado como estratégia entre políticos conservadores e reacionários para conquistar esse eleitorado.
"Existe uma série de conceitos equivocados, um interesse político por trás dos líderes que divulgam informações falsas do que acontece em Israel e que criam uma confusão entre o povo bíblico de Israel e o Estado de Israel."
Em artigo para o Brasil de Fato, o professor de Geopolítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Fernando Broncoli, aponta que grupos da extrema direita têm utilizado aspectos religiosos na elaboração de uma "Israel imaginária", com finalidades políticas e eleitorais.
Brancoli classifica esse discurso como "sionismo cristão", caracterizado por uma postura política e religiosa que advoga pela força militar de Israel e de sua expansão territorial, fundamentada na crença de que Israel não só possui um papel central nas profecias bíblicas, "mas também deve ser protegido e fortalecido como uma bastião da fé judaico-cristã".
"Muitos defensores do sionismo cristão veem a segurança e prosperidade de Israel como intrinsecamente ligadas ao cumprimento de promessas divinas, e, por consequência, acreditam que apoiar Israel é uma extensão de sua fé e missão religiosa. Essa postura tem influenciado decisões políticas, alianças internacionais e a forma como certos grupos no Brasil percebem e interagem com o cenário geopolítico do Oriente Médio", argumenta Brancoli.
Edição: Rodrigo Durão Coelho