Sem esperança, o jornalista Eric Nepomuceno — autor do livro O Massacre sobre a matança ocorrida em 17 de abril de 1996, na curva do “S”, no Pará — lamenta viver em um país que “insiste em ignorar sua realidade”.
“Esse é um país, eu sempre digo, da amnésia, um país amnésico.”
Famoso pelas traduções de Gabriel Garcia Márquez e outros grandes autores latinoamericanos, Nepomuceno viveu em Marabá (PA) por um período para produzir a obra, lançada quando o Massacre de Eldorado do Carajás completou 10 anos.
“E vou ser radicalmente sincero, a essa altura da minha vida eu só posso ser sincero. Eu tenho muito pouca esperança de ver uma mudança radical na questão da terra, dos sem terra, dos grandes latifúndios, dos exploradores, dos ladrões de terra pública”, comenta o escritor em entrevista ao programa Bem Viver desta quarta-feira (17), quando o Massacre de Carajás completa 28 anos.
Em 1996, trabalhadores sem-terra faziam uma marcha rumo a Belém para reivindicar demarcação de terras frente ao governo do estado. O grupo foi surpreendido por um batalhão policial que atirou contra os camponeses. 19 pessoas morreram na hora e mais duas não resistiram aos ferimentos.
Embora seja enfático na falta de perspectiva que enxerga o Brasil, Nepomuceno destaca que nestas quase três décadas é expressiva a dimensão que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) alcançou.
“A repercussão, o peso do MST, eu te resumo em uma frase só. 17 de abril, que é o dia do massacre de Eldorado do Carajás, 17 de abril, é o Dia Mundial da Luta pela Terra.”
O escritor é crítico do governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos), acusando o governador de São Paulo de “vender para particulares por um preço ínfimo terras públicas, terras devolutas”, comenta sobre o projeto de lei conhecido como PL da Grilagem em São Paulo.
“Porque não entregar essas terras para trabalhadores sem terra?”, questiona.
Recentemente, Nepomuceno entregou a tradução do livro Em agosto nos vemos, obra póstuma de Gabriel Garcia Márquez. Ele também é responsável por trazer ao português Cem anos de Solidão entre outras traduções que lhe renderam premiações no Jabuti.
Confira a entrevista na íntegra
Brasil de Fato: O que te motivou a ir a Marabá e recontar o que aconteceu em Eldorado do Carajás?
Eric Nepomuceno: Rapaz, a história desse livro é muito bacana, maluca. Eu estava no barbeiro, e um grande amigo meu, Nilo Batista, um dos maiores advogados criminólogos do Brasil, me ligou e me disse: “Escuta, daqui a pouco vai ser os 10 anos do massacre de Eldorado do Carajás, e eu queria que você fizesse um livro sobre o processo, como é que foi o processo político, jurídico…”
Eu falei: “Nilo, eu estou no barbeiro, me deixa acabar aqui, eu te ligo em seguida”, e fiquei pensando. Então, refleti e entendi que o Nilo, que é um grande jurista, um grande jurídico, mais até do que um advogado, tinha um interesse específico, mas eu mesmo mal lembrava do Massacre de Eldorado do Carajás, dez anos depois.
Fiquei pensando quanta gente terá esquecido, quanto gente não saberá nada. Aí eu liguei para o Nilo e falei, "olha, não vou fazer o que você me pediu não. Eu vou fazer uma reconstrução de tudo”.
Fui a São Paulo. Eu moro no Rio. Entrei em contato com MST, me levaram para conhecer o [João Pedro] Stedile e a gente ficou grudado para sempre, até hoje.
Eu preparei a viagem e lá fui eu. Me instalei em Marabá e de Marabá eu ia todo dia até o lugar, até Eldorado.
Era uma coisa engraçada, porque a gente tinha segurança. Eu nunca tinha andado com segurança na minha vida, mas é importante notar que 10 anos depois o ambiente ainda era de uma tensão radical naquela região.
Alguns anos atrás, acho que foi há quatro anos, eu fiz uma nova edição desse livro. Ele vendeu muito e teve várias e várias reimpressões. E até que acabou o contrato com a editora original, eu levei o livro para minha editora, que é a Record. E aí fiz uma atualização.
Rapaz, aí que eu fiquei pasmo. Porque eu voltei lá, conversei com pessoas, alguns sobreviventes que eu tinha entrevistado lá atrás, dez anos antes, uns tinham morrido e a situação continuava não idêntica, mas muito parecida.
O Pará continuava sendo, e continua até hoje, o que é terrível, o estado brasileiro com mais mortes no campo. Tem outros, Mato Grosso, Mato Grosso, Sul, tem vários outros, porque o conflito da terra é um mal que se alastra pelo país, porém o Pará continua sendo o foco dessa violência. Eu não vejo mesmo sair da vista.
Evidentemente que nos quatro anos do Jair Messias, isso aí foi para glória, foi para o céu, e ele incentivou, exatamente, a violência no campo, a violência contra os sem-terra.
E nesse ano e pouco, da volta do Lula, foi muito pouco, muito pouco, o que se pôde fazer. É uma situação trágica, é um retrato de um país que eu vou insistir, primeiro, amnésico, sem memória nenhuma.
Segundo um país completamente ignorante da própria realidade. O brasileiro não tem ideia do que é esse país. Não que eu tenha uma ideia completa, eu tenho alguma ideia, eu e vários outros, muitos outros. Porém, a média brasileira é da amnésia e da ignorância.
E vou ser radicalmente sincero. A essa altura da minha vida eu só posso ser sincero. Eu tenho muito pouca esperança de ver uma mudança radical na questão da terra, dos sem terra, dos grandes latifúndios, dos exploradores, dos ladrões de terra pública.
Eu estou vendo agora o que é essa figura grotesca, dantesca, essa aberração abjeta, chamado Tarcísio, sei lá do quê, governador do Estado de São Paulo.
O que ele está propondo, vender para particulares por um preço ínfimo terras públicas, terras devolutas, porque não entregar essas terras para trabalhadores sem terra? Porque não entregar essa terra para pequena agricultura familiar que vai abastecer mercados locais, regionais e tal?
Em artigo publicado no Brasil de Fato você citou uma fala do teólogo Leonardo Boff: “Os brasileiros, somos herdeiros de quatro sombras que pesam sobre nós e que originam a violência: nosso passado colonial violento, o genocídio indígena, a escravidão, que segundo ele é a mais nefasta de todas, e a Lei das Terras, que exclui os pobres e negros do acesso à terra e deixou-os à mercê do arbítrio do grande latifúndio”. Eldorado dos Carajás se explica bem nesta citação, certo?
Cada vez que cita o nome de Leonardo Boff, meu irmão da alma, meu querido irmão, não tem erro. É uma coisa impressionante como o Boff acerta 98% dos chutes dele a gol e eu acho isso terrível, porque ele tem um olhar ao mesmo tempo objetivo, realista frio, e uma alma cristã, uma alma para abrigar nossos sonhos, nossas esperanças.
Eu tenho uma divergência em relação ao Leonardo. Ele tem uma capacidade que eu não tenho. Essa esperança de uma mudança. Eu, a esta altura da minha vida, olhando o que acontece no campo brasileiro, eu confesso que não tenho esperança. Porque muda muito. E quando muda, é para pior.
É uma coisa impressionante. Eu era garoto, tinha 14, 15 anos, quando eu ouvi falar pela primeira vez, através do meu pai, que era físico: "Menino tem de prestar atenção nesse tal de Francisco Julião. Ou ele incendeia o Brasil por bem, ou vem aí um golpe e vai acabar com tudo. Veio o golpe."
E eu conheci o Julião no exílio. Nunca vou esquecer a lucidez do Julião, a delicadeza dele ao tratar das coisas mais violentas e mais contundentes. Ele teve até ao fim uma esperança que eu não tenho. Ele e o Boff. Eu não tenho essa esperança, lamento.
Embora você comente que pouca coisa mudou nesses 28 anos, é importante comentar como o MST cresceu e muito neste período
Sem a mais remota sombra de dúvida. O MST é hoje, e não digo só no Brasil, é dos movimentos populares mais importantes da América Latina, não da América do Sul, da América Latina inteira.
E a repercussão, o peso do MST, eu te resumi em uma frase só. 17 de abril, que é o dia do massacre de Eldorado do Carajás, 17 de abril, é o Dia Mundial da Luta pela Terra.
O MST é o maior produtor de arroz orgânico da América do Sul. Sabe, não vamos esquecer das conquistas do MST. Apesar de tudo, apesar de tudo.
A gente não pode esquecer as conquistas, a amplitude, a maneira como o MST cresceu e se consolidou e é hoje uma presença indiscutível da questão social brasileira. Não podemos discutir isso. Eu, pelo menos, não aceito nenhuma discussão.
E acho que a gente também não pode esquecer o outro lado. Evidentemente, se não fosse o MST, a situação seria 500 vezes mais trágica do que é.
Repito, vamos lembrar dos quatro anos do [Jair] Messias [Bolsonaro]. Se esse camarada tivesse sido reeleito, ou se tivesse dado golpe, que ele diz que não queria dar, onde que a gente teria ido parar. Isso é o complicado.
Agora, sem esquecer o espaço do MST, a gente também não pode esquecer a situação do campo no Brasil, das terras que não são repartidas, que são roubadas, invadidas, utilizadas, e com a proteção de governadores, como eu mencionei, o Tarcísio de Freitas... São várias aberrações desses últimos anos, o [Ronaldo] Caiado…
São aberrações, abjetas, a gente não pode esquecer isto também. A gente precisa ter isso bem claro, os dois lados, não da mesma moeda, da mesma tragédia.
Você tem intenção de lançar uma nova edição?
Vamos dar um tempinho. Eu estou com outros projetos, trabalhando em outros livros.
O Massacre não sai da minha cabeça, não sai da minha memória. Faz tempo que ninguém me chama pra falar do Massacre, essa é a coisa da amnésia brasileira.
Mas vamos ver. Daqui a pouquinho a gente retoma. Eu sempre fico esperando que me chamem pra falar do Massacre, me chamem, para falar de qualquer coisa. Menos do Fluminense.
Eu gostaria, porque eu acho que não pode cair no crescimento e não só como homenagem às vítimas, mas principalmente como apoio às crianças e aos jovens que estão neste mundo querendo um pedaço de terra para quando crescerem, quando tiverem suas famílias.
Um pedaço de terra para o futuro desse país. É isso que eu espero.
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Edição: Matheus Alves de Almeida