Do bombardeio israelense à embaixada do Irã em Damasco até o ataque do Equador à embaixada do México
Queridas amigas e amigos,
Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
Vivemos em uma época desonesta, em que as certezas se esfarelaram e a maldade ronda a paisagem. Há Gaza, é claro. Gaza está em nossas mentes acima de todas as coisas. Mais de 33 mil palestinos foram mortos por Israel desde 7 de outubro de 2023, e mais de 7 mil pessoas estão desaparecidas (5 mil delas crianças). O governo israelense desconsiderou brutalmente a opinião pública mundial que se levantou contra ele. Bilhões de pessoas estão indignadas com as evidências gritantes de sua violência e, ainda assim, não conseguimos forçar um cessar-fogo a um exército que decidiu arrasar um povo inteiro. Os governos do Norte Global fazem um jogo duplo: por um lado, soltam frases clichês de preocupação para satisfazer as populações desiludidas de seus países, e por outro, promovem vetos nas Nações Unidas e seguem com a transferências de armas para o exército israelense. É esse comportamento dúbio que alimenta a confiança de pessoas como o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu e que permite que ele fique impune.
Essa mesma impunidade permitiu que Israel violasse a Carta da ONU (1945) e a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas (1961) em 1º de abril de 2024, quando bombardeou a embaixada iraniana em Damasco, na Síria, matando 16 pessoas, incluindo oficiais militares iranianos de alto escalão. Essa impunidade é contagiosa, espalhando-se entre os líderes que se sentem encorajados pela arrogância de Washington. Entre eles está o presidente do Equador, Daniel Noboa, que enviou suas forças paramilitares para a embaixada mexicana em Quito dia 5 de abril para capturar o ex-vice-presidente do país, Jorge Glas, que havia recebido asilo político das autoridades mexicanas. O governo de Noboa, assim como o de Netanyahu, deixou de lado a longa história de respeito internacional pelas relações diplomáticas, sem levar em conta as implicações perigosas desse tipo de ação. Há um sentimento entre líderes como Netanyahu e Noboa de que podem se safar de qualquer coisa porque são protegidos pelo Norte Global, que, seja como for, sempre se safa de tudo.
Os costumes diplomáticos remontam a milhares de anos e atravessam culturas e continentes. Textos antigos escritos por Zhuang Zhou, na China, e seu contemporâneo na Índia, Kautilya, no século IV a.C., estabeleceram os termos para relacionamentos honrosos entre os Estados por meio de seus emissários. Esses termos aparecem em quase todas as regiões do mundo, com evidências de conflitos que resultam em acordos que incluem a troca de enviados para manter a paz. Essas ideias do mundo antigo, incluindo o direito romano, influenciaram os primeiros autores europeus do direito internacional consuetudinário: Hugo Grotius (1583-1645), Cornelis van Bijnkershoek (1673-1743) e Emer de Vattel (1714-1767). Foi esse entendimento global da necessidade de cortesia diplomática que formou a ideia da imunidade diplomática.
Em 1952, o governo da Iugoslávia propôs que a Comissão de Direito Internacional (ILC, na sigla em inglês), criada pela ONU, codificasse as relações diplomáticas. Para auxiliar a ILC, a ONU nomeou Emil Sandström, um advogado sueco que havia presidido o Comitê Especial da ONU sobre a Palestina (1947), como relator especial. A ILC, com a ajuda de Sandström, elaborou artigos sobre relações diplomáticas, que foram estudados e alterados pelos 81 Estados-membros da ONU. Em uma reunião de um mês em Viena, em 1961, todos os Estados membros participaram da Convenção sobre Relações Diplomáticas. Entre os 61 Estados que se tornaram signatários estavam Equador e Israel, além dos Estados Unidos. Todos os três países estão, portanto, entre os Estados fundadores da Convenção de Viena de 1961.
O artigo 22.1 da Convenção de Viena diz: “As instalações da missão devem ser invioláveis. Os agentes do Estado receptor não podem entrar nelas, exceto com o consentimento do chefe da missão”.
Em uma reunião no Conselho de Segurança da ONU sobre o recente ataque de Israel à embaixada iraniana na Síria, o vice-embaixador Geng Shuang, da China, lembrou a seus colegas que, há 25 anos, o bombardeio da Iugoslávia pela Otan, liderada pelos EUA, resultou em um ataque à embaixada chinesa em Belgrado. Na época, o presidente dos EUA, Bill Clinton pediu desculpas pelo ataque, chamando-o de “evento isolado e trágico”. Nenhum pedido de desculpas foi feito por Israel ou pelo Equador por suas violações das embaixadas do Irã e do México. Geng Shuang disse à câmara: “A linha vermelha do direito internacional e as normas básicas das relações internacionais foram violadas repetidas vezes. E a base moral da consciência humana também foi esmagada repetidas vezes”. Nessa reunião, o embaixador do Equador, José De la Gasca, condenou o ataque à embaixada iraniana em Damasco. “Nada justifica esses tipos de ataques”, disse ele. Poucos dias depois, seu governo violou a Convenção de Viena de 1961 e a Convenção sobre Asilo Diplomático da Organização dos Estados Americanos, de 1954, quando prendeu Jorge Glas na embaixada mexicana, um ato que foi rapidamente condenado pelo secretário-geral da ONU.
Essas violações das proteções da embaixada não são novas. Há muitos exemplos de grupos radicais, tanto de esquerda quanto de direita, que atacam embaixadas para marcar posição política. Isso inclui a tomada da embaixada dos EUA em Teerã em 1979, quando estudantes mantiveram 53 funcionários como reféns por 444 dias. Mas também há vários exemplos de governos que entraram à força nas instalações de embaixadas estrangeiras, como em 1985, quando o regime do apartheid sul-africano enviou suas forças à embaixada holandesa para prender um cidadão holandês que havia ajudado o Congresso Nacional Africano e, em 1989, quando o exército invasor dos EUA fez buscas na residência do embaixador da Nicarágua na Cidade do Panamá. Nenhuma dessas intervenções passou sem sanção e sem a exigência de um pedido de desculpas. No entanto, nem Israel nem o Equador – ambos signatários da Convenção de Viena de 1961 – fizeram qualquer gesto em direção a um pedido de desculpas. Nem o Irã nem a Síria tinham relações diplomáticas com Israel, e o México rompeu relações diplomáticas com o Equador na esteira dos acontecimentos recentes.
A violência atravessa o mundo como uma nova pandemia, não apenas em Gaza, mas espalha-se por todo canto, nesse conflito que está se formando no Equador e na tristeza das guerras no leste da República Democrática do Congo, no Sudão e no contínuo impasse na Ucrânia. A guerra quebra o espírito humano, mas também invoca um forte instinto de ir às ruas e impedir que o gatilho seja puxado. Repetidas vezes, esse grande sentimento antiguerra é recebido com a ira de poderes que prendem os pacificadores e os tratam – e não os mercadores da morte – como criminosos.
Nessa tradição da poesia farsi, surge Garous Abdolmalekian (n. 1980), cujos poemas estão saturados da guerra e de seu impacto. Mas, mesmo em meio às balas e aos tanques, há um forte desejo de paz e amor, como em “Poema para a quietude” (2020):
Ele mexe seu chá com o cano da arma
Ele resolve o quebra-cabeça com o cano da arma
Ele arranha seus pensamentos com o cano da armaE, às vezes
ele se senta de frente para si mesmo
e puxa memórias-balas
fora de seu cérebroEle lutou em muitas guerras
mas não é páreo para seu próprio desesperoEssas pílulas brancas
o deixaram tão incolor
que sua sombra precisa se levantar
para buscar água para eleDevemos aceitar
que nunca um soldado
retornou
da guerra
vivo
Cordialmente,
Vijay
* Vijay Prashad é historiador e jornalista indiano, diretor geral do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
** Este é um texto de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo