entrevista

'Democracia não passou no teste', diz manifestante das Jornadas de 2013 absolvido em 2024

Isentado dez anos depois, Igor Silva é o militante dos atos de 2013 e 2014 que ficou mais tempo preso no Rio de Janeiro

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'Eles não conseguiram provar a tese de que nós éramos criminosos', diz Silva - Mídia Ninja/Flickr

Após mais de uma década tramitando na Justiça, em março deste ano os 23 ativistas e militantes vítimas de perseguição judicial pela participação nas Jornadas de Junho de 2013 no Rio de Janeiro conseguiram a absolvição. O grupo havia recebido pedido de prisão em julho de 2014, e a maioria foi liberada ao longo de 2014 e 2015. A condenação veio em julho de 2019, quando puderam seguir respondendo em liberdade. Uma decisão de Gilmar Mendes em 2021 opôs-se ao uso das provas tidas agora como ilícitas. Somente agora, em 2024, elas foram retiradas do processo. A decisão de março, do desembargador Sidney Rosa da Silva, arguiu que a Polícia Civil e o Ministério Público do Rio de Janeiro utilizaram provas produzidas ilegalmente e falsos testemunhos de pessoas com o intuito de fortalecer a denúncia.

Tido pelo Ministério Público como uma liderança de um dos movimentos “mais violentos” à época, o Movimento Estudantil Popular Revolucionário (MEPR), Igor Mendes Silva, 35 anos, foi o militante a passar mais tempo atrás das grades: sete meses no Complexo Penitenciário de Gericinó, antigo Complexo de Bangu, na zona oeste do Rio de Janeiro. O catador de latinha Rafael Braga, que chegou a ser condenado em 2014 e 2016, não estava participando do ato como manifestante,

Recostado contra uma janela da sala de reuniões da sede do jornal A Nova Democracia, em frente à Cinelândia, no centro do Rio de Janeiro, o professor de geografia passou um fim de tarde com a Agência Pública refletindo sobre o que mudou de 2013 para cá e rememorando o período que ficou preso.

Filho de um sargento mecânico da Aeronáutica progressista com uma dona de casa que se identifica politicamente de centro-esquerda, Igor viveu na Vila Militar do bairro Sulacap, na zona oeste do Rio, até os 18 anos de idade. Foi lá, na adolescência, que as influências musicais da mãe, fã de Legião Urbana, incutiram um sentimento de revolta, que o levou ao movimento punk no começo da adolescência, acompanhado do traje clássico: botina, calça jeans rasgada, regatas improvisadas e cabelo espetado no penteado satélite.

O garoto desbravava os meandros dos movimentos sociais até entrar para o movimento estudantil de vez, enquanto secundarista na Tijuca, bairro da zona norte. “Isso se conectou com uma desilusão com a falta de política do movimento punk. No fim, é cultural, falam de mudar o mundo, mas ficam enchendo a cara, não sai muito disso”, rememora.

Quando chegou junho de 2013, Igor já era um militante calejado. Com 24 anos, graduando de Geografia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), ele estava no lugar certo na hora certa: “Eu estava fazendo Geografia, um curso que já tem uma pegada política. Estava em um movimento que pretendia questionar as instituições”.

Contudo, foi justamente por estar nesse “momento e lugar certos” que ele se tornou um dos muitos manifestantes presos pelo Estado brasileiro na repressão às manifestações contrárias à Copa do Mundo.

Leia a entrevista completa abaixo.

Igor Mendes Silva passou sete meses preso, foi o militante que ficou mais tempo encarcerado - Matheus Moura/Agência Pública

Quando você entrou para a militância organizada, em algum momento passou pela sua cabeça que sua vida poderia chegar ao ponto em que chegou? Você imaginou que você poderia vir a ser um preso político algum dia?

Na verdade, a resposta é sim. Inclusive, isso me ajudou a enfrentar as prisões. Olha, eu sempre tive muito claro que, se você atua desde moleque junto aos sem teto, à luta das remoções, a liberdade na democracia burguesa, ela tem um certo limite, né? A repressão sempre caiu sobre nós, sempre mandavam a tropa de choque. O que mudou em 2013 foi a amplitude disso, a escala da repressão.

Eu comecei no movimento secundarista e a tropa de choque usava cachorro e cassetete. Em 2013, o Estado já era uma máquina de guerra. Então, mudou a escala da repressão.

Uma novidade muito grande foi a judicialização, porque, em geral, a gente era preso, detido em manifestação, entrava na delegacia e saía, assinava um termo. Em 2013, a perseguição começou a ficar muito mais séria. Mas, em termos abstratos, bom, se você se propõe a lutar por uma revolução, você deve estar preparado, porque o 1% que se beneficia da ordem que vá defender o seu, né?

A que você acha que se deve essa judicialização iniciar em 2013?

Eu penso que essa resposta judicial foi porque a repressão ampla, irrestrita e mais ou menos irracional às ruas não deu conta de 2013. Você vê o seguinte, se é verdade que a pauta inicial foi a passagem, os 20 centavos e tudo mais, o que causou o choque que levou as pessoas à rua mesmo foi a repressão policial.

Você pega no dia 13 de junho na Paulista, quando a polícia acerta a repórter da Folha no rosto. Aquilo correu o Brasil como uma descarga elétrica e aí abriu a semana, que foi das manifestações de 17 de junho a 20 de junho, o ápice.

A repressão policial mais ou menos indiscriminada só fez crescer as manifestações. Era preciso identificar supostas lideranças para, impondo a elas castigos muito mais severos, intimidar os demais para que não saíssem de novo às ruas.

Funcionou, você acha?

Em parte, sim. Até 2014, as manifestações prosseguem, pelo menos aqui no Rio, muito fortemente. E aí você tem, o primeiro fato, a morte acidental do cinegrafista Santiago Andrade – e pode-se falar “acidental” agora porque foi o que o júri disse. Essa foi a primeira inflexão do movimento.

Depois, as prisões da Copa, em julho de 2014. Então, isso colocou um certo estado de terror no movimento popular. Dali em diante, pegando 2015 e 2016, até pouco tempo atrás, esse movimento popular, claramente de esquerda, foi perseguido, fizeram retroceder à força e foram ocupados pela direita.

Mendes Silva diz que foi uma novidade para ele o aumento da escala de repressão, com a judicialização iniciou em 2013 - Mídia Ninja/Flickr

Em que momento da jornada de junho de 2013 vocês começaram a ponderar o uso de táticas de ação direta, que ficou conhecido depois como a tática de black blocs? Qual foi o momento que se passou pela cabeça?

Eu ouvi falar em black bloc em julho de 2013. Em junho não se falava nisso. Você pega as imagens, por exemplo, do dia da tomada da Alerj [Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro], ou o dia que o pessoal enfrenta o Caveirão na Presidente Vargas… Cara, você não vê os jovenzinhos todos de preto, você vê gente de bermuda, chinelo, um camelô, um ambulante, muitos jovens, com camiseta de colégio estadual – nem se falava em black bloc.

A primeira vez que eu ouvi falar em black bloc, que eu vi de fato que na manifestação havia um bloco de gente de preto combinando, foi em julho de 2014.

Então, eu diria que black bloc na verdade foi uma construção da mídia, cara. Essa construção depois ela colou. Surgiram páginas na internet, black bloc RJ, mas é uma coisa curiosa, o discurso sobre os black bloc criou os black bloc depois.

Na denúncia do Ministério Público tem um momento em que vocês, que foram denunciados, suspeitavam que estavam sendo grampeados, que havia uma vigilância sobre os militantes. Quais foram os indícios para vocês?

Havia muitos indícios de infiltração e de vigilância. Uma das razões do nosso processo ser anulado foi a infiltração de um policial da Força Nacional de Segurança sem autorização judicial no meio dos manifestantes. O que é completamente bizarro. O cara da Força Nacional é policial extensivo, nem é um policial investigativo. E sem autorização judicial.

A gente desconfiava. Em 2014, chegou-se ao ponto de ter gente sendo seguida mesmo. No nosso inquérito aparece a polícia, num carro, filmando quem entrava e saía de uma reunião da OTL [Organização Terra e Liberdade], que é uma organização anarquista.

E ainda em 2013 criaram uma tal de CEIV, que era a Comissão Especial para Investigar os Atos de Vandalismo. E os caras tentaram botar [a investigação] na CEIV, e isso obviamente foi derrubado em Brasília, porque é absurdo. Tentaram o direito a quebrar sigilo telefônico sem decisão judicial. Aí em Brasília foi derrubado.

Estava claro, em junho de 2013, que os black blocs ou os vândalos viraram inimigo público número um do Estado brasileiro.

E quando você descobriu que seria preso, como se sentiu no momento?

No Congresso Nacional tramitou em regime de urgência, em agosto de 2013, uma reforma da lei de organizações criminosas, a Lei 12.850, que foi aprovada. Essa reforma é uma resposta explícita a Junho. Essa lei flexibilizou a quantidade de quatro para três [pessoas] e a polícia não precisa provar que essas pessoas se conheciam [para enquadrá-las como organizações criminosas]. Para piorar, se tiver menor envolvido, a pena dobra.

Tem um fato marcante, que pra todos nós foi um grande divisor de águas: a desocupação do Ocupa Câmara no dia 15 de outubro de 2013. Os caras cercaram a Câmara [Municipal] e levaram as pessoas presas, levavam todo mundo. Eu passei essa noite na delegacia, estava na manifestação. Saí pra fazer um lanche, quando eu voltei, tava todo mundo em cana. A Elisa Quadros [manifestante que foi acusada de liderar os adeptos do black bloc] estava presa, mandaram ela lá pra delegacia do Rocha.

Aí começou a ficar claro que a coisa tinha mudado de nível. Porque, pô, manifestante, professor, estudante universitário frequentar o presídio de Bangu, isso é inédito, isso começou em 2013.

Corre o tempo, na véspera da Copa, teve uma onda de prisões, foram mais de 20 presos. Cara, e nesse dia eu obviamente estava com medo de prisão. Era um sábado chuvoso. Saí de casa mais cedo, eu tinha um compromisso, e eu vi um comboio da polícia passar por mim na minha rua. Eu falei: “Que estranho, né?”. Aí, os caras pararam em frente à minha casa, mas tocaram no vizinho. Na verdade, mandaram dizer que era pra mim.

Toca o telefone, um advogado, e fala assim: “Você tá em casa?”. Eu falei: “Não, tô na rua”. [O advogado respondeu]: “Ó, então presta atenção, porque, porra… Tem 20 pessoas em cana agora”. Aí, eu peguei o ônibus e sumi.

Eu fiquei na clandestinidade, foram 20 dias, e fui vendo a maré se aproximar.

Até que eu fui levado em dezembro de 2014. Foi uma manifestação, exatamente um ano [antes] da prisão. Era um ato cultural aqui, pô, com artistas, o pessoal declamou poesia, teve música. Não era nem manifestação, era intervenção artística. E isso foi usado como argumento para pedir a minha prisão, por eu ter desrespeitado a medida cautelar. Eu fiquei preso de dezembro de 2014 a junho de 2015.

Para o militante, apesar das pessoas estarem mais cautelosas hoje em dia, as ruas devem ser ocupadas pelas pautas populares - Mídia Ninja/Flickr

E como foi esse período? Como você foi recebido lá dentro pelos internos e pelos policiais penais?

Pois é, foi uma reação de estranhamento. Primeiro, porque eu fui preso sozinho.

Eu tive que conseguir meu direito de preso político na força. Eu cheguei no presídio, aí, padrão, né: ‘Quem é do Comando Vermelho’? ‘Quem é Terceiro [Comando]’? ‘Quem é aliado’?. Você já vê na hora que é completamente diferenciado, já é botado de lado… E quem não tem facção, né?

[Eu fui] colocado em uma galeria separada, em uma cela individual. Meu pior período na prisão foi esse. Fiquei 40 dias na triagem. Na triagem, você não tem visita, não tem banho de sol, não tem nada. Estava em uma cela nua. Passei Natal, Ano-Novo isolado, sem visita, sem nada…

[Após ter sido transferido para Bangu] Eu passei o verão do Rio preso em Bangu sem ventilador, cara. Eu dividi a cela com seis presos em Bangu 9. Um cubículo com seis pessoas. Separação de preso provisório e preso comum, esquece. Isso é só uma teoria. Na vida real não é assim. Eu convivia com gente que voltou do presídio federal. O cara é tipo chefe de milícia, eu convivi com esse cara, com policiais acusados de homicídio.

Ao contrário dos outros manifestantes, quem foi preso, por exemplo, nessa ocupação da Câmara, eles chegaram no presídio como presos das manifestações. Então, eles ficaram juntos, numa galeria separada.

O que você acha que mudou da militância de 2013 para a militância de hoje?

Cara, eu acho que o tempo passa muito rápido, então 2013, pra mim, foi ontem.

Em geral a militância popular tem uma juventude que está sempre renovando, boa parte das pessoas com as quais eu convivo nem estavam em 2013

[Com] esse espectro golpista que voltou a rondar o país, as pessoas se tornaram mais cautelosas, o que é uma pena, porque eu não acho que o que aconteceu no Brasil foi devido às ruas: eu acho que o remédio pro Brasil é mais ruas, não menos. As ruas devem ser ocupadas por pautas populares.

Como você faria um balanço de 2013? Muita gente vê o movimento como gênese da escalada fascista do Brasil, com o nascimento do MBL, por exemplo. Outras pessoas veem como a última grande eclosão de revolta justa e o berço de novos movimentos sociais.

[O ano de] 2013 foi um momento de cunho popular, e de esquerda, a pauta era passagem, transporte público, educação, moradia, contra remoção dos megaeventos, cadê o Amarildo, a crítica das UPPs [Unidade de Polícia Pacificadora, criadas pela Secretaria de Segurança do Rio na gestão do ex-governador Sérgio Cabral], e mesmo corrupção, porque quem diz que a corrupção é uma pauta de direita? A prática deles [a direita] foi saquear o Estado…

Que as Jornadas de Junho destaparam uma radicalização política, isso é um fato, claro. Elas dispararam um gatilho de radicalização, em grande medida, porque a juventude que foi em 2013 e 2014 para defender pautas populares foi brutalmente criminalizada. Isso desencorajou a atuação e encorajou o campo da direita…

Eu acho que 2013 foi uma frustração com o que a República prometeu à minha geração. Eu aprendi nos livros históricos que a ditadura militar tinha acabado e que o Brasil vivia uma democracia. Em 2013 foi um pouco “vamos ver que democracia é essa”, e ela não passou no teste. Sem falar nas pautas sociais, direito à terra, territórios indígenas, moradia, enfim, isso nunca foi de fato entregue.

Em 2013 e 2014 teve um campo popular da esquerda não institucional. De repente, a esquerda não institucional estava na frente de um grande movimento de massa no Brasil, que foi uma surpresa para a direita e para a esquerda institucional, que até então se julgava dona dos movimentos e das ruas. Ela, de fato, perdeu essa brisa em 2013 e 2014 para nós. Tchau, companheiro. Depois, isso vai para a direita em 2016 e se desloca até para a extrema direita, que aí é o ciclo Bolsonaro.

Mas, cara, o meu palpite é que essa bola ainda volta para nós. Que esse processo está em aberto, que essa rodada volta para cá.

A absolvição na Justiça que veio agora, uma década depois, você enxerga como uma conquista social ou individual?

Esse processo foi desmoralizado politicamente. Então, eles não conseguiram, mesmo a imprensa, o Judiciário, não conseguiram carimbar sobre nós a pecha de criminosos. Ficou claro que eram, desde o começo, manifestantes perseguidos. Pessoas com larga atuação política, pública. Eles não conseguiram provar a tese de que nós éramos criminosos. Foi um processo político que visava no curtíssimo prazo garantir a realização da Copa e, a médio prazo, dar uma lição para os movimentos populares. Passado um tempo, os próprios caras que fizeram a Copa, os caras da Fifa, e o Sérgio Cabral, ele foi pra cadeia. Quase houve a reunião na cadeia do pessoal do Não Vai Ter Copa com o pessoal da Copa. A gente quase se encontrou em Bangu.

Edição: Bruno Fonseca