Durante três dias, em Brasília, a 12ª Conferência Nacional dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes (CNDCA) mirou o futuro com os olhos voltados para um difícil passado recente: a pandemia de covid-19. O evento acontece após um hiato de 5 anos, por isso busca dar vazão a uma extensa agenda reprimida, reafirmar direitos e também incorporar propostas para os desafios mais atuais.
A escolha do tema decorre da observação aos múltiplos problemas gerados pelo período de isolamento social, enquanto as escolas estavam fechadas ou funcionando parcialmente, e que começam a ser sentidos só agora. É o que aponta a psicóloga Marina de Pol Poniwas, presidenta do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e organizadora da conferência em parceria com o ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC).
Segundo ela, a escola é fundamental para proteger o público infantojuvenil e diagnosticar violações e vulnerabilidades. “Agora que as crianças retomaram as aulas é que a gente está tendo acesso a essas consequências desse período em que não estiveram na escola. E mais de 35 mil crianças acessaram denúncias em todo país, relatando situações de violências domésticas dentro de suas casas”, relata.
Durante a abertura da conferência, no dia 2, subiu ao palco e ressaltou a importância do tema: “A pandemia expôs e exacerbou desigualdades já existentes, mergulhou muitos de nossos colegas adolescentes em situação de risco e vulnerabilidade. Muitos de nós perdemos o direito ao acesso à educação, saúde mental e muitas vezes a nossa própria casa se tornou um lugar onde não tínhamos segurança”.
Em seguida, durante uma aula magna ministrada em conjunto com outros dois jovens representantes, o ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, Silvio Almeida, falou sobre a missão de reconstruir boa parte do que foi implodido nas gestões passadas. “Nós temos a chance de pensar o que deveríamos ter feito antes da tragédia do governo anterior e que nós nunca fizemos e que é um dos motivos pelas quais a tragédia se instalou. E agora nós temos a chance de fazer”, discursou.
De acordo com o MDHC, cerca de 1,3 mil pessoas estiveram no centro de convenções na capital federal, que debateram 117 propostas que haviam sido escolhidas a partir de 3400 etapas municipais, garantindo representatividade inclusive de quem não esteve presente. Representantes do poder judiciário e de entidades parceiras, como Organização dos Estados Ibero-Americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura (OEI), também estiveram presentes.
Para Cláudio Augusto Vieira, secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, a conferência também ajuda a atualizar reflexões sobre o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), filiado ao sistema internacional de direitos humanos. “Estamos trazendo novamente para a pauta a proteção de crianças e adolescentes, as políticas públicas da social educação, de enfrentamento às violências, de exterminar o trabalho infantil e do restabelecimento do direito da sociedade brasileira familiar e comunitária”, defende.
Ambiente democrático para estabelecer prioridades
Além de autoridades, o CNDCA foi lotado por representantes do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA), dentre conselheiros dos direitos da criança e do adolescente, conselheiros tutelares, representantes do sistema de justiça, fóruns e redes de promoção, proteção, defesa e atendimento. Porém, de acordo com os organizadores do evento, a maioria dos participantes tinham entre 12 e 18 anos e vivem na zona urbana.
Cinco eixos temáticos nortearam as discussões, passando pela construção e aperfeiçoamento de mecanismos de suporte à população infantil e jovem e pela participação social na gestão, execução e controle social das políticas públicas. O amparo emocional e a retomada das relações interpessoais para reverter os hábitos adquiridos durante o isolamento social foram temas tratados nas mesas e workshops, conforme destaca Mona Nascimento, conselheira tutelar do Distrito Federal.
“Para mim, um dos eixos mais importantes que vai ser discutido aqui é o eixo da proteção, que é o primeiro eixo. Ele aponta alguns caminhos que a gente vai buscar lutar, transformar em políticas públicas para poder garantir que as crianças, que viveram esse período pandêmico, se sintam melhores, tenham alguma ajuda. Infelizmente, a saúde mental não é incluída na saúde básica. Isso, para a gente, é de uma gravidade enorme, porque lá na frente pode desencadear em autoextermínio, automutilação e várias outras questões acumulativas”, protesta.
Cada eixo trouxe cerca de 25 propostas, sendo que cinco foram priorizadas e votadas em plenário no último dia do evento. A variedade das propostas também é grande e incluem desde formas de combate a discriminações de todo tipo até tornar a escola um ambiente mais acolhedor e pacífico, o que ajudaria a frear a evasão escolar. “Enquanto conselheira tutelar, a demanda que recebo de evasão escolar é muito grande por causa das violências que essas crianças sofrem. Precisamos entender e respeitar os processos que as crianças passam e garantir que elas vivam isso com segurança”, salienta Mona.
Além de se aproximar de fóruns municipais e regionais, a conferência reforça a importância das leis já vigentes de proteção às crianças e adolescentes, e da aplicação adequada delas. Também simboliza a retomada de campanhas de informação e do respeito às diversas formas de ser e existir, em qualquer idade e etapa da vida, conforme pontua Marina de Pol Poniwas.
“O Conanda e essa conferência tem esse projeto de debater essas possibilidades de ser e existir e estar no mundo e apoiar todas as formas de ser e estar. Não estamos aqui para diagnosticar se é isso ou se é aquilo, mas para acolher as formas de ser e existir e viabilizar todo o acesso a direitos e proteção dessas crianças e adolescentes que se reconhecem por vezes como trans, lésbicas, bissexuais, gays, travestis, enfim, como eles se identificarem”, afirma.
Presente no segundo dia da conferência, no dia 3, o presidente Lula exaltou a volta do diálogo em que “o governo escuta mais do que fala”. Lula também exaltou os programas do governo voltados à faixa etária, como o recém-lançado “Pé de Meia”, e a construção de escolas técnicas e em tempo integral, e reafirmou o papel do Estado em oferecer acesso e garantir direitos, “especialmente aos mais vulneráveis”.
“A família tem que ter harmonia, a família não pode viver na base do ódio. O moleque não pode ir para escola com raiva da escola, porque precisa que a escola seja uma coisa gostosa, para as crianças e adolescentes ficarem com vontade de estudar. Se não está tudo errado”, apontou.
Com sorriso no rosto e superando a vergonha de discursar diante de um auditório lotado, Nicolas também deixou um recado: “Nós adolescentes não somos apenas o futuro, somos o presente. Exigimos ser ouvidos e valorizados nas decisões que afetam nossas vidas e o nosso país, não apenas como espectadores mas como agentes da mudança. Que esta conferência seja um marco nessa jornada rumo à realização plena dos nossos direitos”.
Edição: Matheus Alves de Almeida