Há 60 anos, o golpe militar instaurou uma ditadura que manchou a história do país de sangue, com censura, prisões, torturas e desaparecimentos. Hoje, falar sobre os crimes cometidos pelo Estado parece algo distante, como um ponto fora da curva no pensamento coletivo da construção da democracia brasileira enquanto progresso e linear.
No entanto, a realidade dura e crua mostra que o movimento da história é feito de rupturas e continuidades e certamente o flerte entre a direita brasileira e o golpismo segue bastante presente. Os discursos do ex-presidente Jair Bolsonaro não nos deixam mentir: não foram poucas as vezes em que Bolsonaro e seus aliados exaltaram torturadores na arena política. A direita neofascista que estava no poder e segue como força social organizada na sociedade não esconde a sua predileção pelo autoritarismo e pelo apagamento de opositores.
Em 1964, a articulação entre o imperialismo estadunidense, militares, ruralistas, capital financeiro e atores conservadores depôs o presidente João Goulart, que naquele momento contava com 45% de aprovação, segundo dados do Ibope que foram mantidos em sigilo até o início da década de 1990.
Jango era a ponta do iceberg de um momento político pulsante e criativo no cenário artístico e cultural. As Reformas de Base, conclamadas em discurso na Central do Brasil, foram a síntese das lutas dos movimentos políticos desde o final da década de 1950. Dentre as reformas, destaco a Reforma Universitária defendida pela UNE e agitada em 1962 com a Caravana da UNE Volante e com o Centro Popular de Cultura (CPC), que tinha por objetivo democratização da universidade e maior participação dos estudantes em seus espaços de poder. E a Reforma Agrária, vista com temor pelos latifundiários, que ganhara corpo com a adesão do presidente às propostas mobilizadas pelas Ligas Camponesas desde de 1945. Às vésperas do Golpe, as Ligas se alastraram, com presença massiva na maioria dos estados do Nordeste, sendo o núcleo de Sapé/PB — onde foram filmadas as imagens de Cabra Marcado para Morrer (1984), de Eduardo Coutinho — o maior, com cerca de 7 mil associados.
O golpe militar devastou todo o processo criativo, artístico e de construção de soberania que tomava conta do nosso país. Afetou uma geração de militantes políticos que foram presos, torturados e que tiveram suas vidas assassinadas pelo poder da repressão militar. Violentou sexualmente mulheres, na medida em que o gênero e o sexo eram utilizados como forma de aprofundar a tortura, como podemos ver em Que bom te ver viva (1989), filme de Lúcia Murat.
Mas, não foram apenas pessoas de esquerda ou vinculadas à resistência democrática que sofreram os impactos da ditadura. Pelo conservadorismo e pela tentativa de normatização da sociedade a partir dos moldes da família, de Cristo e da “liberdade”, os grupos socialmente vulneráveis foram impactados de um modo geral. Favelas foram removidas em função do modelo econômico e autoritário do regime, à exemplo da favela do Esqueleto no Rio de Janeiro (onde fica a UERJ atualmente); houve controle político do que os militares chamavam de Associações Culturais vinculados à resistência do povo negro, através do movimento soul e dos bailes blacks na década de 1970; e forte perseguição da população LGBT com a montagem de um aparato de controle moral contra os comportamentos tidos como “desviantes” e “anormais”.
As arbitrariedades não pararam por aí. As populações indígenas foram duramente atacadas com o desrespeito aos marcos de seus territórios pelo avanço do agronegócio. Por fim, o combate à corrupção que parece ser tão importante para os “homens de bem” nunca foi tão esquecido como nos anos de chumbo. Desvio de verbas e de função, abuso de autoridade, tráfico de influências e superfaturamento eram comuns durante este período. O escândalo Lutfalla, no governo Geisel, e o caso Delfin, no governo Figueiredo, mostram que os militares esconderam corpos, verdades e muito dinheiro dos cofres públicos.
É por todo esse histórico que afirmamos: a democracia é um valor inegociável. Hoje, passados 60 anos, ainda lutamos contra os mesmos poderes autoritários. Na última década, o golpismo, que nunca descansou, retornou à agenda da direita brasileira.
Em 2016, a presidenta Dilma Rousseff, que combatera a ditadura militar, foi deposta a partir de um impeachment sem crise de responsabilidade. O golpe parlamentar serviu para atender interesses da grande burguesia brasileira, numa agenda de retirada de direitos sociais, como a reforma trabalhista (lei 13467/2017) e a Emenda Constitucional 95/2016, conhecida como “teto de gastos”; de grandes multinacionais, como a desobrigatoriedade de preferência da Petrobrás em operações de exploração de petróleo no campo do pré-sal (lei 133645/2016).
Em 8 de janeiro de 2023, grupos bolsonaristas invadiram sedes dos poderes de Estado numa tentativa golpista. Hoje, já sabemos que não foi a única: Bolsonaro e seus aliados não aceitaram a derrota eleitoral e elaboraram diversas maneiras de tentar impedir a transmissão da faixa presidencial, como nas minutas encontradas com seus ex-assessores.
Para além dos golpes de Estado e suas tentativas em si, temos de vigiar também a presença do autoritarismo no cotidiano da política. A constante violência política de gênero e de raça que as parlamentares mulheres, negras e negros e LGBTQI+ sofrem todos os dias é uma marca disso. O assassinato de Marielle Franco, encomendado por figuras do Estado brasileiro, em conluio com operadores da polícia civil, em meio a uma intervenção federal comandada por um general, demonstra que a luta por democracia é atual e permanente.
É um dever de memória seguir relembrando a vida daqueles que tombaram para que hoje pudéssemos estar aqui. Por isso, ir às ruas no dia de hoje por justiça pelos 21 anos em que o Brasil foi vendido e silenciado. É função educativa e política relembrar a verdade para não esquecer e para nunca mais acontecer: Ditadura Nunca Mais!
* Maíra Marinho - Doutoranda em História e militante do MST e Levante Popular da Juventude.
Edição: Matheus Alves de Almeida