Na data de hoje rememora-se os 60 anos do golpe militar de 1964. Florestan Fernandes, um grande intelectual orgânico da classe trabalhadora brasileira, cunha a expressão "contrarrevolução preventiva e permanente" para referir-se à ação golpista, capitaneada pelos militares, mas embalada em um programa político e econômico das elites brasileiras, associadas minoritárias que eram ao capital imperialista internacional. A concretude do golpe era muito mais do que a exacerbação de um caráter antidemocrático da burguesia da burguesia, mas – sobretudo – da sua natureza antinacional e antipopular.
Dessa forma, mais do que o componente do cerceamento das liberdades individuais e coletivas e da lapidação de um Estado em bases autocráticas, o golpe e os anos de exercícios de poder ditatorial foram vocacionados para mudanças econômicas estruturais. Ainda que os sucessivos governos militares tenham prosseguido um estilo intervencionista e industrialista de condução da política econômica – distinta de outras experiências latino-americanas que aliaram autoritarismo político com neoliberalismo econômico – isso não significou a manutenção do estilo nacional desenvolvimentista do período anterior, pelo grau de desnacionalização e aumento da dependência externa, sobretudo de financiamento estrangeiro.
A ditadura militar, em que pese tenha proporcionado um período de expressivo crescimento econômico com mudança estrutural, eternizado na alcunha "milagre econômico", o faz aprofundando as características mais preservas do subdesenvolvimento, tais como a heterogeneidade social, a concentração de renda e riqueza e as disparidades regionais. A crise econômica pregressa, ao invés de apontar para a estagnação econômica, como previa Celso Furtado, era tão somente um período de transição para um novo modelo de crescimento, em que não somente era possível quanto necessário o aprofundamento das desigualdades sociais.
Quem melhor captou a economia política do modelo de crescimento da ditadura militar foi a economista Maria da Conceição Tavares, em texto escrito com José Serra. Para ambos, a questão fundamental, no período do milagre, era adaptar a demanda nacional à nova estrutura de oferta ligada a um novo setor, que passou a ser o carro chefe da economia brasileira, que foi o setor de bens de consumo duráveis. Nesse sentido, o próprio desenvolvimento baseado na exacerbação da concentração da renda, principalmente após o forte ajuste fiscal dos anos de 1965 e 1966, ancorado no achatamento dos salários reais dos trabalhadores da base da pirâmide social, gerou as fontes de estímulo e de expansão que conferiram dinamismo a aquele padrão de acumulação, centrado no mercado interno e na indústria de bens de consumo duráveis.
O fato de parte significativa dos trabalhadores estarem desempregados ou com a renda corroída não era mais um problema, já que o dinamismo do sistema não dependia do padrão de consumo desses trabalhadores. Portanto, os salários podiam ser baixos e não haver problema de demanda efetiva ou de realização do valor, já que o setor carro-chefe do crescimento não dependia dessas rendas para ser consumido.
O consumo que importava para o novo padrão de crescimento era o das classes médias e médias altas. Entre os anos 1960 e 1970 a concentração exacerbada da renda foi em favor desses grupos, penalizando os assalariados menos qualificados, mas gerando condições para a ampliação do poder de compra de quem "importava". Em síntese: concentração de renda também gera crescimento, a depender da estrutura da oferta que mobiliza cada ciclo de econômico.
Portanto, o Brasil havia, de fato, enfrentado uma crise econômica iniciada ainda em fins da década de 1950, mas ao invés de estagnação, a ditadura militar lançou uma saída para perversa: um novo estilo de crescimento, priorizando a renda e o consumo das classes médias em detrimento da ampliação da renda e do consumo de massas.
O lema Relembrar, para que não se esqueça e para que nunca mais aconteça deve ocorrer em diversas dimensões: desde a punição dos envolvidos em crimes contra a humidade; à construção de espaços de memória coletiva e resgate da nossa história, até o debate amplo sobre a economia política das opções de política econômica, hoje cada vez mais subsumidas sob o véu da técnica, mas que esconde objetivos e projetos de país, com heranças de médio e longo prazo.
*Juliane Furno é professora da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e assessora da presidência do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)
* Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato
Edição: Thalita Pires