O golpe militar de 1º de abril de 1964 completa 60 anos, mas faz parte de um passado que insiste em se fazer presente no Brasil ainda hoje, haja vista a ascensão da extrema direita ao poder em 2018 e a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023. Por isso, como afirmou um historiador, é preciso que tanto o Estado quanto a sociedade civil enfrentem o legado dos “anos de chumbo”, esclarecendo fatos ainda não conhecidos e responsabilizando os agentes públicos que cometeram violações de direitos humanos.
O que aconteceu naqueles dias foi muito mais do que uma rebelião militar, envolvendo políticos de direita, setores do empresariado, a grande mídia e setores da Igreja Católica e da classe média. Estes segmentos derrubaram um projeto reformista encabeçado pelo presidente João Goulart (Jango), cuja expressão maior eram as reformas de base (agrária, urbana, eleitoral, educacional, fiscal, bancária e administrativa). Mas a conspiração conservadora contra a ampliação da democracia vinha de longe e era algo recorrente na história do Brasil, com golpes ou tentativas de golpe de militares e civis em 1945, 1954, 1955 e 1961, que culminaram em 1964.
Interessante notar que muito tempo antes da disseminação das fake news pela direita, os autores do golpe já criavam “narrativas” para justificá-lo. Em primeiro lugar, os conspiradores alardearam que havia um golpe da esquerda em curso para transformar o Brasil em uma “república sindicalista” ou em um país comunista. Então, vestiram a ruptura constitucional como uma ação para “restaurar a democracia”. Não satisfeitos, passaram a denominar o golpe como “revolução redentora”. Até a data eles mudaram: o golpe se consolidou em 1º de abril, mas passou a ser comemorado em 31 de março por temor a ser associado a uma mentira.
Parte dos políticos de direita, como Carlos Lacerda e Adhemar de Barros, apoiaram o golpe acreditando que, afastado Jango e o “perigo comunista”, os militares voltariam aos quartéis e respeitariam o calendário eleitoral. Mas, daquela vez, os fardados mostraram que tinham vindo para ficar: suspenderam as eleições e acabaram incluindo alguns arquitetos do golpe no rol dos cassados políticos, como os dois acima mencionados.
O projeto modernizador autoritário dos militares mostraria sua face repressiva desde os primeiros dias, com prisões arbitrárias, torturas, cassações e exílio de quem se opôs à instalação da ditadura. Mas esse projeto se radicalizaria em 1968, quando os estudantes saíram às ruas em diversas passeatas contra a ditadura, duramente reprimidas pela polícia. Com a edição do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em 13 de dezembro de 1968, ocorreu um “golpe dentro do golpe” que deu ao regime instrumentos ainda mais discricionários de repressão.
A tortura e o assassinato sistemático de militantes políticos por órgãos de repressão política, como o DOI-Codi (Departamento de Operações Internas do Exército), o Cisa (Aeronáutica) e o Cenimar (Marinha), além dos DEOPS (Departamentos de Ordem Política e Social dos estados), passaram a ser uma política de Estado.
Segundo o livro Direito à Memória e à Verdade, 475 militantes políticos morreram sob tortura ou tiveram suas mortes simuladas, como suicídios e atropelamentos. Outros simplesmente não tiveram suas prisões assumidas pelo Estado e seus restos mortais continuam desaparecidos até hoje.
De acordo com levantamento feito pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), 210 pessoas que resistiram à ditadura estão até hoje desaparecidas, tendo sido localizados somente 33 corpos. Os agentes dos órgãos de repressão até agora identificados, responsáveis pelas torturas e assassinatos, totalizam 337. Nenhum deles foi punido. Dados levantados por diversas entidades de direitos humanos mostram cerca de 20 mil brasileiros foram torturados durante a ditadura. Além disso, houve 130 banidos, 4.862 cassados e centenas de camponeses e indígenas assassinados.
Além de quartéis e delegacias, muitos dos “desaparecimentos” de presos políticos ocorreram em espaços clandestinos privados, como a “Casa da Morte”, localizada em Petrópolis (RJ), e o “Sítio 31 de março”, ambos sob o comando direto das Forças Armadas.
Na segunda metade dos anos 1970, desgastada pela crise econômica, por novos protestos estudantis e por greves de trabalhadores no ABC paulista, a ditadura aboliu o AI-5 e promoveu uma anistia política restrita, cujo corolário foi a impunidade dos agentes públicos envolvidos em torturas e assassinatos. Mesmo assim, esses agentes do “porão” ficaram inconformados e passaram a cometer atos terroristas, que culminaram na fracassada tentativa de explodir o Riocentro em 1981.
A ditadura saiu de cena em 1985, mas os setores reacionários que a geraram, embora inicialmente enfraquecidos, continuaram atuando no país. Combateram os primeiros governos do presidente Lula e da presidenta Dilma Rousseff, que retomaram o ímpeto reformista de Jango. Chegaram novamente ao poder em 2018, com Jair Bolsonaro, que tentou outro golpe contra a democracia em 8 de janeiro de 2023. Desta vez, graças à mobilização da sociedade civil e dos movimentos populares, eles falharam. Mas a tentativa mostrou que os militares continuam golpistas. Precisamos, portanto, rememorar o golpe de 64 e afirmar sempre: ditadura nunca mais!
* Raimundo Bonfim é Coordenador nacional da Central de Movimentos Populares (CMP).
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.
Edição: Matheus Alves de Almeida