Coluna

As disputas do planejamento urbano atual

É urgente ressaltar as pautas periféricas de interesse da classe trabalhadora na disputa pelos processos e discussões de planejamento - Rovena Rosa/Agência Brasil
Não existe expectativa de melhora nas condições de vida das pessoas

Por Anderson Kazuo Nakano e Thiago Andrade Gonçalves*

O Brasil vive um paradoxo! Com mais de 85% da população vivendo nas cidades, o país não possui um bom sistema de planejamento e gestão urbana estruturado nas escalas locais, metropolitanas, regionais e nacionais. Com uma sociedade altamente urbanizada, não há uma política nacional de desenvolvimento urbano que realmente possa ser colocada em prática através desse sistema multiescalar. Assim, não existe expectativas de melhoras nas condições de vida das pessoas que enfrentam dificuldades diárias por causa das profundas injustiças, desigualdades, precariedades e vulnerabilidades socioespaciais urbanas.

Diante desse paradoxo, as lutas realizadas por setores da sociedade brasileira precisam persistir na busca pela reforma urbana através da democratização do acesso à terra adequada e bem localizada e pela efetivação do direito à cidade justa, democrática e sustentável. Perante essa necessidade, cabe perguntar se as disputas sociais que emergiram nos processos recentes de revisão dos planos diretores de cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife, dentre outras, fazem parte dessas lutas pela reforma urbana e pelo direito à cidade. 

Vale ressaltar que a ocorrência de disputas em relação aos planos diretores indicam que as legislações municipais que instituem esses instrumentos básicos da política de desenvolvimento e expansão urbana, conforme definições da Constituição Federal e do Estatuto da Cidade, podem afetar os interesses de determinados grupos que vivem e atuam nas cidades. São planos diretores com mais aplicabilidade do que os planos diretores inócuos compostos somente com diretrizes setoriais genéricas e normas incompletas que necessitam de regulamentações posteriores para aplicações na regulação pública da urbanização, principalmente no controle de usos e ocupações do solo.

Nos recentes processos de revisão do Plano Diretor Estratégico (PDE - Lei 16.050/2014) e da Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (LPUOS - Lei 16.402/2026) do Município de São Paulo (MSP), caracterizados pela baixa intensidade democrática e pelos obstáculos à participação da classe trabalhadora de baixa renda, predominaram disputas entre interesses de agentes do mercado de incorporação imobiliária e moradores da classe média que vivem em bairros bem localizados nas áreas centrais da cidade, com boas provisões de serviços, equipamentos e infraestruturas urbanas e maior oferta de trabalho, emprego, consumo e oportunidades culturais.

As disputas ocorridas durante as revisões do PDE e da LPUOS do MSP, bem como em outras grandes cidades brasileiras, expuseram os conflitos entre, de um lado, os interesses daqueles que priorizam o valor de troca dos imóveis urbanos e buscam lucrar com a produção e comercialização de prédios residenciais e de escritórios que substituem antigas edificações e atividades pré-existentes nos bairros mais valorizados da cidade e, de outro lado, os  interesses daqueles que priorizam o valor de uso dos imóveis urbanos e cujo alto poder aquisitivo possibilita a compra ou o aluguel de moradias nesses bairros, bem como o usufruto das boas condições de vida, habitacionais e urbanísticas neles existentes.

Em relação aos grupos envolvidos nos conflitos mencionados no parágrafo anterior, os primeiros estavam interessados na ampliação das áreas demarcadas junto às linhas e estações de trens e metrô e aos terminais e corredores de ônibus onde o PDE e a LPUOS definiram os maiores potenciais construtivos. Os segundos estavam interessados em barrar essa ampliação de investimentos imobiliários e com isso evitar os processos de destruição e renovação das edificações e formas pré-existentes.

Em meio à guerra tecnocrática em torno de coeficientes de aproveitamento, alturas máximas e gabaritos das edificações e parâmetros de adensamento urbano, as aprovações das revisões parciais do PDE (Lei 17.795/2023) e da LPUOS (Lei 18.801/2024) do MSP escancararam o fato de que o governo capitalista da cidade de São Paulo favorece prioritariamente os interesses privados dos agentes e investidores do mercado de incorporação imobiliária em detrimento dos interesses não mercadológicos de outros grupos sociais que moram e atuam na cidade.

Nessa guerra tecnocrática, a linguagem, os discursos e as falas repletas de jargões técnicos das poucas pessoas que participavam dos debates públicos eram completamente incompreensíveis para a grande maioria das pessoas que vivem na cidade, principalmente nos bairros periféricos. As pautas periféricas de interesse da classe trabalhadora estavam totalmente ausentes desses debates públicos sobre o planejamento e a gestão da cidade de São Paulo que se restringiram ao debate imobiliário de classe média. Com isso, essas disputas se desviaram das lutas pela reforma urbana e pelo direito à cidade justa, democrática e sustentável que devem priorizar justamente essas pautas periféricas.

Essa ausência é grave porque os bairros periféricos também estão sofrendo com os aumentos dos preços de imóveis e de aluguéis, bem como do custo de vida, provocados pelos avanços do mercado popular de incorporação imobiliária que produzem condomínios verticais com altas torres de apartamentos vendidos para setores da classe média baixa. Esses empreendimentos são construídos tanto em glebas desocupadas quanto em áreas demolidas. Com o passar do tempo é provável que esse fenômeno conhecido como “verticalização da periferia” obrigue os moradores de baixa renda a se mudarem para a “hiperperiferia” (conforme acepção de Eduardo Marques e Haroldo torres) de municípios localizados na periferia metropolitana que se encontram mais distantes dos polos de trabalho e emprego localizados no MSP. 

Em partes da periferia da Zona Sul do MSP, nas áreas próximas ao Rio Pinheiros, ao Rio Jurubatuba, e à Represa Guarapiranga, há a expansão de uma frente de grandes investimentos imobiliários formada por empreendimentos residenciais e não residenciais multiuso de altíssimo padrão alavancados por grandes investimentos públicos, principalmente na infraestrutura viária e na despoluição do Rio Pinheiros. Trata-se do prolongamento da frente de investimentos imobiliários que se consolidou ao longo da via marginal ao rio Pinheiros desde a década de 1970. Na década de 1990, o instrumento de política urbana que respaldou essa frente foi a Operação Urbana Faria Lima (Lei 11.732/1995). Na década de 2000, foi a Operação Urbana Consorciada Água Espraiada (Lei 13.260/2001). Atualmente, é o Plano de Intervenção Urbana Arco Jurubatuba (Lei 17.965/2023). 

Com as expansões das frentes de investimentos imobiliários associadas à periferização da periferia na metrópole, é bastante provável que haja um aprofundamento das desigualdades e segregações socioespaciais e, caso isso aconteça, certamente irão ocorrer pioras nas condições de vida das pessoas impactadas negativamente por esses processos. Além disso, haverá o agravamento da crise de mobilidade e de suas implicações. Com isso teremos a perpetuação da crise metropolitana que já é insuportável para milhões de pessoas da classe trabalhadora de baixa renda que vivem nas periferias. Por isso é urgente ressaltar as pautas periféricas de interesse da classe trabalhadora na disputa pelos processos e discussões de planejamento e gestão da cidade e da metrópole.   

*Anderson Kazuo Nakano é arquiteto urbanista e demógrafo, professor doutor do Instituto das Cidades da Universidade Federal de São Paulo e coordenador do Observatório de Lutas Urbanas (OLU).

**Thiago Andrade Gonçalves é graduando em geografia no Instituto das Cidades da Universidade Federal de São Paulo e membro do Observatório de Lutas Urbanas (OLU).

*** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato) 

Edição: Thalita Pires