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O identitarismo está matando a esquerda?

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O Bolsonarismo cresceu somente em cima de pautas identitárias, mas com o sinal trocado. Ou seja, o que realmente move o bolsonarismo é a luta contra pautas identitárias à esquerda, numa luta pela dessas pautas em uma agenda de extrema direita
O Bolsonarismo cresceu somente em cima de pautas identitárias, mas com o sinal trocado. Ou seja, o que realmente move o bolsonarismo é a luta contra pautas identitárias à esquerda, numa luta pela dessas pautas em uma agenda de extrema direita - Vinícius Sobreira
A organização da luta só acontece quando existe esperança e um motivo para se lutar

É inegável o crescimento da extrema direita no Brasil e no mundo, ao mesmo tempo em que percebemos um enfraquecimento da esquerda. Tal cenário nos remete à reflexão acerca dos motivos de tal mudança.
Primeiramente, é preciso reconhecer a eficiência da extrema direita em se aproveitar do momento peculiar em que vivemos. Graças à facilitação do acesso a ferramentas como Facebook e Whatsapp, e da nossa atual inexperiência, que provavelmente diminuirá com o tempo, em lidar com informações falsas, os extremistas conseguiram prender algumas pessoas em um ciclo de mentiras interminável que se apodera das emoções e gera um grupo reacionário que investe seu tempo em páginas de comentários e grupos de Whatsapp, gerando assim um engajamento que se complementa com a criação de contas falsas.
No final, a extrema direita fica parecendo maior do que ela é, e tranca aqueles que caem em sua armadilha em uma bolha interminável de mentiras e ódio. O indivíduo preso na extrema direita sente que está em uma guerra, está sob constante ataque e precisa reagir, eliminar, destruir.
Quando olhamos para a esquerda, o motivo da perda de espaço é mais difícil de se diagnosticar, e um argumento que aparece com certa constância como sendo o motivador é o identitarismo. Basicamente, o argumento é o de que a esquerda gastou energia demais em pautas como feminismo, direitos LGBTQIA+, luta antirracista, direitos dos povos originários, e isso fez com que a população perdesse o interesse nas propostas à esquerda, já que para o povo o importante é a economia, a política, a criminalidade.
Tal argumento é falso.
Basta olharmos para o crescimento do Bolsonarismo. O Bolsonarismo cresceu somente em cima de pautas identitárias, mas com o sinal trocado. Ou seja, o que realmente move o bolsonarismo é a luta contra pautas identitárias à esquerda, numa luta pela dessas pautas em uma agenda de extrema direita. Bolsonaro falou mais sobre questões de gênero que qualquer candidato de esquerda. Enquanto candidatos a esquerda evitavam tais temas por medo de perderam votos, Bolsonaro venceu a eleição falando de gênero etc. Não podemos esquecer do patrocínio que Bolsonaro e outros receberam, e recebem, de milionários e bilionários como um fator também importante para a expansão da extrema direita.
Parece-me que a perda de espaço da esquerda no Brasil e no mundo não se deve às pautas identitárias, mas a uma arrogância esclarecida.
Há uma ideia nutrida por alguns de que a esquerda tem uma verdade a qual não é possível de se explicar para um leigo que não leu pelo menos o Capital, Gramsci e Lenin. Que a esquerda detém uma verdade inalcançável se a pessoa não souber o que é mais-valia ou o que significa o termo intelectual orgânico. E que devemos antes de debater qualquer questão do presente, falar exaustivamente de Stálin, pois se a imagem dele estiver prejudicada, então nenhuma revolução à esquerda é possível.
Soma-se a isso, a visão de que as pessoas não são capazes de enxergar a realidade como esse suposto intelectual de esquerda enxerga, e por isso ficam presas em pautas identitárias inúteis, quando deveriam esquecer seus problemas diários e ter uma visão mais do alto. Diante desse fenômeno, tal indivíduo de esquerda ou se coloca na posição de tutor dos ignorantes ou se cala por acreditar que possui uma verdade que não será compreendida por ninguém além dele e mais alguns escolhidos que se encontram em algum fórum online ou grupo numa universidade, não cabendo a ninguém do presente avaliar a atualidade e adaptar as formas e objetivos da organização popular.
A realidade é complexa, mas o fenômeno de acumulação excessiva de riqueza é bastante fácil de se compreender mesmo sem a leitura de algum intelectual à esquerda, afinal, essa é a realidade que encaramos todos os dias: muito trabalho e poucos recursos. Obviamente, o conhecimento é sempre bem-vindo, e a leitura de intelectuais pode ajudar, mas a esquerda sempre foi mais dinâmica que a direita por estar muito mais apegada aos fatos do que à pessoas ou dogmas. Conservador de esquerda é um absurdo.
É preciso insistir nas pautas identitárias e olhar para o núcleo do problema: temos cada vez menos poder porque a riqueza está cada vez mais concentrada nas mãos de poucos. A supressão das pautas identitárias é uma tentativa de conformar o povo a uma hierarquia que beneficia poucos e explora muitos e, ao mesmo tempo, tirar o seu poder de organização e de percepção de que a realidade pode ser diferente e melhor.
O movimento por um mundo melhor passa pelo reconhecimento das pessoas como pessoas, como seres que amam, sofrem e sentem, e a organização da luta só acontece quando existe esperança e um motivo para se lutar.

*Policial militar aposentado e antifascista, defensor dos direitos humanos

**As opiniões expressas nesse texto não representam necessariamente a posição do jornal Brasil de Fato Paraná

Edição: Pedro Carrano