A mentira como artimanha política se transformou em um método para as disputas eleitorais e, também, em um mecanismo para desacreditar seus adversários. A prisão dos suspeitos da autoria intelectual do assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes representa não apenas a possibilidade da justiça tão esperada.
Significa a quebra de um silêncio imposto pela cumplicidade do governo passado e pelo envolvimento das próprias forças de segurança pública. Essas prisões podem simbolizar, ainda, a vitória da verdade sobre todas as calúnias proferidas contra Marielle.
Desde seu assassinato, em 14 de março de 2018, inúmeras foram as “fake news” espalhadas a respeito da então vereadora carioca. Crítica das milícias e da intervenção militar nas favelas do Rio de Janeiro, Marielle foi vítima de uma campanha difamatória perpetrada pelas milícias digitais, principalmente após a eleição de Bolsonaro (2018). Marielle passou a ser: “a ex-mulher do traficante Marcinho VP”;” a vereadora eleita pelo Comando Vermelho”; “usuária de maconha”; “defensora de bandidos”; “filha do traficante Fernandinho Beira-Mar”; etc. Era preciso relacioná-la com o crime organizado para deslegitimar o seu assassinato como um crime político.
O mais recente ataque à memória de Marielle foi dito pelo deputado federal Nikolas Ferreira (várias vezes multado por fake news e processado por pronunciamentos preconceituosos), no qual procurou vincular um dos mandantes de seu assassinato ao Partido dos Trabalhadores (PT). Seu objetivo é nítido: desviar possíveis relações do crime com a família Bolsonaro, tática adotada desde as primeiras investigações.
A fala do referido deputado e a ação das milícias digitais são expressão do método da mentira como arma política em contextos de acirrada disputa. Os fatos reais e objetivos, aquilo que realmente existe e acontece, parecem exercer menor influência na percepção das pessoas acerca da realidade. Aquilo que realmente acontece na sociedade, a verdade dos fatos registrados por câmeras, em discursos, em entrevistas e reportagens, torna-se irrelevantes. A verdade é aquilo que eu acredito e, se eu acredito, é verdade.
Essa relativização da verdade é impulsionada pelas bolhas digitais por meio das quais se interage apenas com aqueles que pensam igual, e reproduzida por meio dos algoritmos que direcionam conteúdos de acordo com a bolha digital.
Soma-se a isso, uma espécie de “inquisição popular”, em que todos se sentem empoderados a julgar tudo e todos, inclusive indo às últimas consequências, como o caso da mulher que faleceu após ser espancada por dezenas de moradores em Guarujá, São Paulo, em 2014, motivados por uma notícia divulgada em rede social que a vinculava ao sequestro de crianças.
As fake news acabam, de certa forma, imputando às vítimas a necessidade de comprovarem a sua inocência, tamanha é a relativização da verdade. Um caso bastante emblemático é do adolescente Marcos Vinícius da Silva, de 14 anos, baleado em uma operação da Polícia Civil no Complexo da Maré, Rio de Janeiro, em 2018. Ao ser atingido, o menino teria perguntado: “Eles não viram que eu estava de uniforme, mãe?” Enquanto o filho era operado no hospital, a mãe se deparou com uma fake news associando-o ao crime organizado. Uma foto postada em rede social mostrava um menino segurando um fuzil e identificado como sendo seu filho.
As prisões de Chiquinho Brazão, Domingos Brazão e Rivaldo Barbosa, suspeitos de mandar assassinar a vereadora carioca Marielle Franco, poderão dissipar as brumas que ainda pairam sobre o caso. Desde os interesses imediatos dos mandantes até suas relações mais estreitas com o crime organizado e com chefes políticos poderão ser desvendados.
Chiquinho Brazão é deputado federal pelo União Brasil, partido político que surgiu da fusão entre o Democratas (DEM) e o Partido Social Liberal (PSL), em 6 de outubro de 2021, mas cuja essência está na Aliança Renovadora Nacional (ARENA), ou seja, no partido de sustentação da Ditadura empresarial militar (1964-1985) e no subsequente Partido da Frente Liberal (PFL), das oligarquias Bornhausen e Antônio Carlos Magalhães.
A base eleitoral de Chiquinho, que tem garantido cargos políticos não só a ele, mas ao irmão também, fica na região de Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, área dominada por milicianos. O sobrenome da família já havia aparecido em outros processos, inclusive na CPI das Milícias, da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), em 2008.
Antes de seus dois mandatos para a Câmara federal, Chiquinho exerceu o mandato de vereador no Rio por 12 anos. Em 2019, o sobrenome Brazão voltou a ser relacionado à milícia num caso de propina a um funcionário da prefeitura. Em 2023, Chiquinho ocupou um cargo de confiança na gestão municipal de Eduardo Paes.
Domingos Brazão acumula suspeitas de corrupção, fraude, improbidade administrativa, compra de votos, etc. Em 2011, teve seu mandato cassado depois de uma investigação sobre compra de votos. Anos antes, em 2004, seu nome já havia sido associado à máfia dos combustíveis. Em 2019, Domingos foi denunciado por interferir nas investigações do caso Marielle. Assim como seu irmão, Domingos iniciou na vida política como vereador, logo ascendendo ao cargo de deputado na Alerj, de onde só saiu 17 depois para assumir o cargo no Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro. Como vice-presidente do TCE, acabou preso, acusado de corrupção.
Ao que tudo indica, parece ter havido premeditação por parte dos irmãos Brazão. Em 2017, um ano antes do assassinato de Marielle e Anderson, os dois trabalharam para infiltrar um miliciano nos quadros do Partido Socialismo e Liberdade (PSol), a organização política de Marielle, com o objetivo de monitorar seus passos. O desagravo dos irmãos estaria relacionado ao enfrentamento da vereadora às atividades das milícias e da grilagem de terras. A firme determinação de Marielle para destinação de terras para moradias populares se contrapunha ao esquema da família Brazão de grilar terras para fins comerciais. Trata-se de uma área aonde a especulação imobiliária e as construções ilegais vêm crescendo enormemente, motivadas, sobretudo, pela ação das milícias e de traficantes.
Rivaldo Barbosa foi nomeado pelo General Braga Netto chefe da Polícia Civil do estado do Rio de Janeiro um dia antes do assassinado de Marielle e Anderson. Foi para Rivaldo que o então deputado estadual, Marcelo Freixo, ligou para informar sobre o crime. Um ano depois, Rivaldo foi denunciado por receber propina para atrapalhar as investigações sobre o caso e por fraudes em licitações. Rivaldo é acusado, também, de firmar acordos com infratores para encobrir crimes ligados aos jogos ilegais, como o do bicho, por exemplo. Barbosa foi contra a transferência das investigações sobre o assassinato de Marielle para a esfera federal e, ainda, forjou uma testemunha para atrapalhar as investigações.
A relação dos suspeitos com o crime organizado e com as milícias diz muito sobre como a política, o crime organizado e as milícias estão entrelaçados. Essa situação da cidade do Rio de Janeiro deve servir de alerta para pensar como um sujeito sem expressão política alguma, sem a capacidade cognitiva de fazer um discurso, mesmo quando lido, que, ao longo de sua atividade política em quase trinta anos como parlamentar, aprovou apenas dois projetos, tenha conseguido se reeleger tantas vezes e ainda, chegar à presidência da República. Ao analisar o resultado da última eleição presidencial, é possível verificar que nos bairros cariocas controlados pelas milícias, Bolsonaro recebeu mais votos que seu opositor, Lula.
O autor dos disparos que vitimaram Marielle, Ronnie Lessa, sargento reformado da Polícia Militar do Rio, morava no mesmo condomínio do ex-presidente, cujo filho mais novo namorou com a filha de Ronnie. Lessa carrega consigo uma longa lista de crimes envolvendo tentativa de tráfico internacional de armas, venda ilegal de armas e duplo homicídio numa disputa por zonas de influência de milícias rivais.
Ronnie foi formado pelo Batalhão de Operações Especiais e, juntamente com Adriano da Nóbrega, ex-capitão do Bope, morto em uma operação da PM baiana envolta em contradições, dúvidas e mistérios, atuava no Escritório do Crime, uma espécie de força paramilitar de matadores de aluguel a serviço de bicheiros, milicianos, políticos e outros poderosos do Rio. Interessante observar que Nóbrega liderava a milícia desde sua criação em 2007, sendo que sua mãe e sua esposa passaram a exercer cargos de confiança no gabinete do deputado estadual Flávio Bolsonaro somente a partir de 2012, e por lá ficaram até novembro de 2018.
É fundamental ainda ressaltar a proximidade das famílias Bolsonaro e Brazão, que estiveram lado a lado dividindo carros de som e palanques eleitorais na campanha presidencial de Bolsonaro e possuem interesses na “regularização” de terras para a especulação imobiliária ilegal na região oeste do Rio, base eleitoral de ambas as famílias.
Ao mesmo tempo, cabe relembrar a exigência de Bolsonaro para que seu ministro da Justiça, Sérgio Moro, trocasse o comando da Política Federal do Rio de Janeiro que vinha investigando alguns aspectos do assassinato, além da espionagem da Agência Brasileira de Informação (Abin) sobre a promotora do caso Marielle.
Quando a notícia do assassinato de Marielle e Anderson vieram a público, as redes sociais foram tomadas por uma espécie de distopia, na qual pessoas, intencionalmente, passaram a fabricar e propagar inverdades sobre as vítimas, sobre a autoria, sobre o caso. Para cada notícia falsa desmentida uma nova surgia. Mesmo com a possibilidade de acesso a toda e qualquer informação, com toda a possibilidade de certificação da veracidade dos fatos, as mentiras continuavam a ser espalhadas. Nem mesmo a credibilidade de interlocutores ou de alguns poucos meios de comunicação mais sensatos conseguiam quebrar o ciclo da reprodução das fake news. Estes, como contraditores da “nova verdade”, eram logo desqualificados, e a bolha virtual se encarregava de garantir acesso às informações diretamente nas fontes criadoras e propagadoras da mentira. Sinal obscuro de uma época na qual a credibilidade está naquele que diz o que eu penso.
Esse quadro torna urgente a aprovação do Projeto de Lei (PL) nº 2630, de 2020, que propõe a criação da Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na internet, conhecido também como o PL das fake news. Na sessão que votou o regime de urgência do referido PL, os partidos União Brasil, Progressista, Partido Liberal (de Bolsonaro e tantos outros bolsonaristas, como Nikolas Ferreira), Cidadania e Novo, votaram majoritariamente contra. O partido de Bolsonaro, que possui a maior bancada na Câmara Federal, registrou 79 votos contrários para o regime de urgência do PL das fake news, que continua parado na Câmara.
A relação dos suspeitos pela morte de Marielle e Anderson com o crime organizado e com as milícias diz muito sobre a forma como as expressões política, jurídica e legal das contradições sociais atuam para perpetuar o atual estado de coisas. Longe de representar a possibilidade de solução dos conflitos presentes na sociedade, tais instituições agem para reproduzi-los. Enquanto parlamentares e militares investigarem e julgarem a si próprios, a justiça será apenas uma dissimulação, um fingimento, uma simulação. Enquanto os mandatos parlamentares não estiverem submetidos à revogabilidade popular e ao financiamento público, sem possibilidade alguma de investimento empresarial ou privado, essa democracia continuará restrita aos grupos econômicos e às oligarquias familiares.
Da mesma forma, a permanência da imunidade parlamentar, mecanismo que visa impedir que políticos sejam julgados por eventuais crimes comuns, poderá perpetuar a impunidade que reina quando, sobre o infrator, recaem olhares de cumplicidade.
O infrator já sabe, de antemão, que será julgado por seus iguais. Não a igualdade de posição, como parlamentar, mas uma igualdade nas infrações, nos crimes, na ilegalidade. Se não fosse assim, o que explicaria a existência de partidos cujos quadros são formados por patrocinadores da grilagem, do garimpo ilegal, da invasão de terras indígenas e quilombolas, do assassinato de lideranças populares e tantas outras barbáries. A complacência, a desfaçatez, com a criminalidade é tanta que teve partido indicando para a presidência de uma de suas sessões o assassino de Chico Mendes, ambientalista e sindicalista, reconhecido internacionalmente pela sua luta em defesa da floresta amazônica.
O assassinato de Marielle e Anderson escancara um outro problema que parece longe de ser resolvido: a impunidade de agentes das forças de segurança, agravada por um código militar que caracteriza denúncias contra a oficialidade como insubordinação, por um justiça própria, na qual parceiros de farda julgam seus pares, resultando, quase sempre, em penas brandas ou mesmo no arquivamentos dos processos.
Quanto mais alta a patente, mais certa é a impunidade. A milícia denominada Escritório do Crime foi formada por um capitão e por um major da PM carioca enquanto ainda faziam parte da corporação. Não se pode esquecer dos “bicos” exercidos por servidores da segurança pública em favor de empresas, bicheiros, donos de bares, boates e afins.
O caso Marielle descortina os meandros da corrupção latente nas forças policiais que ligam crime organizado, forças de segurança e as instituições políticas e jurídicas. Mais grave que isso, é a evidente reprodução da violência desmedida contra todos aqueles e aquelas que se levantam contra as injustiças que marcam nossa história. Que o legado de Marielle, e de tantos outros lutadores do povo, siga servindo de exemplo e inspirando a luta por uma sociedade livre das desigualdades sociais, da miséria, da opressão e da exploração.
*Graduado em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (2006). Possui Especialização em História, Arte e Cultura pela Universidade Estadual de Ponta Grossa - UEPG (2018). Mestre em Ensino de História - UFPR (2020). Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná.
**As opiniões expressas nesse texto não representam necessariamente a posição do jornal Brasil de Fato Paraná.
Fonte: BdF Paraná
Edição: Pedro Carrano