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Combate ao Racismo: negra sou e isso é muito

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print com comentário racista sobre a vereadora, durante debate na Jovem Pam sobre o PL de empoderamento de meninas e jovens - Reprodução
Para ele, figuras como a minha simplesmente não podem ser autoridades

Pedir por justiça todos os dias é uma necessidade das pessoas negras deste país, porque o tempo todo somos submetidos às mais brutais e gratuitas violências.

Dentro do fazer político, essa dinâmica permanece. Digo isso porque ocupo o Legislativo Municipal a partir do meu corpo lésbico e preto, que continua enfrentando dificuldades diárias, não importa onde esteja.

Dou exemplos. Cabe à pessoa que ocupa o cargo de vereadora o trabalho de fiscalização dos serviços públicos da cidade. Mas diante da configuração do imaginário coletivo criado pelo racismo estrutural, meu corpo de vereadora preta me impede de fazer isso.

Certa vez, quando fui fiscalizar uma Unidade de Pronto Atendimento em Curitiba (UPA), fui barrada por pessoas da administração, que chegaram inclusive a ameaçar chamar o segurança para me "arrastar para fora". Outra vez, durante um evento do governo do Paraná no Palácio Iguaçu (onde minha mãe lavava as escadarias), fui abordada por um segurança que alegou ter me visto pulando a corda que separava o espaço para as autoridades.

Para ele, figuras como a minha simplesmente não podem ser autoridades, mesmo que na ocasião eu estivesse identificada como parlamentar. O extremismo é tanto que ele jurava ter me visto pulando a corda de divisão. Após tantos eventos como esses, tive que pedir que a Câmara Municipal de Curitiba me desse um crachá de vereadora, para que eu parasse de vivenciar episódios assim, como ser barrada e puxada pelo braço, hostilizada e retirada dos espaços para os quais fui democraticamente eleita a ocupar.

De toda forma, tenho que travar diariamente uma luta contra o racismo, contra os preconceitos enraizados até mesmo numa parte da população que acha bacana usar ofensas racistas (leia-se cometer crimes) nas redes, por meio de comentários como "essa mulher aí, se desenrolar o cabelo, cai meio kilo de baseado (foto)."

É, portanto, esse o lugar de onde falo, o lugar de alguém que sente na pele como as pessoas pretas são tratadas neste país, o tempo todo. Precisamos sobreviver diariamente a uma vontade de extermínio e a ações que tem o objetivo de apagar nossos corpos. Essa é a nossa realidade e, para a gente, ela sempre existiu.

Nossa população já sofreu tanta violência que sequer conseguimos entender o que aconteceu nos tempos passados. É impossível dimensionar a crueldade a que fomos submetidos, tamanha a barbárie que nos foi imposta. São tantos corpos pretos executados, violentados, que sequer conseguimos contar.

O mais difícil é que essa barbárie continua. Ainda é assim nos espaços políticos, na periferia, e em todos os lugares de poder existentes na sociedade, que nos foram e até hoje nos são negados. O racismo e as formas de escravizar corpos como o meu só se atualizaram aos tempos modernos.

Mas, do chão de onde jazem nossos incontáveis corpos, nascem sementes. Vozes e vontades de justiça, para que o nosso povo consiga existir sem ter o tempo todo que lutar por sobrevivência. Esse país sempre foi difícil, mas não pode ser mais. Porque ele precisa ser sua maior potência: ser um país de todo mundo.

Tivemos uma semana marcada por uma data importante, o Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial. Um dia proclamado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em memória ao massacre de Sharpeville, em Joanesburgo, na África do Sul, quando uma multidão de negros e negras foi atacada pelo exército durante um protesto pacífico contra a segregação sócioambiental.

No massacre, 69 pessoas morreram e 186 ficaram feridas. O ano era 1960, mas até hoje estamos lutando, todos os dias, para sobreviver.

Cansamos de ser estatísticas, agora estamos fazendo e narrando as nossas próprias histórias. E não pedir permissão para isso.

A minha é esta: vim da periferia de São Paulo e, depois que minha mãe morreu, cheguei em Curitiba. Procurava os corpos pretos na rua e lembro de me impressionar com a baixa contagem: via uns 3, 4 no máximo, por um dia inteiro.

Mas, foi sair do centro que a coisa mudou. Encontrei os meus na periferia, que afinal é a continuidade do Brasil. Na faculdade de Pedagogia da UFPR, vivi o movimento estudantil. Lá, entendi o significado social e político da cor da minha pele.

Anos depois, como fotojornalista, denunciei inúmeras violências que já conhecia muito bem. Famílias perdendo suas casas, e pessoas perdendo suas vidas. Foi contando histórias que também são minhas que cheguei à Câmara Municipal. Não vim sozinha e por isso trabalho muito, para fazer valer nossa presença e os nossos direitos.

Em menos de um ano, com o mandato popular, conseguimos criar o Centro de Atendimento Enedina Alves Marques (Creafro), para as vítimas de racismo.

Emplacamos a Lei Vini Júnior de Combate ao Racismo no Esporte (Lei Municipal nº 16.267/2023). Participei ativamente da execução do monumento Enedina Alves Marques, que virou um local de referência para a nossa população. E consegui destinar quase R$ 2 milhões do orçamento municipal para as áreas mais periféricas, onde o dinheiro público nunca chega.

Ainda há muito por fazer, sobretudo num país onde até 1888 a única possibilidade de relação entre brancos/as e negros/as era a de escravizado. Há muito, fomos libertos, mas estamos longe de vivenciar a liberdade.

Estamos vivenciando a luta, e é ela que nos dá esperança de uma vida melhor. A vida de todas, todos e todes importa. E é para mudar o rumo dessa história que estamos aqui, atuando no dia a dia e honrando a vida e a luta dos nossos ancestrais.

 

Edição: Pedro Carrano