conflito fundiário

Comunidade Marielle Franco tem reintegração de posse suspensa em Lábrea (AM)

TJAM já havia decidido que a competência para julgar o caso é da Justiça Federal

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Força policial em frente a comunidade Marielle Franco em Lábrea (AM) - Reprodução

Os moradores da comunidade Marielle Franco, localizada em Lábrea (distante 853 quilômetros de Manaus), no sul do Amazonas, viveram momentos de tensão, na última sexta-feira (22), depois que o juiz Roberto Santos Taketomi, da comarca do município, expediu um mandado de reintegração de posse da área, em favor do fazendeiro Sidnei Sanches Zamora, proprietário da fazenda Palotina. A decisão do magistrado foi expedida na última terça-feira (19). Na sexta-feira (15), o desembargador Airton Luís Corrêa Gentil, do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM) já havia decidido que o caso é de competência da Justiça Federal, por se tratar de terras da União.

O curioso é que pouco antes da decisão do desembargador entrar no sistema do Tribunal de Justiça do Amazonas, o próprio juiz Roberto Santos Taketomi também determinou a suspensão da reintegração de posse.

Dois moradores da comunidade Marielle Franco falaram com Amazônia Real sobre o processo de reintegração, sob condição de anonimato, já que temem por suas vidas. “A Polícia Militar chegou aqui por volta das 6h. Eles ficaram esperando na entrada do ramal a ordem para entrar e derrubar todas as casas. O oficial de justiça recebeu ligações, saiu do local mas os policiais ficaram lá”, conta o agricultor de 50 anos.

Ele relata que os moradores da comunidade souberam da ordem de reintegração durante a madrugada. “Reunimos todo mundo na igreja, mas foi em cima da hora. Um negócio feito debaixo da cortina, sem avisar nada”, revela.

Outro morador da comunidade descreveu a situação de apreensão vivida diante da dos moradores com a presença da polícia no local. “As famílias estão aqui encurraladas. Eles estão aqui com máquinas, retroescavadeira, caçamba, segundo informações estão chegando com esteira [tipo de trator] e ordem é arrancar todo mundo e derrubar as casas das famílias”, contou.

“Tem famílias com nove anos aqui dentro, lutando, trabalhando, tirando seu sustento da terra, e nós estamos nesta situação. O fazendeiro quer passar por cima de todos nós, então nós estamos precisando de ajuda de todo lado. Tem mães aqui gestante de sete meses, seis meses, estamos desesperados. A gente não sabe se vai ter hoje um teto pra dormir”, desabafou outro agricultor da comunidade, com 40 anos.

Histórico do conflito

O conflito, que se arrasta judicialmente desde 2016, teve um novo capítulo de violência, em fevereiro passado, quando quatro agricultores foram espancados e torturados. O mandante do crime, de acordo com um dos líderes da comunidade, o agricultor e ambientalista Paulo Sérgio Costa de Araújo, seria o fazendeiro Sidnei Zamora, que por meio de seu advogado, negou qualquer participação no crime. O líder comunitário, foi preso no dia 5 deste mês, sob acusação de organização criminosa, depois que foi  à delegacia denunciar o caso de agressão e tortura na comunidade Marielle Franco.

A comunidade que recebe o nome da vereadora do PSOL, que foi brutalmente assassinada em 2018, no Rio de Janeiro, abriga aproximadamente 200 famílias e tem entre 18 mil e 20 mil hectares. 

O acampamento foi criado em 2015 e a batalha judicial pela posse da terra ganhou os tribunais em novembro de 2016.  Sidnei Sanches Zamora alega ser o dono da terra. O Incra diz que até o momento, o dono da Fazenda Palotina, não apresentou os títulos de terra referentes à área e que, por conta disso, as terras devem ser arrecadadas.

O superintendente do Incra no Amazonas, Denis da Silva Pereira, disse à Amazônia Real que o órgão, por meio de sua procuradoria Especializada de Conciliação Agrária, informou ao juiz Roberto Santos Taketomi, em novembro do ano passado, que o caso deveria ser encaminhado para a Justiça Federal. Taketomi não só não remeteu o caso à Justiça Federal, como ainda expediu a ordem de reintegração de posse.  “A [reintegração de posse] de hoje foi cancelada, mas a disputa jurídica continua”, pontua o superintendente do Incra no Amazonas.

Suspensão

A decisão de suspender o cumprimento da ordem de reintegração de posse expedida pelo Taketomi foi do desembargador Airton Gentil, que atendeu a um recurso apresentado pela Defensoria Pública Estado do Amazonas (DPE-AM). Na decisão, o desembargador determinou que o caso seja analisado pela Comissão de Conflitos Fundiários da Corte.

No recurso ao TJAM (um Agravo de Instrumento, com pedido de Antecipação de Tutela), a Defensoria Pública ressaltou que “as famílias que residem no local retiram de lá sua subsistência por meio da agricultura familiar e que, se a reintegração fosse cumprida, havia grave violação dos direitos humanos de difícil reparação”.

Ainda segundo a defensoria, o agravo  apontou que decisão para a reintegração de posse não foi previamente comunicada à Comissão de Conflitos Fundiários do TJAM, como preveem as medidas determinadas pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 828 em casos de despejo ou reintegrações coletivas. Caso semelhante aconteceu nesta semana, em Manaus, quando a DPE-AM conseguiu suspender a remoção de flutuantes na orla do Tarumã. 

“Há muito tempo nós estamos sustentando que nesse processo há várias nulidades que impedem a reintegração. Entre as nulidades está o fato que a Justiça Estadual é incompetente, pois o processo deve tramitar perante a Justiça Federal, por se tratar de área em domínio da União”, disse Defensor Público Geral do Amazonas, Rafael Barbosa, em nota enviada pelo órgão. 

“A Defensoria também não foi intimada de forma prévia para se manifestar antes do cumprimento do mandado para viabilizar o direito de defesa do grupo vulnerabilizado”, conclui Rafael Barbosa. 

Liderança está presa

Manuel do Carmo, da Comissão Pastoral da Terra (CPT) do Amazonas, comemorou a suspensão da ordem judicial. “Chegamos a um denominador comum de que a terra é de quem trabalha e terra é para oferecer moradia, condições de vida, abastecimento para as outras comunidades e aos próprios municípios vizinhos, o que a comunidade Marielle Franco já vem fazendo”, defende. 

Ele aguarda que os moradores possam ficar em definitivo no local. “A gente espera que esse povo seja assentado de vez lá e que possa continuar vivendo a sua vida com uma certa harmonia, uma certa tranquilidade porque esse povo merece”, diz.

Manuel do Carmo também espera que o agricultor e ambientalista Paulo Sérgio Costa de Araújo seja colocado em liberdade. 

“Essa situação de prender o Paulo porque ele denunciou as atrocidades que aconteceram na comunidade… Prendem uma pessoa e vem a toque de caixa uma reintegração de posse? A gente não entendeu muito que situação foi essa do judiciário. Para nós é uma situação muito surpreendente porque existem aspectos ilegais, porque [o caso] não passou pela Comissão de Conflito Agrário do Estado do Amazonas determinada pelo Supremo Tribunal Federal”, finaliza Manuel. 

Esta matéria foi atualizada no dia 23 de março para incluir informação de que o juiz Roberto Santos Taketomi suspendeu sua própria decisão.