Paraíba

Coluna

Questão de oportunidades: o direito à educação transforma vidas

Em dez anos de política de cotas, houve um aumento de 167% no número de ingressantes por cotas nas IES, de acordo com a Agência do Governo. - Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil/Arquivo.
Como se manter em uma IES, sendo da classe popular trabalhadora?

Por Ana Cristina Silva Daxenberger*

Nas últimas semanas, muito se tem debatido sobre a política de cotas em universidades públicas federais ou estaduais. Esse debate não é somente sobre a não aceitação de estudantes autodeclarados pardos por uma banca de heteroidentificação, na USP. O debate sobre o direito de garantir cotas na entrada para as Instituições de Ensino Superior (IES) sempre teve um movimento de resistência por aqueles que não querem mudar o status quo da sociedade brasileira.  Por anos, as universidades públicas foram espaço quase que exclusivo de brancos, de classe mais favorecida. 

Só a partir de 2012, por meio da Lei 12.711, que dispõe sobre o ingresso nas IES e nas instituições de federais de ensino técnico de nível médio, houve mudanças significativas no perfil da população universitária em instituições públicas.

De acordo com os dados da V Pesquisa do Perfil Socioeconômico e Cultural dos Estudantes de Graduação das IES, de 2018, a comunidade de estudantes era formada por 54,6% de mulheres. Mais de 50% tinham idade de 20 a 24 anos e 51,2% da população universitária se declarava negra. E 64% (quase 2/3) dos estudantes cursaram o ensino médio em escolas públicas. Ora, será que isto não é resultado da política de cotas implantada oficialmente em 2012? 

Em dez anos de política de cotas, houve um aumento de 167% no número de ingressantes por cotas nas IES, de acordo com a Agência do Governo. Em 2012, eram 40.661 estudantes ingressantes em diferentes cursos de graduação em virtude de políticas de cotas, e em 2022 passou para 108.616. Desse último número, 55.371 ingressaram por meio da questão étnico-racial, sendo ainda inferior ao número de 99.866 que estudavam em escola pública, e seguido por 45.226 que tinham a renda per capita inferior a um salário mínimo e meio. Ora se isto não é política de inclusão social, eu não sei o que poderia ser!

No entanto, entrar na universidade pública é só o primeiro desafio do/da estudante de escola pública. Para frequentar o ambiente acadêmico, muitos precisam deixar suas famílias em outras cidades ou, até mesmo, estados. Como se manter em uma IES, sendo da classe popular trabalhadora? O desafio seguinte é tentar se manter na universidade com todos os custos, que muitas vezes a família não tem condições de arcar: comida, alojamento, locomoção e, por que que não incluir os gastos dos próprios estudos na universidade como livros, materiais e equipamentos que alguns cursos exigem?

Então, pensar em políticas e ações afirmativas, como a política de cotas, exige um esforço muito maior das IES com a implementação de política de permanência e conclusão de estudos. Afinal de contas, democratização do ensino perpassa a entrada, a permanência e a qualidade de ensino em busca de formação inicial para o mundo ou mercado de trabalho.

O esforço ainda maior, em meu entendimento, é dos inúmeros estudantes que muitas vezes precisam superar desafios pessoais para conquistarem seu espaço e poderem ter melhores condições de vida. Nesse sentido, vamos dar vozes aos estudantes, que de alguma maneira conseguiram ou estão conseguindo superar essas dificuldades. Esperamos oportunizar pelo menos um relato de estudante, no mês, para dar voz aos que muitas vezes não são ouvidos. E exemplificar como o direito à educação pode transformar vidas e, assim, realizar o essencial da política de cotas. 

A filha de Dona Graça e a mãe da Vanessa

Por Vanessa da Silva Santos**

A filha de Dona Graça é uma mulher negra de pele clara, olhinhos apertados e cabelo crespo
A filha de Dona Graça vive realizações que um dia foi sonhado por ela

A mãe da Vanessa é uma mulher branca, olhinhos apertados e cabelo cacheado.
A mãe da Vanessa foi mãe solo e sempre fez de tudo por ela

A filha da Dona Graça hoje em dia é professora e intérprete de Libras.
A filha de Dona Graça ascendeu na vida através da educação

A mãe da Vanessa concluiu o Ensino Fundamental II e nesse ano irá se inscrever na EJA para concluir o Ensino Médio
A mãe da Vanessa enxergou na educação um fator importante na formação da sua filha


Vanessa da Silva Santos. / Foto: Arquivo pessoal.

Não poderia começar esse diálogo sem honrar e evidenciar uma parte da minha ancestralidade, a minha mãe. Desde muito cedo, lembro do esforço dela, diante das condições existentes, em me proporcionar as melhores vivências educacionais, desde ir tentar uma matrícula, em uma escola distante da nossa casa, já que julgava ter uma melhor estrutura, até o cuidado em estar presente nas minhas apresentações escolares.

Como já observado no pequeno poema acima, o meu nome é Vanessa, tenho 32 anos, sou uma mulher negra de pele clara, com cabelos crespos, natural da cidade de São Paulo (SP), mas com o coração pertencente à cidade de Areia (PB). Atualmente, moro em Santos,  sou professora e intérprete de Libras.

A escolha pela docência ocorreu desde muito pequena, inspirada em minha tia, que é professora, e pelas brincadeiras de escolinha com o meu primo. A minha primeira formação é em Licenciatura em Ciências Biológicas pela Universidade Federal da Paraíba, na qual ingressei em 2009 e fiz parte de projetos relacionados à Educação Especial, terapia com animais na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE), e ao Ensino de Biologia para estudantes do Ensino Médio (PIBID/Capes).

Embora estivesse estudando em uma instituição pública, para arcar com os gastos durante a graduação, as bolsas que recebia através da participação nesses projetos, eram importantes para a manutenção da minha vida acadêmica, desde xerox até a participação em congressos em outras localidades.

Devido à influência da disciplina de Libras, ofertada no último semestre da primeira graduação, ingressei em minha segunda graduação na UFPB: Licenciatura em Letras Libras. Por ser um curso a distância (EAD), eu consegui voltar para São Paulo, por questões de saúde da minha mãe, e continuar estudando.

Ao retornar para São Paulo, em 2015, demorei um pouco para me realocar na área profissional, trabalhava como babá para pagar os custos das idas para a Paraíba, nas realizações das provas do Letras Libras, e das mensalidades dos cursos na área da Libras. Não demorou muito, em 2016, as oportunidades de trabalhos, envolvendo a Libras, começaram a surgir: fui selecionada para trabalhar como intérprete de Libras em uma faculdade e como professora de Ciências/Biologia em uma escola bilíngue para surdos. 

A partir das vivências em sala de aula e das interpretações nos contextos educacionais, envolvendo o surdo, no ano de 2020 ingresso no Programa de Mestrado do ENCIMA (Ensino de Ciências e Matemática) do Instituto Federal de São Paulo (IFSP), com o intuito de estudar sobre o desenvolvimento de práticas pedagógicas que levassem em consideração as diferenças linguísticas do aluno surdo durante a aprendizagem em sala de aula.

Vale ressaltar que, durante esse percurso educacional e profissional, concomitantemente, aflorava a minha identidade como mulher negra. Parei de alisar o meu cabelo no ano de 2014, experiência que resultou em um capítulo de livro escrito em parceria com outro colega que também buscava espaço social e com a orientação da professora da disciplina “Educação e Inclusão Social” da UFPB/CCA; O título desse texto é “Quem disse que o meu cabelo é ruim? Meu cabelo, minha identidade”. Esse processo de me enxergar de fato como uma mulher negra, ocorreu somente em 2019, no meu primeiro exame de heteroidentificação para um concurso público federal − aqui a história é bem longa, pauta para uma próxima conversa.

A educação me possibilitou alcançar espaços anteriormente sonhados pelos meus ancestrais, os quais foram privados de ao menos colocar os pés. Quero finalizar aqui, pedindo licença e honrando os que me antecederam, pois eles pavimentaram o caminho para que eu pudesse trilhar, e sigo agora com o dever de pavimentar para os que me sucederão.

Para saber mais

ARTES, Amélia; UNBEHAUM, Sandra; SILVÉRIO, Valter. Ações Afirmativas no Brasil. São Paulo: Cortez, vol. 1, 2016.

DAXENBERGER, Ana Cristina Silva; SILVEIRA, Sergio Roberto. Etnicidade e Direitos Humanos: diferentes leituras. João Pessoa: UFPB, 2023. 

OLIVEIRA, Iolanda (org. ) Negritude e universidade: evidenciando questões relacionas ao ingresso e aos projetos curriculares. Niterói: Alternativa, 2015. 

*Ana Cristina Silva Daxenberger é doutora em Educação Escolar pela UNESP. Professora da UFPB/CCA/DCFS. Membro do NEABI, representante do Comitê de Inclusão e Acessibilidade, sub-sede Areia. Extensionista e pesquisadora na área de inclusão social.

**Vanessa da Silva Santos é licenciada em Ciências Biológicas e Letras Libras pela UFPB. Mestre em Ensino de Ciências e Matemática pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP). Atualmente é professora de Libras na rede municipal de Santos (SP) e intérprete e tradutora de Libras (TILS).

***Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato PB.


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Edição: Carolina Ferreira