Há 10 anos, o Brasil presenciou uma cena terrível: o corpo de uma mulher sendo violentamente arrastado por uma viatura da PM. A mulher era Cláudia Silva Ferreira, mãe de quatro filhos, que tinha 38 anos quando saiu para comprar café da manhã perto de onde morava, no morro da Congonha, em Madureira, zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Ela foi baleada no pescoço e nas costas por policiais militares durante suposto confronto com traficantes.
Não bastasse isso, Cláudia foi colocada no porta-malas do carro da PM, e enquanto o veículo percorria a Estrada Intendente Magalhães, ela rolou, ficou pendurada no parachoque do veículo por um pedaço de roupa e foi arrastada pelo asfalto por cerca de 350 metros. Pedestres e outros veículos alertaram os PMs, mas eles demoraram para parar.
Um cinegrafista amador gravou toda a cena, mas apesar da barbaridade do ocorrido, os policiais envolvidos foram absolvidos no julgamento agora em 2024. O juiz Alexandre Abrahão Dias Teixeira, da 3ª Vara Criminal, determinou que os policiais agiram em legítima defesa e que os disparos que acertaram Cláudia foram apenas um erro.
Para a coordenadora do Núcleo de Ativismo da Ong Rio de Paz, Fernanda Valim Matos, esse caso reflete o racismo estrutural que é usado para justificar o abuso de autoridade.
"A decisão do juiz é nojenta, porque está escrito que houve apenas um erro de execução na hora da legítima defesa, e por isso estava absolvendo eles, quer dizer, matou uma senhora ali, houve tiros disparados numa operação muito atabalhoada no meio da comunidade expondo os moradores a um perigo iminente, mas o juiz trata a morte da Cláudia como um mero efeito colateral de uma operação policial mal planejada, mal executada, mal sucedida", explica.
Modus operandi
A antropóloga e professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Flávia Medeiros explica que o caso de Cláudia não é uma situação isolada. "Não só o fato dela ter sido baleada, mas também o fato dos policiais terem procedido com uma forma muito padronizada da não preservação do local e o intento, muitas vezes forjado, de uma intenção de prestar socorro e que leva, na verdade, a alteração da cena [do crime], a tirar a pessoa do local”, afirma.
Flávia, que também é pesquisadora do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos da Universidade Federal Fluminense (INEAC-UFF), destaca que a maioria da sociedade é composta por pessoas pobres trabalhadoras que são diretamente atingidas por esse tipo de situação e esses casos não podem mais ser normalizados.
“A gente tem altíssimos índices de homicídios, de conflitos que redundam em morte intencional, a gente tem altíssimos índices de atuação violenta, letal e brutal dos agentes do estado e um sistema judiciário que não age de acordo com suas responsabilidade de fiscalizar as policias, investigar, elucidar e promover justiça. Então, enquanto sociedade, existe um processo cada vez mais crescente por justiça, memória e reparação", ressalta a pesquisadora que ainda aponta para a complacência do sistema de justiça.
"Existe uma responsabilidade desses que agem em nome do estado e que deveriam não só garantir a proteção das vidas, mas, sobretudo, em relação a magistratura e ao Ministério Público que devem ter responsabilidade direta de promover essa responsabilização e combater a impunidade”.
Justiça injusta
Cláudia, conhecida como Cacau, era auxiliar de serviços gerais no hospital naval Marcílio Dias e além de quatro filhos cuidava dos quatro sobrinhos. Acordava todos os dias às 4h30 da manhã, e faria 20 anos de casada no ano em que foi morta.
O capitão Rodrigo Medeiros Boaventura, apesar de estar envolvido no caso de Cláudia, chegou a ser nomeado Superintendente de Combate aos Crimes Ambientais, em 2020, mas depois da repercussão negativa a Secretaria voltou atrás da decisão.
A família de Cláudia nunca superou o que aconteceu. Eles fizeram um acordo com o governo para receber uma indenização e mudar do local que trazia tantas lembranças ruins. Flávia afirma que Cláudia foi revitimizada diversas vezes.
“Chamar atenção para essa dimensão de como que essas pessoas são desconsideradas em vida, mas também em morte, e como após a sua morte segue descredibilizando sua existência, expondo a sua vida e sua condição, então, se as instituições não são capazes de responsabilizar os agentes do estado nessa dimensão oficial, processual, ou até mesmo de um desejo punitivo que parte da sociedade tenha, haveria outras formas de fazer justiça que seriam essas do respeito, da consideração, da não repetição”, complementa a antropóloga.
Além de Boaventura, que comandava a patrulha, também foi inocentado o sargento Zaqueu de Jesus Pereira Bueno. Denunciados pela remoção do corpo de Cláudia do local foram absolvidos os subtenentes Adir Serrano Machado e Rodney Miguel Archanjo; o sargento Alex Sandro da Silva Alves e o cabo Gustavo Ribeiro Meirelles. A reportagem entrou em contato com a Polícia Militar que respondeu não comentar decisões judiciais.
Edição: Jaqueline Deister