O Níger declarou que a presença militar dos Estados Unidos em seu território é “ilegal” no sábado, 16 de março, após uma delegação dos EUA ter supostamente ameaçado “retaliação” contra o maior país da África Ocidental por seus laços com Rússia e Irã.
Enfrentando a perspectiva de perder três bases militares estrategicamente cruciais, incluindo uma das maiores bases de drones do mundo, na cidade central nigerina de Agadez, na qual foram gastos US$ 250 milhões (R$ 1,25 bilhões), os EUA ainda não emitiram resposta. A coletiva de imprensa agendada para domingo (17) na embaixada dos EUA na capital do Níger, Niamey — onde manifestantes se reuniram no sábado para denunciar a interferência americana — foi cancelada.
“Estamos em contato” com o governo do Níger “e vamos fornecer mais atualizações conforme necessário”, é tudo o que o porta-voz do Departamento de Estado dos EUA, Matthew Miller, disse até agora, por meio de uma postagem em sua conta X (antigo Twitter).
A falta de resposta após mais de três dias, desde que sua presença militar foi declarada ilegal, revela surpresa em relação a essa ação do governo militar de transição do Níger, o Conselho Nacional para a Salvaguarda da Pátria (CNSP).
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Em dezembro, a antiga colonizadora do Níger, a França, foi forçada a retirar todas as suas tropas do país. Isso seguiu ordem do CNSP, que foi formado no final de julho de 2023 após a destituição do então presidente, Mohamed Bazoum. Manifestações em massa saudaram o golpe militar contra Bazoum, que reforçou a sua imagem interna de fantoche francês ao reprimir os protestos que exigiam a retirada das tropas francesas. O General Abdourahamane Tchiani, então chefe da Guarda Presidencial que liderou o golpe, formou o CNSP com apoio popular, incluindo dos sindicatos e do movimento de protesto contra a presença francesa.
Inicialmente a França se recusou a cumprir quando o CNSP encerrou acordos militares com o Níger em agosto e ordenou a retirada das suas tropas. No entanto, após um impasse tenso por mais de um mês, durante o qual protestos cada vez mais raivosos se tornaram quase diários fora da base francesa e de sua embaixada, a França recuou em setembro, retirando suas tropas em dezembro. As menores implantações de outros países da União Europeia também se retiraram logo após a França.
A tentativa da França de mobilizar a Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) para uma guerra contra o Níger não se concretizou. Isso deixou o bloco em crise existencial, enfrentando a perspectiva de perder metade de sua área terrestre após Mali, Burkina Faso e Níger anunciarem sua retirada em janeiro de 2024.
Distanciando-se das tensões na capital durante o impasse com a França, os Estados Unidos, que tinham cerca de 1.100 soldados no Níger na época, reposicionaram alguns de seus ativos e tropas da Base Aérea 101 em Niamey, a mais de 900 quilômetros de distância, para a Base Aérea 201 em Agadez em setembro.
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“Investimos centenas de milhões de dólares em bases lá”
A Base Aérea 201, com uma área de 25 km², operando desde 2019 teve custo de US$ 110 milhões e sua manutenção custa aproximadamente US$ 30 milhões anualmente. Desde o início da construção em 2016, os EUA gastaram US$ 250 milhões, conforme relatado pelo The Intercept em setembro passado. Equipada com aviões de transporte C17 e uma frota de drones, incluindo veículos aéreos de combate não tripulados (UCAVs) como o MQ-9 Reaper, é a segunda maior base dos EUA na África, depois da base em Djibouti.
Logo após a destituição de Bazoum, os Estados Unidos prepararam plano de contingência para evacuar essa base. No entanto, o objetivo é permanecer em ambas as bases — Niamey e Agadez — conforme explicou o General James Hecker, comandante da Força Aérea dos EUA para a Europa e a África, em agosto.
Além da Base Aérea 101, administrada pelo Pentágono no sudoeste do Níger, e da Base Aérea 201 em sua região central, a CIA também opera outra base mais ao nordeste, na pequena cidade de Dirkou. A existência dessa base era segredo até ser exposta em 2018.
“Tudo o que sei é que eles são estadunidenses”, disse o discreto Bazoum, que foi ministro do Interior do regime em 2018, quando questionado sobre a base. “Sempre é bom. Se as pessoas veem coisas assim, ficam assustadas”, acrescentou Boubakar Jerome, o então prefeito da cidade com uma população de alguns milhares, revelando casualmente como o regime mantinha a presença militar estrangeira para manter sua própria população com medo.
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Quando esse regime foi deposto em julho de 2023, com Bazoum como presidente desde 2021, muito estava em jogo para os Estados Unidos. Até outubro, nem mesmo haviam declarado sua remoção e a tomada de poder pelo CNSP como um “golpe”, porque “não queremos que essa parceria termine”, disse a Secretária de Imprensa Adjunta do Pentágono dos EUA, Sabrina Singh, em uma coletiva de imprensa em agosto. “Investimos, você sabe, centenas de milhões de dólares em bases lá”.
Apenas dois meses após finalmente rotular a tomada de poder pelo CNSP como um golpe, em outubro - denominação que ativou leis que restringem a ajuda e o apoio militar ao Níger, Molly Phee, Secretária Assistente de Estado dos EUA para Assuntos Africanos, ofereceu restaurar ambos ao Níger.
Após se reunir com os ministros nomeados pelo CNSP em dezembro, quando a quantidade de militares dos EUA foi reduzida de 1.100 para 648, Molly Phee disse em coletiva de imprensa: “Deixei claro ao CNSP que queremos ser um bom parceiro novamente, mas o CNSP também precisa ser bom parceiro para os EUA”.
Parecia que o Níger não estava particularmente interessado na parceria com os EUA. Assim como nos países vizinhos Mali e Burkina Faso, a presença de tropas ocidentais no Níger por quase uma década apenas viu um aumento na disseminação da violência por rebeliões islâmicas, que supostamente foram implantadas para combatê-las, após terem se espalhado pelo Sahel e destruindo a Líbia em 2011.
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O Ocidente continua a pressionar os governos militares de transição nesses países para realizar eleições. No entanto, a realidade no terreno é que a maioria das pessoas será excluída do processo de votação porque esses estados perderam o controle de vastos territórios para rebeliões ao longo da última década sob a proteção das tropas ocidentais. A França é até acusada de fornecer apoio a esses mesmos grupos após ser ordenada a sair desses países.
Diante dessas circunstâncias, Mali, Burkina Faso e Níger — que se uniram para formar a Aliança dos Estados do Sahel (AES) em setembro do ano passado — estão explorando relações alternativas de segurança, incluindo vindas da Rússia. Essa ideia é muito popular, evidenciada nas ocasiões durante os protestos antifranceses, quando as bandeiras russas eram agitadas juntamente com as cores tricolores nigerianas, muitas vezes ao lado das bandeiras de outros países do BRICS.
No entanto, Molly Phee, que voltou ao Níger em 12 de março com uma delegação que incluía Michael Langley, o comandante geral do Comando Africano dos EUA (AFRICOM), supostamente ameaçou “retaliação” contra o Níger em reunião com ministros nomeados pelo CNSP. Para justificar essa ameaça de agressão, Phee também acusou falsamente o Níger de entrar em um acordo secreto com o Irã para fornecer urânio, disse o porta-voz do CNSP, Coronel Major Amadou Abdramane, em um discurso televisionado no sábado.
“É amplamente conhecido que a exploração do urânio do Níger é completamente controlada pela França”, disse ele, condenando a acusação de Phee como uma mentira “reminiscente” da alegação de armas de destruição em massa propagada antes da guerra no Iraque. “A comunidade internacional ainda se lembra das evidências falsas apresentadas pelos” EUA “perante o Conselho de Segurança para justificar a agressão americana ao Iraque”, acrescentou.
“Os EUA impuseram unilateralmente seu exército ao Níger”
Reiterando que o Níger lida com a Rússia “de Estado para Estado, conforme os acordos de cooperação militar assinados com o governo anterior”, Abdramane insistiu que a presença das tropas e bases dos EUA no Níger é “ilegal”.
“Por meio de uma simples nota verbal (em 2012)… o lado estadunidense impôs unilateralmente ao Níger um acordo sobre a situação do pessoal dos Estados Unidos e funcionários civis do Departamento de Defesa Americano”, disse ele.
Descrevendo esse acordo como “profundamente injusto” e contrário “às aspirações e interesses do povo nigerino”, ele anunciou que esse acordo está revogado “com efeito imediato”.