Coluna

Mudanças radicais nas leis urbanísticas: as cidades incorporadas ao rentismo

Mudanças ocorridas na lei urbanística de Niterói exemplificam lógica rentista relacionada a cidades - Prefeitura de Niterói
Cidades passam por um processo de transferência de capital para o setor imobiliário

Por Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro e Nelson Diniz*

Atualmente, estão em debate diversas propostas de mudanças drásticas na legislação urbanística de vários municípios brasileiros. Mudanças que alteram, radicalmente, os parâmetros construtivos, como é o caso do estímulo à elevação dos gabaritos.

O exemplo mais recente e polêmico é, sem dúvida, o do município de Niterói, na região metropolitana do Rio de Janeiro. No último dia 5 de março, foi aprovado em primeiro turno e sob protestos, o projeto de lei nº 221/2023, que modifica a Lei Urbanística da Cidade, isto é, as regras de parcelamento, uso e ocupação do solo.

A caracterização do projeto disponível em uma publicação nas redes sociais do vereador Paulo Eduardo Gomes ajuda a compreender o que está em questão. Na postagem, o vereador menciona que "em 2023, a Prefeitura enviou à Câmara de Vereadores o projeto de Lei de Uso e Ocupação do Solo (Lei Urbanística de Niterói). Este projeto deveria ter sido muito divulgado para que todos tivessem conhecimento do que poderá acontecer. [...] A proposta de lei tem como único objetivo o aumento de gabarito (número de andares nos prédios) em todas as regiões da cidade. Porém, a cidade não tem Plano de Mobilidade (organização do trânsito e transportes), não tem previsão de expansão da infraestrutura de água e esgoto e de energia, nem de ampliação da rede pública de educação e de saúde. Esta lei irá impactar também, enormemente, nosso patrimônio ambiental e cultural (por exemplo, as lagoas e áreas de preservação). Afinal, queremos mais engarrafamentos? Mais bueiros explodindo? Mais alagamentos, quando chove? Mais falta de água e de energia? Menos área verde e mais poluição?".

Na mesma publicação, o vereador ainda ressalta que se trata de um projeto que "não considera as emergências climáticas, nem que a população de Niterói não está crescendo (IBGE, Censo 2022), ou seja, a proposta do governo vai atrair pessoas e aumentar o caos cotidiano com mais congestionamentos e problemas".

Para nós, esse é mais um exemplo da dinâmica de transformações urbanas que acompanha um ciclo recente de expansão da especulação imobiliária nas principais cidades do país. E esse ciclo foi denunciado, por exemplo, pelo jornalista Bob Fernandes, em vídeo publicado em seu canal no YouTube Carnaval & política: Especulação imobiliária, escravização, indígenas, polícia e “prende Bolsonaro.

Poderíamos levantar a hipótese de que esse ciclo resulta, estruturalmente, do "efeito renda" decorrente do atual padrão de acumulação financeiro-extrativista-agroexportador dominante no Brasil e, conjunturalmente, da trajetória de queda da taxa básica de juros (selic). Quer dizer, esse padrão, que numa só palavra pode ser dito "rentista", estimula o "rent seeking" (ou seja, as práticas de ganhos de agentes privados sem contrapartida para a sociedade). A queda das taxas de juros, por sua vez, diminui a rentabilidade de investimentos mais seguros, como os títulos da dívida pública e os de renda fixa em geral, reforçando a busca por alternativas de inversão.

Assim, as cidades brasileiras estariam experimentando os efeitos de um processo chamado pelo geógrafo britânico David Harvey, de "capital switching" (ou transferência de capital). Esse processo expressa a transferência de grandes volumes de capital sobreacumulado, isto é, que não encontra alternativas de investimento, para os mercados imobiliários. Em resumo, torna-se cada vez mais interessante para os inúmeros agentes econômicos orientados pelo padrão rentista, transferir parte de seu capital para segmentos novos e/ou já consolidados desses mercados. E isso, por sua vez, reforçaria as pressões por alterações na legislação urbanística, como as que promovem a maior densificação, verticalização e/ou mudanças dos usos permitidos do solo, abrindo caminho para distintas operações de captura de rendas.

Dentre as evidências da existência de capitais em busca de alternativas de investimento pode-se considerar, em primeiro lugar, o expressivo e constante crescimento do agronegócio. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), por exemplo, a atividade agropecuária cresceu 15,1% em 2023, muito além das variações de outros setores e componentes do PIB, como se pode observar na tabela abaixo, extraída do portal de divulgação de notícias do IBGE.


Agência IBGE de Notícias

Como se vê, o crescimento da agropecuária, relacionado sobretudo à expansão de lavouras como a da soja (+27,1%) e do milho (+19,0%), é tanto mais expressivo e significativo quando comparado com o baixo desempenho da indústria (+1,6%) e com o recuo de 3,0% na Formação Bruta de Capital Fixo (-9,4% em máquinas e equipamentos). No caso da indústria, o índice mais destacado foi o da extrativa, que apresentou expansão de 8,7%, impulsionada por setores como minério de ferro e petróleo.

É possível observar que a expansão conjugada da agropecuária e da indústria extrativa contribuiu para o superávit na balança comercial do país. Conforme o gráfico abaixo, elaborado pelo Banco Central do Brasil (BCB), foi registrado saldo positivo de US$ 7,3 bilhões em dezembro de 2023. Tudo isso tornando ainda mais urgente o debate sobre as tendências de desindustrialização e reprimarização da economia brasileira.


Banco Central do Brasil

Por fim, no que diz respeito ao setor de serviços, cabe mencionar o crescimento de 6,6% das atividades financeiras, de seguros e serviços relacionados, tanto quanto das atividades imobiliárias (+3,0%).

Indicadores como esses parecem sinalizar, de fato, a existência de grandes volumes de capital que podem estar sendo canalizados para os circuitos da especulação imobiliária. Em especial, diante de uma rentabilidade relativamente menor em outras frentes, como a das operações com os títulos da dívida pública. E, mais uma vez, se esse é mesmo o caso, aumentará cada vez mais a pressão para que a legislação urbanística, assim como a legislação ambiental, dos municípios brasileiros seja adequada aos imperativos dessa possível transferência de capitais, o que exige, sobretudo em um ano eleitoral como o de 2024, um amplo debate público a respeito.

* Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro é coordenador nacional do INCT Observatório das Metrópoles; Nelson Diniz é pesquisador do INCT Observatório das Metrópoles

** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato

Edição: Thalita Pires