opinião

Desmilitarizar a Polícia Militar, a educação e a sociedade

Será preciso subverter a própria lógica de funcionamento das polícias militares

Brasil de Fato | Curitiba (PR) |
É preciso desmilitarizar as forças policiais, acabando com os códigos hierárquicos que favorecem desmandos - Reprodução

O episódio envolvendo a agressão de uma policial militar do Paraná contra uma criança de 13 anos de idade, além de extremamente violento, escancara a forma de agir das forças de segurança do país em bairros periféricos das grandes cidades.

Com os de cima, falam manso, tiram selfie, confraternizam, prevaricam, conduzem, inclusive sem algemas, mesmo quando recebidos por granadas e metralhadoras. Com os de baixo, atiram primeiro para depois perguntar, agridem, arrastam e, por falta de algemas, como alegam sempre, amarram-nos como eram os escravizados.

Não importa o local em que se esteja, as condições nas quais os sujeitos se encontrem, a roupa trajada, mesmo que seja um uniforme escolar ou de trabalhador, se estão protestando ou em greve, a resposta é sempre a violência travestida de manutenção da ordem.

Violência estrutural que, ao longo de nossa história, sempre se voltou contra os de baixo, contra aqueles que nunca se curvaram aos desmandos dos de cima. Violência articulada pela elite dominante como um favor ora do Estado colonial português, ora do Estado imperial brasileiro, ora do Estado “Democrático de Direito” burguês, mas sempre em nome da escravização, da exploração, da opressão.

Quantas aldeias, quilombos, arraiais, cidades santas, redutos, acampamentos e assentamentos, e tantos outros locais de resistência popular, foram bombardeados, destruídos, invadidos, arrasados? Violência desmedida, sem controle, sem fim, que, de madrugada, invade moradas, barracos e casebres, prendem, torturam, executam.

Querências do Norte, Eldorados, BRs 277, Vilmares Bordins, Leomares Bhorbacks, Antônios Tavares, Amarildos, seus corpos gritam a impunidade das emboscadas e chacinas patrocinadas por agentes do Estado e abençoadas por cultos religiosos dentro e fora dos quartéis, atentando contra a laicidade do Estado.

Os mesmos regimentos, regulamentos ou códigos que proíbem manifestações e associações de cunho político partidário e sindical aos militares, proíbem, igualmente, manifestações de caráter religioso. No entanto, como denunciou o portal Intercept Brasil, nas 27 unidades da federação, a Igreja Universal realiza atividades de evangelização disfarçadas de “assistência espiritual”.

No estado de São Paulo, pátios da Universal foram flagrados com incontáveis viaturas da PM e inúmeros PMs fardados dentro dos templos, em uma ato de verdadeira afronta ao Estado laico e à liberdade religiosa. Enquanto ações de caráter reivindicatório são prontamente punidas, inclusive com prisão ou mesmo exclusão dos quadros das PMs, a “assistência espiritual” é incentivada pelos comandos e deliberadamente ignorada pelos chefes dos executivos estaduais.

Quantos daqueles que recebem a “assistência espiritual” são os mesmos que promovem chacinas, execuções sumárias, forjam flagrantes e autos de resistência? Quantos desses são artífices da violência legitimada pelas constantes absolvições, mesmo em flagrantes desrespeito a vida, como as chacinas que se reproduzem nos becos escuros? Violência cotidiana televisionada para aumentar a audiência. Brutalidade potencializada travestida de enfrentamento à violência urbana. Violência disfarçada de disciplinarização convertendo escolas em quartéis.

O incentivo à militarização da Educação é o outro lado dessa mesma moeda. A disciplina militar se apresenta como um mecanismo capaz de conter possíveis irrupções futuras na ordem dominante. O que se tem verificado nas escolas militarizadas é um violência institucional dirigida para o controle e padronização dos corpos e comportamentos, cujo cotidiano tem sido marcado por atos de racismo e intolerância religiosa, sobretudo, contra religiões de matriz afro, como já demonstrado aqui.

A violência praticada por militares dentro das escolas é a mesma explicitada todos os dias nos bairros desassistidos pelo poder público. Onde faltam escolas bem equipadas, UPAs sem fila, trabalho, transporte coletivo digno e moradia, excedem a barbárie policial. E quando a única resposta do Estado é a repressão e seus sinônimos, a sociedade as toma como legítimas, aceitáveis e, inclusive, inimputáveis. No entanto, onde se acorda rodeado por árvores, com vista para os parques da cidade, avenidas arborizadas, ruas pavimentadas e vigiadas, reina a servidão. Sempre que afrontados pelos de baixo, investem-se de um pretenso poder a fim de coagir-lhes.

A agressão contra a criança no bairro periférico de Curitiba, reproduz, em outros termos, as ameaças proferidas por um policial contra uma mãe nas dependências do Colégio Estadual do Paraná, também em Curitiba, bem como as constantes “gravatas” e “mata-leões” desferidos contra crianças e adolescentes nas escolas militarizadas, Brasil afora.

A violência da policial curitibana é a mesma do PM carioca que não se dignou a descer para pegar seu pedido, mas se sentiu cheio de razão ao descer armado e atirar contra um trabalhador, só porque não lhe foi subserviente. É a mesma violência do policial de Jacaraí (SP), que não se viu impedido de dar uma cotovelada em um homem acompanhado de esposa e filha, o qual teve o osso da bochecha fraturado. É a mesma agressão cotidiana em todos os cantos do Brasil e que resulta, quase sempre, na reclusão dos envolvidos às atividades administrativas.

É o escárnio da policial fardada que se recusou a ajudar o jovem negro ameaçado por um homem branco, com arma em punho, na porta da estação do metrô em São Paulo. É a zombaria capturada pelo fotógrafo que registrou os policiais congraçando com o homem, branco, que havia acabado de esfaquear o trabalhador de aplicativos, enquanto este, negro, era algemado e colocado no camburão. A ironia é que a PM foi acionada, justamente, pela vítima!

Violência institucional que se volta também contra os professores. Como já denunciamos aqui, os docentes, muitas vezes, são cerceados em seu direito à organização e silenciados em relação a temas vistos como polêmicos, como foi o caso do educador paranaense impedido, pelo diretor militar da escola, de abordar a ditadura civil-militar com seus alunos.

Essa afronta tanto à institucionalidade quanto à legalidade, afronta àquilo que está estabelecido em lei, na Constituição Federal, foi fortalecida na última década pelo discurso de ódio, pela falácia do “bandido bom é bandido morto”, do incentivo ao armamento civil, por “cidadãos de bem” clamando por “intervenção militar constitucional” e outras aberrações de quem sempre foi privilegiado e não tolera melhora alguma na condição de vida dos subalternos, pois a entendem como um aviltamento da sua própria condição, apesar de seus privilégios permanecerem intocados ao longo dos tempos.

Mas essa forma de agir, por fora e acima da lei, não é nenhuma novidade na história recente do Brasil. As chacinas, as emboscadas, a intimidação e o abuso, escancarados de agora, capturados pelas câmeras de vigilância e celulares sempre à mão, não é uma ruptura com um passado de submissão e respeito à ordem constitucional. Ao contrário, é uma permanência herdada da ditadura civil-militar e seus esquadrões da morte e grupos de extermínio que agiram impunemente decidindo quem deveria morrer e quem deveria viver.

Esse empoderamento da barbárie - da legitimação da violência policial cotidiana até a militarização da Educação - parece distante de ser contido. Infelizmente, a ordem expressa do presidente Lula para que não seja realizada solenidade alguma sobre os anos de chumbo, afirmando que não ficará remoendo esse passado e que quer tocar esse país para frente, representa, uma vez mais, a certeza da impunidade. Esse quadro é agravado pela sanção presidencial à lei orgânica das polícias militares sem que questões de enfrentamento à letalidade policial e à violência contra a população negra e pobre fossem minimamente consideradas no texto final.

Lula, que tão corretamente se posicionou sobre o genocídio praticado pelo Estado de Israel contra o povo palestino, agora, em nome de um pretenso apaziguamento com as forças de segurança, reforça a cultura da conciliação justamente com aqueles que, desde setembro de 2022 vinham “tolerando” os acampamentos golpistas em frente aos quartéis. Ao optar por esse caminho, Lula abre mão, mais uma vez, de fazer a disputa ideológica com a sociedade e mostrar que nem sempre, ou quase nunca, as forças de segurança estão a favor do país. Ao contrário, agem, na maioria das vezes, mobilizados pela defesa de seus próprios privilégios e dos interesses de uma elite que atua preventivamente para conter qualquer avanço significativo nas conquistas dos de baixo.

A violência policial contra os de baixo não será contida, seja pela força de um decreto, pela boa vontade do chefe do executivo ou mesmo com argumentos racionais. Será preciso subverter a própria lógica de funcionamento das polícias militares, a começar por punições muito mais severas àqueles que se servem das fardas para agredir, importunar, ameaçar, torturar, executar qualquer cidadão. É preciso desmilitarizar as forças policiais, acabando com os códigos hierárquicos, que favorecem os desmandos e impedem questionamentos a ordens incabíveis, submetendo as PMs diretamente ao Ministério Público. É urgente e imprescindível a regulamentação do uso obrigatório das câmeras corporais, muitas vezes desligadas propositalmente para evitar o flagrante desrespeito aos direitos humanos. Além disso, é necessário colocar um fim à subordinação das PMs ao Exército.

O fantasma do golpismo, usado como artifício para o não enfrentamento aos privilégios das forças de segurança e, igualmente, para não responsabilizá-los pelos crimes cometidos no passado e no presente, só será derrotado nas ruas. Da mesma forma, a relação de forças só se inverte apresentando uma alternativa societária a ordem vigente. Apostar todas as fichas na governabilidade desarma toda e qualquer resistência necessária.

*Graduado em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (2006). Possui Especialização em História, Arte e Cultura pela Universidade Estadual de Ponta Grossa - UEPG (2018). Mestre em Ensino de História - UFPR (2020). Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná.

**As opiniões expressas nesse texto não representam necessariamente a posição do jornal Brasil de Fato Paraná.

 

Fonte: BdF Paraná

Edição: Pedro Carrano