Em depoimentos à Polícia Federal na investigação sobre tentativa de golpe de Estado, os ex-comandantes do Exército e da Marinha, Marco Antônio Freire Gomes e Carlos Almeida Baptista Junior, confirmaram que o ex-presidente Jair Bolsonaro lhes apresentou, em mais de uma ocasião, propostas de minutas e decretos golpistas para se manter no poder. Ambos afirmam que rechaçaram as propostas.
Os relatos foram tornados públicos nesta sexta-feira (15) pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes após partes dos depoimentos serem vazados pela imprensa.
Os dois ainda apontaram em seus depoimentos que o ex-comandante da Marinha, Almir Garnier, teria sinalizado apoio às propostas golpistas. Além disso, os depoimentos não trazem novos detalhes sobre a participação de outros militares na trama golpista e nem explicam qual foi o real envolvimento de militares em momentos cruciais para a tentativa de golpe, como os protestos nos quarteis.
Os ex-comandantes divergiram em relação à reação do general Freire Gomes à proposta do ex-presidente de não aceitar o resultado das eleições. O próprio Freire Gomes disse que deixou claro a Bolsonaro, em uma reunião com os outros comandantes das Forças, que as propostas para reverter o resultado das eleições não tinham chance de dar certo e que ele poderia ser responsabilizado por isso. "Inclusive, chegou a esclarecer ao então presidente da República, Jair Bolsonaro, que não haveria mais o que fazer em relação ao resultado das eleições e que qualquer atitude, conforme as propostas, poderia resultar na responsabilização penal do então presidente da República", relatou o general.
Já o ex-comandante da FAB disse em seu depoimento que Freire Gomes teria alertado Bolsonaro, em um destes encontros, que teria que prendê-lo se ele insistisse nas teses golpistas. "Que em uma das reuniões dos Comandantes das Forças com o então presidente da República, após o segundo turno das eleições, depois de o presidente da República Jair Bolsonaro aventar a hipótese de atentar contra o regime democrático, por meio de algum instituto previsto na Constituição (GLO, ou Estado de Defesa ou Estado de Sítio), o então comandante do Exército, general Freire Gomes, afirmou que caso tentasse tal ato teria que prender o presidente da República", relatou o ex-comandante da FAB.
Os depoimentos não trazem a data exata da reunião em que Freire Gomes teria reagido de forma mais enfática a Bolsonaro. Ainda assim, as versões apresentadas por ambos vão de encontro à delação do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid, e complicam a situação do ex-presidente ao expor como ele teria se mobilizado, com apoio de auxiliares, para buscar uma alternativa para se manter no poder. Os relatos expõem um presidente desolado com a derrota e tentando utilizar de vários subterfúgios para buscar alguma justificativa para se manter no cargo. Quando foi chamado para depor pela PF, o ex-presidente silenciou.
Os depoimentos também são considerados importantes para a investigação pelo fato de o ex-comandante do Exército ter confirmado que uma das minutas apresentadas por Bolsonaro a eles era a mesma que foi encontrada pela Polícia Federal com o ex-ministro da Justiça, Anderson Torres, também suspeito de participar da trama golpista.
"Que confirma que o conteúdo da minuta de decreto apresentada foi exposto ao declarante nas referidas reuniões. Que ressalta que deixou evidenciado a Bolsonaro e ao ministro da Defesa [general Paulo Sérgio Nogueira] que o Exército não aceitaria qualquer ato de ruptura institucional", disse o general.
Monitoramento de Alexandre de Moraes e acampamentos
Em outros pontos considerados sensíveis para a trama golpista, os ex-comandantes trouxeram versões que não implicam diretamente os militares na tentativa de golpe de Estado. Uma delas foi a versão de Freire Gomes sobre a nota assinada pelos comandantes das três Forças e divulgada em 11 de novembro de 2022 intitulada Às instituições e ao povo brasileiro.
Divulgada em meio à permanência das manifestações golpistas em frente aos quarteis generais em todo o país, mesmo com o fim do segundo turno, o texto chegava a afirmar "são condenáveis tanto eventuais restrições a direitos, por parte de agentes públicos, quanto eventuais excessos cometidos em manifestações que possam restringir os direitos individuais e coletivos ou colocar em risco a segurança pública".
Na época a mensagem foi vista como uma forma de endosso às manifestações golpistas que ocupavam a frente dos quarteis generais do Exército em todo o país pedindo golpe de estado. No próprio aparelho celular de Mauro Cid a PF encontrou mensagem de áudio do ex-ajudante de Bolsonaro direcionada a Freire Gomes no dia de divulgação da nota na qual ele afirma, segundo a PF, que o teria sido importante para a "manutenção e intensificação dos movimentos em frente aos quartéis".
Questionado sobre este fato, o general negou à PF que a intenção do texto fosse endossar as manifestações e disse que "tal interpretação foi dada de forma equivocada". "Que o objetivo era demonstrar que as manifestações não deveriam ocorrer em frente às instalações militares, e sim no âmbito do Poder Legislativo".
O ex-comandante ainda afirmou que jamais teve contato com os manifestantes, negou ter se comprometido a soltar os manifestantes que viessem a ser presos e, ao ser indagado por que não adotou medidas para desmobilizar os acampamentos em frente aos quarteis, ele alegou que não tinha "suporte jurídico" para isso e chegou a citar um parecer editado em 2019 para se justificar.
"Que não havia suporte jurídico para remoção das manifestações naquele momento; que nunca houve uma ordem judicial para remoção das manifestações; que com base no parecer 484/2019/CONJUR-MD/CGU/AGU o entendimento jurídico era de que o Exército tinha apenas o poder de Polícia Administrativa para atuar na preservação do patrimônio da instituição e na integridade física e circulação das pessoas que trabalhavam nas instalações militares; que esse era o entendimento das três Forças".
Apesar de ter assinado também a nota divulgada em 11 de novembro, o ex-comandante da FAB não foi indagado pela PF sobre o texto.
Outro ponto que os ex-comandantes não souberam explicar em seus depoimentos foi o monitoramento e os possíveis planos para prender o ministro do STF e presidente do TSE, Alexandre de Moraes. A investigação da PF identificou que um dos ex-auxiliares de Bolsonaro, o coronel reformado Marcelo Câmara, trocava mensagens frequentes com Mauro Cid no WhatsApp nas quais tratavam, de forma cifrada, das viagens de avião que o ministro estava realizando e viria a realizar.
Os ex-comandantes afirmaram à PF que só tomaram conhecimento deste tipo de monitoramento e da suposta trama para prender Alexandre de Moraes após a deflagração da Operação da PF. Como mostrou o Brasil de Fato, Câmara silenciou à PF quando foi chamado, pois seu advogado estava acompanhando outro depoimento no mesmo momento. Diante disso, sua defesa pediu ao STF que ele possa prestar seu depoimento para colaborar com as investigações.
Os dois ainda confirmaram em seus depoimentos que começaram a ser mais pressionados e criticados nas redes sociais após se negarem a apoiar a proposta golpista de Bolsonaro. Nenhum dos dois porém, disse ter conhecimento que o ex-ministro de Bolsonaro e general da reserva, Walter Braga Netto, seria um dos responsáveis por trás dos ataques.
A investigação da PF identificou que Braga Netto repassava via WhatsApp a um outro militar investigado por envolvimento da trama golpistas mensagens com duras críticas aos militares de alta patente que não tinham aderido às teses golpistas, incluindo Freire Gomes e Baptista Júnior, e orientações para que eles fossem atacados.
Uma das linhas de investigação da PF é justamente sobre o braço dos militares que teria pressionado outros integrantes das Forças a aderir à tentativa golpista por meio de uma carta para pressionar comandantes e também com xingamentos e constrangimento público nas redes sociais. Um dos canais utilizados por este grupo, inclusive, teria sido a Rádio Jovem Pan, por meio de um comentarista que trabalhava na emissora à época, o empresário e neto do ditador João Baptista Figueiredo – último presidente do regime militar – Paulo Figueiredo.
Carta aos comandantes
Em seu depoimento à PF que durou mais de 7 horas, Freire Gomes também falou sobre a carta apócrifa que circulou na época em que Bolsonaro e seus aliados tramavam o golpe de Estado para permanecer no poder. Chamada de Carta ao comandante do Exército de Oficiais Superiores da Ativa do Exército Brasileiro, o documento começou a circular em 28 de novembro de 2022.
À PF, Freire Gomes negou apoiar seu conteúdo, disse que um dos trechos do documento que fala sobre "covardia" seria uma referência ao fato de ele não ter aderido ao plano golpista e confirmou que o documento era pra pressionar ele a participar da tentativa de golpe de Estado. Ele também confirmou aos investigadores que a participação de oficiais das Forças Armadas na elaboração deste documento seria ilícita, e que determinou que fossem adotadas as providências cabíveis no âmbito do Exército para apurar o caso.
Ainda assim, ele disse não saber quem é o responsável pela carta, mesmo tendo afirmado que "foi identificada a participação de alguns militares" no episódio e que eles "foram punidos na medida de suas participações no ato". No termo de depoimento registrado pela PF, porém, não é mencionado o nome de nenhum militar que teria sido punido por este episódio.
Edição: Thalita Pires