Com a renúncia do primeiro-ministro Ariel Henry anunciado esta semana e a formação de um governo de transição, organizações populares e partidos de esquerda haitianos reivindicam o cumprimento dos termos estabelecidos no Acordo de Montana. Assinado em agosto de 2021, após o assassinato do presidente Jovenel Moïse, o documento expressa o consenso entre as principais organizações políticias, movimentos populares e associações da sociedade civil para tirar o país da “crise multidimensional” e estabelecer as diretrizes para o governo de transição.
O acordo prevê que esse governo restabeleça o funcionamento regular do Estado, reforce a administração pública, garanta o funcionamento das instituições judiciais e estabeleça um clima de paz social propício à realização de uma conferência nacional com a organização de eleições. A duração máxima para a transição deveria ser de 24 meses, a partir da data da instalação do governo provisório.
Com o anúncio de escolha de sete membros para compor o governo provisório no país, a mobilização pelo cumprimento do acordo foi retomada. Apoiado por organizações populares e partidos de esquerda no Haiti, o consenso estabelecido no documento enfrenta oposição de setores conservadores e partidos de direita no país.
No anúncio da criação do governo de tansição, o presidente da Guiana, Irfaan Ali, que ocupa atualmente a presidência da Comunidade do Caribe (Caricom), condicionou a nomeação dos membros do conselho à colaboração com a comunidade internacional para acelerar o envio da Missão Multinaconal de Apoio à Segurança no Haiti, missão liderada pelo Quênia que prevê o envio de tropas ao país. “As partes haitianas devem implementar plenamente os seus compromissos”, frisou Ali.
O envio de uma missão internacional ao Haiti é contrário aos princípios do Acordo de Montana, focado na soberania nacional e na construção de uma saída haitiana para a crise. O documento aponta que, por dois séculos, os protestos dos haitianos "não cessaram de resistir contra um estado antinacional colocado, de fato, sob a tutela de diversas potências internacionais".
"Hoje, a fratura entre este Estado anti-nacional e a nação já não pode ser reparada através de arranjos institucionais superficiais. Chegou a hora da ruptura. O haitiano quer redefinir seu futuro fora deste Estado administrado essencialmente na cumplicidade das autoridades locais e atores estrangeiros", diz o texto do acordo.
Como surgiu
O acordo foi articulado por meio da Comissão por uma Solução para a Crise Haitiana (CRSHC, na sigla em inglês), criada em março daquele ano por diversas organizações populares com o objetivo de estabelecer o diálogo com instituições políticas, privadas e religiosas do Haiti e também com a comunidade internacional.
A Comissão é formada por representantes de organizações que tiveram papel central na mobilização de milhares de haitianos nos protestos de 2018: a Plataforma das Feministas, a Plataforma das Organizações Haitianas de Direitos Humanos, a Federação Protestante do Haiti, a Igreja Episcopal, a Federação das Ordens de Advogados do Haiti, Alovi Dahomey para o setor Voodoo, Katan para o setor cultural, a União pelo Respeito à Constituição que reúne vários sindicatos, o Fórum para a Paz e o Diálogo da Diáspora e a Plataforma 4G, composta por quatro das maiores associações camponesas do Haiti.
Durante cinco meses, a comissão coletou informações e analisou propostas de diversos setores da sociedade com o objetivo de identificar um consenso nacional e formulou a proposta de uma solução haitiana para a crise. O acordo foi debatido em uma conferência nacional para confirmar o consenso sobre os temas e assinado no dia 31 de agosto de 2021.
Principais pontos do Acordo de Montana
O objetivo do Acordo de Montana é criar condições para a estabilidade nacional do Haiti, "com vista a um retorno à normalidade constitucional e a restauração da ordem democrática no país" e estabelece como princípios o respeito pela soberania do Estado republicano e de caráter democrático; a rejeição à violência como medida de expressão política e a aposta no diálogo para a resolução de conflitos; o respeito aos direitos humanos, à dignidade humana, igualdade de gênero e liberdades fundamentais; combate à corrupção e impunidade; transparência e prestação de contas.
Como forma de garantir a governabilidade política, o acordo estabelece um sistema de governo moldado pela Constituição de 1987 e estabelece as bases para a transição no país.
Para garantir uma "transição tranquila", o acordo prevê a criação de órgãos de acompanhamento e monitoramento: o Gabinete de Acompanhamento da Implementação do Acordo, o Conselho Nacional de Transição (CNT) para escolha do presidente da transição e do primeiro-ministro e a Unidade de Controle da Transição para fiscalizar as ações do Poder Executivo.
Após 30 dias de sua instalação, o governo de transição deve formar e instalar organismos independentes associados ao presidente de transição, com a responsabilidade de tratar do estabelecimento do sistema político e da organização de eleições.
O acordo prevê que nesse período deve ser estabelecido o gabinete que organizará a Conferência Soberana Nacional, onde serão tratadas as questões constitucionais e da regulamentação do sistema de partidos políticos. Espaço para o diáogo e o debate entre a população haitiana, a conferência tem como objetivo estabelecer as regras para um novo pacto social. Uma vez instalada, a conferência terá quatro meses para realizar as consultas nacionais e, após esse processo, um mês para apresentar suas conclusões em um relatório final apresentado ao governo de transição, que será responsável por sua aplicação.
Também deve ser criada uma comissão com a responsabilidade de tratar do sistema eleitoral e da identificação dos cidadãos e uma Comissão de Justiça e Verdade. Dentro de 60 dias após o estabelecimento da Conferência Soberana Nacional, devem ser tratadas as questões das modificações constitucionais e a formação de uma assembleia constituinte. A partir desse prazo, o governo deve iniciar a avaliação do sistema eleitoral e liderar as reformas necessárias para o exercício adequado do direito de voto dos cidadãos haitianos.
Segurança pública
O Acordo de Montana estabelece que o governo de transição deve garantir a liberdade de movimento de pessoas e propriedades em todo o país e coloca que para isso a ação das gangues que controlam diversos territórios no país deve ser contida por meio da capacitação da Polícia Nacional Haitiana e de grupos especializados do Ministério da Justiça e da Segurança Pública.
"Será adotada uma abordagem multi-setorial e multi-dimensional para fornecer respostas concretas aos problemas
que promovem a delinquência, evitando a marginalização que oferece às gangues os seus recrutas; medidas excepcionais serão estudadas, a fim de criar empregos e melhorar as condições materiais de vida em áreas com alta densidade populacional."
Edição: Lucas Estanislau