Lideranças sindicais dos servidores do Banco Central (BC) têm criticado duramente o presidente da autarquia, Roberto Campos Neto, por estar articulando junto ao Congresso Nacional e sem discussão com a categoria a aprovação de uma medida que dá ampla autonomia à instituição e altera a situação jurídica dos funcionários. A ideia consta na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 65/2023, encabeçada formalmente pelo senador Vanderlan Cardoso (PSD-GO) e politicamente costurada por Campos Neto.
O texto tramita atualmente na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, onde aguarda apresentação de parecer do relator, Plínio Valério (PSDB-AM). O segmento dos servidores ainda não definiu posicionamento conjunto a respeito da proposta e diz que aguarda pareceres técnicos, mas o Sindicato Nacional dos Funcionários do Banco Central (Sinal) critica a forma como a PEC foi gestada politicamente.
“Desde novembro de 2023, quando foi apresentada a PEC, o Roberto Campos Neto não fala com os servidores. Foi tudo feito à nossa revelia, nas nossas costas e o texto foi apresentado sem debate conosco. Ele havia prometido o diálogo mensal com a categoria e não cumpriu. Tinha prometido um diálogo amplo sobre todas as questões, mas fizeram a PEC sem conversar conosco. A desfaçatez foi muito grande”, afirma o presidente do Sinal, Fábio Faiad.
No início de novembro, pouco tempo antes da apresentação da PEC 65 pelos senadores, Campos Neto havia demonstrado apoio político à pauta de reinvindicações dos servidores do BC, que desde o ano passado participam de uma mesa permanente de negociação do funcionalismo federal com o governo Lula. A manifestação do presidente do banco, selada com o registro de uma foto ao lado de diretores da autarquia e em meio a um protesto de servidores, chamou atenção porque Campos Neto vivia naquele momento duros embates com figuras da gestão do PT por conta dos juros altos no país.
O economista foi indicado ao cargo pelo então presidente Jair Bolsonaro (PL) em 2019 e tem posicionamentos de linha neoliberal, cartilha econômica que historicamente diverge da pauta do funcionalismo público. Por conta disso, a foto tirada na calçada do banco em apoio aos servidores foi vista, nos bastidores do mundo político, como uma forma de ajudar a desgastar o governo, e não exatamente como um alinhamento às demandas da categoria. A PEC foi protocolada cerca de três semanas depois da mobilização.
“Segmentos do funcionalismo do banco então chateadíssimos porque sabem que não foram ouvidos, que a questão [da PEC] foi colocada e gerou um monte de dúvidas e [os autores] estão tentando explicar coisas que ainda não conseguiram. A tensão entre os servidores do BC está muito grande, por isso também muitos receberam muito mal a declaração do presidente na ultima segunda”, afirma Faiad.
O dirigente se refere ao fato de Campos Neto ter dito publicamente que os funcionários estariam “muito comprados para o processo de autonomia” do Banco Central. A declaração do presidente do BC foi dada durante encontro do Conselho Político e Social da Associação Comercial de São Paulo.
“Ele sequer nos ouviu, portanto, não tem autoridade moral para falar a opinião da categoria”, queixa-se o presidente do Sinal. O aborrecimento dos funcionários fez com que o sindicato emitisse uma nota na terça (5) repudiando a atitude do economista.
“Roberto Campos Neto, que antes se fazia de desentendido sobre a PEC, resolveu sair das sombras e assumir à luz do dia a articulação política por sua aprovação, o que é estranho partindo de um cargo técnico. Tamanho desdobramento para sua aprovação, às custas de entrar em rota de colisão não apenas com o corpo funcional do BC, mas também com a Fazenda, parece não visar à melhoria do BC nem do país, mas de outros interesses obscuros que o presidente da autarquia precisa explicar”, provocou a entidade no texto.
Riscos
Em conversa com o Brasil de Fato, Fábio Faiad conta que o posicionamento oficial da categoria sobre a proposta deve sair ainda este mês, mas o dirigente já levanta algumas preocupações com o tema. “A questão da estabilidade, por exemplo, é perdida com essa PEC. Como um servidor do BC vai fazer auditoria, supervisão do sistema financeiro, vai encarar a Febraban e grandes bancos sem ter estabilidade? Como fazer um trabalho de atuação de serviços de Estado sem ter a devida proteção contra pressões dos órgãos regulados, de políticos e outros atores?”, questiona.
O presidente do sindicato aponta outros aspectos que chamam a atenção no texto. “A proposta, do jeito que está, mexe com a vida de todos os servidores ativos, aposentados e pensionistas do banco. Ela muda [o funcionalismo] do regime estatutário pro regime celetista. Isso muda a Previdência, os direitos, a estabilidade.”
Outro ponto de destaque no texto é o que converte o BC em empresa pública. Hoje o banco é uma autarquia federal vinculada ao Ministério da Economia. “Empresa pública é uma forma de organização no setor público de negócios ligados à atuação no mercado, como ocorre com o Correios, a Caixa Econômica Federal. Organizações como a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e outras são autarquias públicas federais, têm regime jurídico estatutário, ou seja, seguem uma outra lógica porque são para cumprirem funções precípuas de Estado.”
O Sinal ressalta que a eventual mudança de status da autarquia tenderia a alterar inclusive a forma de ingresso nos quadros do BC e a própria perspectiva de atuação da instituição. “Como o conceito de empresa pública é de empresas que atuam no mercado, elas precisam de uma flexibilidade, de uma agilidade maiores. Isso não se coaduna com a atuação de Estado do BC. Se você fragiliza isso, você pode não fazer mais concurso, por exemplo, e sim processo seletivo simplificado, que não é uma boa ideia porque fragiliza a forma de entrada no banco, onde hoje todas as funções comissionadas são exclusivamente de concursados. Só eles têm acesso às comissões e, se você muda pra uma empresa pública, muda tudo.”
Velocidade
O relator, Plínio Valério, disse a veículos de imprensa nos últimos dias que deve apresentar o parecer sobre a proposta na CCJ no fim deste semestre, com expectativa de votação da matéria no segundo semestre de 2024. Nos bastidores, a velocidade de discussão do tema tem sido calibrada a partir das articulações políticas de Campo Neto. Para o Sinal, a celeridade que o presidente da autarquia busca garantir para a tramitação é prejudicial ao interesse público.
“O Roberto Campos Neto quer pressa, e não debate. A sociedade não precisa dessa pressa. Qualquer debate desse tipo tem que ser feito com calma, no tempo do Senado, com audiências públicas, debates, consulta a especialistas, debates mais amplos, mas o Roberto Campos só tem mandato até o fim do ano e quer [isso] por causa de uma situação pessoal dele. É um projeto que merece ser muito mais bem pensado e debatido com a sociedade brasileira”, avalia Faiad.
Ele afirma que o BC não pode ter a sua forma de operação comparada à de outras instituições. “É preciso entender que o Banco Central tem uma atuação completamente distinta de todas as outras organizações para a economia brasileira. Por isso esse é um debate que leva muito tempo e tem que ter muita salvaguarda com qualquer projeto. No caso da PEC 65, os documentos, estudos jurídicos ou quaisquer outros pareceres administrativos ou de qualquer outra natureza que deram base ao texto não foram apresentados pra categoria nem pra sociedade.”
Autonomia
Do ponto de vista do conteúdo, a PEC aprofunda a autonomia já concedida anteriormente pela Lei Complementar 179/2021, aprovada pelo Congresso Nacional após proposta da gestão Bolsonaro. Na época, o texto contou com grande oposição de setores progressistas. A nova norma implementou mandatos de quatro anos para os diretores do banco e alterou detalhes da relação entre o Conselho Monetário Nacional (CMN) e o BC, transferindo algumas funções do colegiado para a autarquia.
“Eles trouxeram atribuições a mais pro banco, mas ainda em um patamar inicial de autonomia. A PEC 65 vai muito além. Segundo essa proposta, em vez de o banco estar dentro do Orçamento da União, por exemplo, ele teria um orçamento próprio. Em vez de ele tomar decisões ligadas a salários, quantidade de servidores e coisas do tipo, tendo que levar pro governo [uma proposta] e apresentar pro Congresso, por exemplo, ele teria uma autonomia para que, na condição de empresa pública, tomasse as próprias decisões. É um passo muito além porque passa de um conceito de autonomia para praticamente uma ideia de independência”, compara Fábio Faiad.
Outro lado
O Brasil de Fato procurou ouvir o presidente do BC por meio de sua assessoria de imprensa, mas não obteve retorno até o fechamento desta matéria. O espaço continua aberto, caso Roberto Campos Neto queira se manifestar.
Edição: Matheus Alves de Almeida