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'Diversidade é importante para cumprir o papel do jornalismo', diz primeira mulher trans na direção de uma rede de notícias

Sanara Santos cresceu na periferia de SP, integra a rede Énois desde 2018 e assumiu neste ano a direção do grupo

Ouça o áudio:

Sanara Santos ingressou na Énois em 2018 e agora, em 2024, assumiu a direção do grupo - Foto: Glória Maria
A diversidade ajuda a gente a escrever com mais profundidade e respeito

O anúncio de Sanara Santos como nova diretora do grupo Énois pode ser visto como uma ruptura em parâmetros do jornalismo brasileiro. Ela se tornou a primeira mulher trans, negra, vinda da periferia a assumir a direção de uma rede de notícias.

A nova diretora nasceu na favela da Ilha, comunidade localizada entre a zona leste de São Paulo e a cidade de Santo André, no ABC Paulista, e assume o cargo após entrar na Énois em 2018.

O grupo existe há 15 anos e é uma iniciativa idealizada e mantida quase integralmente por mulheres. A rede se auto intitula como um “laboratório de jornalismo” e produz reportagens investigativas publicadas em parcerias com grupos como UOL Tab, The Intercept, The Guardian, Nexo, BBC e outros.

Um dos focos da rede é a formação de jornalistas. Em 2014, a Énois se tornou a primeira escola online de jornalismo no Brasil.

“Ao mesmo tempo que a gente celebra como esse lugar de inovação, a gente também celebra como essa oportunidade de poder escancarar essa grande dificuldade e essa lacuna que a gente ainda tem no jornalismo em relação às pessoas trans”, disse em entrevista ao programa Bem Viver desta segunda-feira (4).

“A diversidade é importante exatamente para a gente fazer cumprir o papel do jornalismo com respeito e com a qualidade que ele precisa, com a profundidade que ele precisa.”

Segundo Santos, o jornalismo está caminhando para ser mais diversos. Mas apenas nas pautas, nos conteúdos produzidos. 

“A diversidade, hoje, está muito na produção do conteúdo e pouco na gestão e na cultura. Às vezes a gente pensa diversidade só como o lugar da produção e esquece que para a diversidade existir, ela precisa ter estrutura, ela precisa ser medida e precisa ser sistematizada.”

Confira a entrevista na íntegra 

Brasil de Fato: Saber que, pela primeira vez, uma mulher trans assumiu a direção de um grupo de jornalismo é motivo de comemoração. Mas devemos ter um olhar crítico de por que estamos comemorando isso só agora?

Eu acho que é o momento de comemorar. São importantes as reflexões. A gente tem que olhar que esses passos estão acontecendo e tem que dar espaço, visibilidade para a importância deles. Tem que celebrar, sim, toda a conquista, toda a inovação que a gente consegue fazer, principalmente para nós, profissionais da comunicação e do jornalismo, que temos essa missão de representar o povo brasileiro e as diversidades que existem no Brasil.

A gente tem que celebrar uma conquista como essa, ter a primeira mulher trans, negra, periférica a frente de uma organização de jornalismo. É uma responsabilidade muito grande, para além da representatividade que isso traz para nós e para o campo.

É de uma responsabilidade muito grande porque está na frente de um lugar que pauta diversidade, pauta novas narrativas para o jornalismo, mas também surge como essa denúncia pro nosso campo, o campo da comunicação de jornalismo. 

O jornalismo tem que ser diverso, tem que estar falando de diferentes narrativas, de contranarrativas. E a gente vai começar a celebrar agora a existência só?

Então, ao mesmo tempo que a gente celebra como esse lugar de inovação, a gente também celebra a oportunidade de poder escancarar essa grande dificuldade e essa lacuna que ainda temos no jornalismo em relação às pessoas trans.

Agora como diretora, você poderia apresentar pra gente a Énois?

Ela nasce em 2009, aqui nas periferias de São Paulo, como uma escola de jornalismo. Entre 2009 e 2019 estava focada na formação de jovens em jornalismo diverso e inovador, jovens de dez periferias de São Paulo para fazer esse curso, uma imersão em jornalismo. Eu fui uma das jovens, me apaixonando pelo jornalismo.

A partir de 2019, a gente entendia que a gente já tinha formado um campo muito legal nas periferias de São Paulo, e que a gente queria olhar para um novo lugar, que era as iniciativas locais, as iniciativas periféricas de comunicação de jornalismo, que estavam ali dentro da periferia, precisando de apoio para existir. 

A Énois mudou um pouquinho o seu lugar para atuar e pautar a diversidade, a representatividade e a inclusão no campo do jornalismo local e periférico. Então, a gente trabalha, hoje, com formações, projetos e editais voltados para o jornalismo local.

Eu acho que um dos projetos que tem mais destaque é o Prato Firmeza, que é o nosso guia gastronômico da periferia. O primeiro guia gastronômico que mapeia iniciativas de comida nas periferias.

A gente já mapeou bastante São Paulo. Lançamos no ano passado a primeira edição voltada para o Brasil, que fala sobre alimentação, sobre essa diversidade e o poder que a comida tem, de unir culturas e unir pessoas dentro da interferia, como parte das pessoas sobreviverem. 

É um dos projetos mais bonitos que a gente tem e ajuda várias iniciativas de jornalismo a sobreviverem, porque esse projeto é feito em colaboração.

Também tem esse campo de atuar junto com organizações de jornalismo, de distribuir renda e uma produção que vai falar sobre alimentação, sobre cultura alimentar do Brasil.

A gente completa 15 anos com mais de 300 jornalistas locais que sempre estão participando dos nossos projetos, nos nossos editais.

Na sua apresentação como diretora da Énois você citou Angela Davis. Você trouxe uma frase dela: “quando uma mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”. Você avalia que pautar diversidade no jornalismo é mais importante que em outras áreas:

Acho que a Angela Davis é uma referência para mim, é uma referência que não tem fim. Acho que a Angela Davis, bell hooks, mulheres pretas que me inspiram muito a pensar como corpos diversos também trazem inovação para o jornalismo.

Quando eu citei a Angela Davis na nossa newsletter, que anunciou minha chegada, é porque a Énois nasceu como uma organização fundada por mulheres brancas. Quando elas chegaram nas periferias e tiveram que se abrir para essa diversidade, elas tiveram que fazer todas as estruturas da Énois se transformar.

Hoje a Énois não é nem um pouco do que era há 15 anos atrás. Ainda tem muito pra mudar, exatamente porque sempre quando a gente consegue colocar uma mulher negra no espaço de liderança, no espaço de decisão, institucionalmente, pra fora e pra dentro, a Énois se transforma, né? 

E a gente entende que isso acontece na sociedade como um todo. Quando a gente pensa em conteúdos produzidos por iniciativas que têm mais diversidade, a gente vai pensar em conteúdos que corroboram para transformações em vários níveis.

Eu tenho um exemplo que é muito bom, que é da Agência Mural de Jornalismo, uma agência que atua nas periferias de São Paulo, composta por uma diversidade muito bonita também.

Anos atrás eles produziram um conteúdo que era sobre os vãos do metrô de São Paulo. Os vãos entre o trem e a plataforma ocasionavam acidentes que matavam uma pessoa por dia em São Paulo. Talvez, pra quem não pega metrô, isso não seja importante, mas pro público da Mural, que são pessoas periféricas, era uma pauta de transformação importante.

E de fato foi criada uma política de realinhamento dos trens em São Paulo, porque essa política não existia até essa denúncia da Mural, que olhou a sua diversidade: a periferia.

A produção do meu conteúdo vai olhar por que as pessoas periféricas precisam de transporte de qualidade e o que nós que moramos nas periferias em São Paulo precisamos. A diversidade era importante exatamente para a gente fazer cumprir o papel do jornalismo com respeito e com a qualidade que ele precisa, com a profundidade que ele precisa.

A diversidade ajuda ali. Tem jornalista, por exemplo, que mora do lado da redação, do lado da Folha de São Paulo, por exemplo, e que não vai precisar se deslocar para a cidade para chegar até ali. Ele vai ter outras experiências do que a é a cidade de São Paulo em relação a uma pessoa que mora do outro lado da cidade.

A diversidade ajuda a gente a escrever com mais profundidade e respeito. A gente faz um trabalho muito importante para a sociedade, e isso existe muito respeito, muito cuidado com o nosso trabalho. Quanto mais diversos somos, quanto mais abertos a diversidade estamos, melhor a gente consegue exercer o nosso trabalho.

Além da Énois, você vê o jornalismo brasileiro, de fato, aderindo à diversidade? Ou apenas dando a impressão que está?

Eu costumo ter uma visão muito positiva sobre o caminho da diversidade no jornalismo brasileiro, exatamente porque a gente tem visto cada vez mais nas redações brasileiras corpos mais diversos. A gente tem visto mais pessoas pretas, mais mulheres no cargo de liderança, isso é real. Isso tem acontecido.

Mas eu acho que tem um limite que as pessoas ainda não conseguiram mapear muito bem nas suas iniciativas. A diversidade, hoje, está muito do jornalista na produção de conteúdo, e pouco na gestão e na cultura do grupo. Como é importante a gente dar esse segundo passo, que é não só contratar pessoas diversas, mas garantir a permanência e a evolução delas dentro das iniciativas para trabalhar o campo da gestão e a cultura. 

A cultura da iniciativa é aquele lugar que não é sentido, não é tátil. É aquilo que a gente sente no ambiente de trabalho.  E eu acho que deixo isso aqui como grande desafio de a gente olhar a diversidade interna e não só o que a gente está produzindo de narrativa para o mundo.

O que a gente está construindo internamente? O que essa diversidade também transforma internamente? Para além do externo, para além dos meus números, dos meus alcances, aqui dentro. Eu tive que criar uma política para conseguir cuidar de determinada diversidade? O meu RH criou uma política de contratação e essa política está fazendo efeito?

Às vezes a gente pensa diversidade só como esse é o lugar da produção e esquece que para a diversidade ser estrutura ela precisa ser medida e sistematizada.

A gente precisa medir a diversidade, precisa criar métricas. Assim como a gente cria a métrica para os nossos conteúdos e para os alcance e para os números deles

Hoje a Énois é composta por uma equipe de 15 pessoas, 14 são mulheres. Eu sou a única mulher trans, mas é uma equipe majoritariamente negra, vindo aí de diferentes periferias, diferentes também lugares do Brasil.

A gente tem protocolos maiores de diversidade, de cuidado com a equipe, códigos de conduta, uma cultura que possibilitou que essa entrada de pessoas diversas também transformassem a estrutura do nosso jornalismo.


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Edição: Matheus Alves de Almeida