Mundo em mudança

O mundo visto de baixo

A incerteza é o espírito da época; é possível fazer um balanço sobre o passado, mas não há um destino comum

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Manifestantes fogem das bombas de gás lacrimogêneo atiradas pela polícia militar durante ato do Movimento Passe Livre contra o aumento da tarifa do transporte público na praça Ramos de Azevedo - Rovena Rosa/Agência Brasil

Se a geopolítica é o uso político do terreno, o terreiro deste texto é o da periferia da periferia. Províncias ao redor do mundo, na precisa expressão do mestre Samuel Pinheiro Guimarães, movimentam-se em busca de um mundo multipolar. Mas como a periferia da periferia olha para o mundo e para o Brasil? Assim, este texto nasce da rebeldia de pensar um projeto democrático e popular para a defesa do Brasil. 

Quatro mudanças tectônicas ocorrem neste momento. A primeira delas se expressa na concentração absoluta da riqueza. Segundo dados da Oxfam, desde 2020, os cinco homens mais ricos do mundo viram suas fortunas mais que duplicar, enquanto 5 bilhões de pessoas empobreceram. Colocando em zerinhos, se cada um dos cinco homens mais ricos gastasse 1 milhão de dólares por dia, eles levariam 476 anos para esgotar toda a sua fortuna combinada. No Brasil, a pessoa mais rica do país possui uma fortuna equivalente à metade mais pobre do país. (Se você precisou parar um pouco pra pensar o que toda essa matemática significa, tudo bem. As pausas no cérebro ajudam a alimentar a bílis do estômago). 

A segunda mudança tectônica nasce da crise ambiental e energética. Embora seja fácil identificar os responsáveis — o 1% mais rico do mundo emite tanta poluição de carbono quanto os dois terços mais pobres da humanidade —, calores extremos, secas e enchentes castigam todos os continentes e classes, particularmente as populares. Cidades sem acesso à água potável (como Montevidéu) ou submersas, como no Rio Grande do Sul; crise sanitária e aumento de doenças; queimadas; crise alimentar em função do aumento do preço dos alimentos, resultado das guerras; acirramento da disputa pelos hidrocarbonetos, etc. Nas palavras da ONU, acabou a era do aquecimento global, agora é a era do fervor.

O terceiro grande abalo é representado pela crise demográfica. Resultado de um emaranhado de fatores sociais, culturais e econômicos, é inequívoca a tendência na queda no número de filhos ao redor do mundo, com impactos no mundo do trabalho produtivo, no cuidado com os idosos e nos sistemas de previdência, na cultura infanto-juvenil e na unidade familiar. Levaria 1.200 anos para uma trabalhadora do setor de saúde ganhar o que um CEO famoso ganha por ano e, mesmo nos EUA, o patrimônio de uma família negra comum equivale a 15,8% de uma família branca. O crescimento das migrações acrescenta contornos trágicos ao cenário, e oferece o bode expiatório fácil: o estrangeiro.

A quarta e última movimentação é a transição da hegemonia global nas áreas cultural, econômica, política e militar. Com exceção do Paraguai, toda a América do Sul já tem a China como seu principal sócio comercial. O American Dream ainda seduz pelo poder de acumulação de bens, mas as rachaduras tornam-se cada vez mais evidentes dentro e fora do país que caminha para eleger Trump. Militarmente, os EUA seguem perdendo guerras, mas ganhando consumidores para sua indústria militar. Equipamentos russos na Ucrânia levam componentes americanos. A ONU não consegue mediar nenhum dos grandes conflitos, mostrando-se incapaz mesmo em situações não bélicas, como na pandemia Covid-19. O Brasil tenta contribuir para a construção de um polo sul-americano, ainda muito frágil, sob a égide dos BRICS em expansão, e iniciando as trocas comerciais sem o intermédio do dólar.

O bloco no poder se adapta às mudanças tectônicas. A direita de hoje não é mais a mesma. Nas palavras de Linera, está ressentida, melancólica e enfurecida. Ressentida contra as mulheres que enfrentam o patriarcado; contra a juventude pobre e negra que ameaça a sua “segurança”; e até contra o Estado redistributivo, confundido com "comunista". Melancólica, sente saudades dos tempos de glória, pois tudo era melhor antigamente. Ressentida e melancólica, se torna mais violenta. Há 30 anos, predominava a globalização, um consenso entre as elites para o casamento do livre mercado com a democracia eleitoral. Com a ascensão da China e a pandemia de Covid-19, o consenso mundial entre as elites fraturou-se, e cresce o protecionismo. O neoliberalismo resiste e, quanto mais violento, mais exibe sua falta de legitimidade. Não existe mais um imaginário de um todo social, em que cabem "vencedores e perdedores", mas inimigos morais a exterminar. Para essa extrema-direita, a democracia, um meio para atingir outros fins, premiou ignorantes, e é descartável. Para o povo, a democracia tem se mostrado incapaz de oferecer soluções para a guerra, para o crime organizado, para a concentração de riqueza, entre um sem número de problemas. É nesse cenário que ocorrerão eleições em 74 países, e 4,1 bilhões de votantes poderão ir às urnas em 2024, metade da população mundial. 

A extrema-direita autoritária, às vezes fascista, reciclou seus métodos, e além de atuar nas distintas esferas de hegemonia de sempre, como as instituições, oligopólios midiáticos, grandes empresas e o aparato coercitivo do Estado, passou também a ocupar as ruas e a disputar a ideologia no dia-a-dia do povo, nas redes sociais. Explode a guerra cultural, a guerra econômica, o confronto aberto e armado na Ucrânia, entre OTAN e Rússia; e o genocídio palestino. 

A incerteza é o espírito da época. É possível fazer um balanço sobre o que não funcionou no passado, mas não há um destino imaginado comum, nem mesmo entre a esquerda. Como diz um querido amigo, tenho esperanças de um mundo novo raiando no final do século, mas vai ser duro ultrapassar 2050. Entretanto, é necessário inventar um porvir que alimente o esperançar.

* Ana Penido é pós-doutorada em ciência politica pela Unicamp, pesquisadora do Grupo de Estudos em Defesa e Segurança Internacional (Gedes – Unicamp) e do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

 

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.