Coluna

Se eu entender o mundo, posso me mobilizar para mudá-lo

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Cubanos comemoram na marcha de encerramento da campanha de alfabetização na Plaza de la Revolución, em Havana, em dezembro de 1961 - Liborio Noval/ Divulgação Tricontinental
A OCDE não menciona que declínio no apoio à educação é resultado de regimes de austeridade

Queridas amigas e amigos,

Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

Em 1945, as recém-formadas Nações Unidas realizaram uma conferência para fundar a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). A principal preocupação dos delegados, especialmente daqueles que vieram do Terceiro Mundo, era a alfabetização. É preciso haver uma “cruzada mundial contra o analfabetismo”, disse Jaime Jaramillo Arango, reitor da Universidade Nacional da Colômbia. Para ele, e vários outros, o analfabetismo era “um dos maiores ultrajes à dignidade humana”. Abdelfattah Amr, embaixador egípcio no Reino Unido e campeão de squash, disse que o analfabetismo faz parte de um problema mais amplo de subdesenvolvimento, conforme evidenciado pela “escassez de técnicos e de materiais educacionais”. Esses líderes encontraram inspiração na União Soviética, cujo programa Likbez [liquidar o analfabetismo] praticamente erradicou o analfabetismo entre 1919 e 1937. Se a URSS conseguiu fazer isso, o mesmo pode acontecer com outras sociedades predominantemente agrícolas.

Em dezembro de 2023, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) divulgou um impressionante relatório mostrando que, desde 2018, a alfabetização em leitura e matemática diminuiu entre os estudantes do mundo. Essa situação, observou a OCDE, pode ser atribuída “apenas parcialmente à pandemia da Covid-19″: as pontuações em leitura e ciências estavam em declínio antes do início da pandemia, embora tenham piorado desde então. O motivo, pontua a OCDE, é que também houve um declínio no tempo e na energia que os professores e pais dedicam à assistência aos seus alunos e filhos. O que a OCDE não menciona é que esse declínio no apoio nos últimos 50 anos é resultado dos regimes de austeridade que foram impostos à maioria das sociedades do mundo. Os orçamentos da educação foram cortados, o que significa que as escolas simplesmente não têm recursos ou pessoal suficientes, muito menos professores suficientes para fornecer o apoio extra de que os alunos com dificuldades precisam. Como parte dos cortes de verbas escolares, os Estados têm insistido que os provedores de educação corporativa gerem livros didáticos e módulos de aprendizagem (inclusive sistemas online) que destituem os professores de poder e os desmoralizam. Como os pais trabalham em condições cada vez mais precarizadas, eles simplesmente não têm tempo nem energia para complementar a educação de seus filhos.


Estudantes de Siddapura e de vilarejos próximos participam de um ato de inauguração do Festival Alegria em Aprender 2023, em Siddapura / Tricontinental

Por que os Estados de todo o mundo não estão dispostos a financiar adequadamente a educação pública? No Norte Global, onde há uma riqueza social significativa, os líderes são reticentes em tributar os detentores de maior renda e riqueza, tendendo, em vez disso, a usar os recursos preciosos restantes para financiar o estabelecimento militar em vez de serviços sociais como educação, saúde e assistência a idosos. Os países do Norte Global que fazem parte do sistema da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) gastam trilhões de dólares em armas (três quartos dos gastos militares globais), mas quantias minúsculas em educação e saúde. Isso fica evidente no relatório da OCDE, que registra declínios vertiginosos no conhecimento matemático em países como Bélgica, Canadá e Islândia – nenhum deles um país pobre. O relatório sugere que isso não se deve apenas aos níveis de financiamento, mas também à “qualidade do ensino”. No entanto, o documento não aponta que essa “qualidade” é o resultado de políticas de austeridade que roubam dos professores o tempo necessário para ensinar e apoiar os alunos, o direito de opinar sobre os materiais do currículo e os recursos necessários para treinamento adicional (inclusive licenças sabáticas).

No Sul Global, os declínios são atribuídos diretamente ao colapso do financiamento. Estudos realizados nos últimos anos e nossa própria análise das avaliações dos funcionários do Fundo Monetário Internacional (FMI) mostram que a organização tem pressionado as nações mais pobres a cortar o financiamento do setor público. Como os salários da maioria dos professores fazem parte da folha de pagamento do setor público, qualquer corte desse tipo resulta em salários mais baixos para os educadores e em índices mais altos de professores por aluno. Um estudo da ActionAid com 15 países, de Gana ao Vietnã, mostrou que o FMI forçou esses países a cortar os salários do setor público por vários ciclos orçamentários (até seis anos) no valor de 10 bilhões de dólares, o que equivale ao custo de empregar três milhões de professores do ensino fundamental. Outro estudo produzido pelo Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários, mostra que o FMI impôs cortes orçamentários em 189 países que permanecerão em vigor até 2025, quando se prevê que três quartos do mundo permanecerão sob condições de austeridade. Um relatório do Programa de Desenvolvimento da ONU observou que 25 países pobres gastaram 20% de suas receitas em 2022 para pagar dívidas externas – mais do que o dobro do valor gasto em programas sociais de todos os tipos (incluindo educação). Parece que é mais importante satisfazer os ricos detentores de títulos do que as crianças que precisam de seus professores.

Essa situação terrível condena o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável n. 4 (erradicar o analfabetismo) ao fracasso. Para atingir esse objetivo, o mundo precisaria contratar 69 milhões de professores a mais até 2030. Isso não está na agenda da maioria dos países.


Um grupo de alunos apresenta o mapa que fez depois de visitar uma aldeia como parte da  atividade da estaçãoUru Tiliyona [descobrindo o vilarejo] / Tricontinental

Em 1946, a Ministra da Educação do Reino Unido, Ellen Wilkinson, atuou como presidenta da primeira conferência da Unesco. Wilkinson, que era conhecida como “Red Ellen” [Ellen vermelha] (e foi uma das fundadoras do Partido Comunista da Grã-Bretanha em 1920), liderou a luta pelos desempregados na década de 1930 e foi uma defensora da República Espanhola. Durante a Segunda Guerra Mundial, ela disse ter testemunhado “a grande luta travada contra essa perversidade monstruosa [do “nacionalismo mais estreito” e da “subserviência à máquina de guerra”] pelo trabalhador intelectual, por homens e mulheres de mente íntegra”. Red Ellen explicou que os fascistas sabiam que a razão e a alfabetização eram seus inimigos: “Em cada país que os totalitários dominaram, foi o intelectual o primeiro a ser escolhido para enfrentar o pelotão de fuzilamento – professor, padre. Os homens que pretendiam dominar o mundo sabiam que primeiro precisavam matar aqueles que tentavam manter o pensamento livre”. Agora, esses professores não são levados ao pelotão de fuzilamento; eles são simplesmente demitidos.

Mas esses trabalhadores intelectuais não se renderam naquela época e não estão se rendendo agora. Nosso mais recente dossiê, Como o Movimento da Ciência Popular está trazendo alegria e igualdade para a educação em Karnataka, Índia, destaca os trabalhadores intelectuais que estão encontrando maneiras inovadoras de levar o pensamento científico e racional às crianças de Karnataka, por exemplo, por meio dos Festivais Alegria em Aprender, das escolas de bairro e do programa “convidado-anfitrião” do movimento. Isso está ocorrendo em um contexto no qual o governo da Índia decidiu cortar a teoria da evolução, a tabela periódica e as fontes de energia do currículo e dos livros didáticos das escolas – apesar do alarme levantado por quase 5 mil cientistas e professores que assinaram uma  petição elaborada pela Breakthrough Science Society, pedindo que o governo reverta sua decisão.

Tanto a petição quanto o Festival Alegria em Aprender fazem parte de um movimento mais amplo para democratizar o conhecimento e desmantelar as miseráveis hierarquias sociais. A Bharat Gyan Vigyan Samiti [Associação Indiana de Conhecimento Científico, ou BGVS] realiza os festivais para promover o aprendizado científico e o pensamento racional em todo o estado indiano de Karnataka, que tem uma população de 65 milhões de habitantes – aproximadamente a mesma da França. Nosso dossiê mostra como o BGVS trouxe alegria ao ensino de ciências para milhões de crianças na Índia.


Alunos participam de atividades na  estação Kagadha Kattari (artesanato, ou “papel e tesoura”) / Tricontinental

Imagine que você é uma criança pequena que nunca teve contato com as leis da ciência. Você se encontra em um festival BGVS em uma área rural de Karnataka, onde há uma barraca com uma bicicleta desmontada. O professor diz que, se você conseguir montar a bicicleta, pode ficar com ela. Você passa os dedos pela corrente, pelas engrenagens e pelo quadro da bicicleta. Você imagina como é uma bicicleta totalmente montada e tenta juntar as peças, ao mesmo tempo em que compreende como a energia é gerada ao empurrar o pedal, que, por meio das engrenagens, amplifica o movimento das rodas. Você começa a aprender sobre as leis do movimento e do torque. Você aprende sobre a simplicidade das máquinas e sua imensa utilidade. E você ri com seus amigos enquanto luta com o quebra-cabeça de todas as peças da bicicleta.

Essa atividade não só traz alegria para a vida de um milhão de crianças em Karnataka, como também aumenta a curiosidade e desafia a inteligência delas. Esse é o cerne do trabalho do BGVS e de seus Festivais Alegria em Aprender, que são realizados por professores de escolas públicas recrutados e treinados pelo movimento científico. Esse tipo de festival não apenas resgata a vida coletiva mas é um mecanismo para elevar o trabalho e a liderança dos professores locais e afirmar a importância do pensamento científico.

Em 1961, o cantor cubano Eduardo Saborit escreveu a bela canção Despertar como um tributo à campanha de alfabetização cubana. “Quantas coisas já consigo te dizer”, ele canta, “porque finalmente aprendi a escrever. Agora posso dizer que te amo”. Agora, posso entender o mundo. Agora, não posso mais me sentir diminuído. Agora, posso colocar um pé na frente do outro com confiança e marchar para mudar o mundo.

Cordialmente,

Vijay.

* Vijay Prashad é historiador e jornalista indiano, diretor geral do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

** Este é um texto de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo