Numa época em que as palavras traem e iludem, Lula chamou o genocídio de genocídio
Uma coisa que o primeiro-ministro Benjamin "Bibi" Netanyahu adoraria é a mídia corporativa do Brasil. Seria seu sonho de consumo. Não há quem mais tome seu lado do que a imprensa hegemônica nativa e alguns de seus "petcolunistas". Nem em Israel ele tem um tratamento tão magnânimo. Como na leitura do massacre que desatou contra a população palestina: para os grandes conglomerados midiáticos do Brasil, a chacina é a "Guerra Israel-Hamas". Bibi aplaudiria de pé. É justamente o que quer que o mundo pense.
É diferente do que faz o Haaretz. Para o jornal de Tel Aviv, é mais correto chamar de "Guerra Israel-Gaza". Eu não chamaria de "guerra" algo tão assimétrico mas não se pode negar que o Haaretz está mais perto da verdade dos fatos do que, por exemplo, O Globo. A "guerra" não é contra o Hamas, mas contra a população palestina, a não ser que se considere que os 30 mil mortos até agora pertencem todos ao grupo guerrilheiro, inclusive as 12 mil crianças, sem incluir as dez mutiladas a cada dia.
Outro espanto é ver que é mais corriqueiro o termo "terrorista" associado ao Hamas nos jornais, rádios e TVs do Brasil do que no New York Times, El Pais, Le Monde, Haaretz e outros grandes diários. Eles preferem "soldados", "milícia", "combatentes" etc.
É algo que trai o engajamento medular da imprensa local com a pauta de Israel. Não é demais lembrar que o cacoete vem de longe: sob a ditadura (1964-1985), toda a esquerda armada era tachada de "terrorista", embora não o fosse. Ao contrário, quem mais se valeu de uso de bombas e explosivos foi a extrema-direita militar.
Agora, dezenas de homens, mulheres, crianças e bebês palestinos assassinados pelas bombas israelenses valem menos do que uma frase de Lula comparando a matança de Bibi com o morticínio de Hitler.
Semblantes soturnos, cenhos franzidos e bocas aflitas nos telejornais. Lorotas antigas — "ele apóia o Hamas" — e uma indecorosa exibição de sabujice e viralatismo. Tivemos direito a tudo isso.
No campo partidário, houve chiliques de distintas voltagens. À esquerda, alguns cochichos temerosos entenderam como "um deslize". À direita, a velha e sempre impagável tropa de fascistas circenses hoje penando na orfandade excretou um pedido de impeachment com rapidez maior do que evacuaria uma minuta de golpe.
Netanyahu repetiu o que fez com Antonio Guterres. O secretário-geral da ONU disse uma obviedade: que o ataque do Hamas matando e sequestrando no dia 7 de outubro "não aconteceu por acaso" e que o povo palestino "foi submetido a 56 anos de uma ocupação sufocante". Bastou para Israel — sempre com os EUA como guarda-costas — pedir a demissão de Guterres.
Algo similar ocorreu com Gustavo Petro, que apelara pelo fim do genocídio em outubro. Em resposta, Israel disse que o presidente da Colômbia estaria apoiando o Hamas e ameaçou cortar relações diplomáticas.
Seu jogo é o de sempre: "Somos as vítimas", embora a matemática do conflito atual o desminta. Colocar-se no papel de vítima infinita e misturar crítica ao seu governo ou a Israel como "antissemitismo" é o eterno biombo, a carta branca moral para assassinar sem prestar contas à humanidade.
No mundo de Netanyahu, comparações de sua tarefa com a do nazismo, embora façam bastante sentido haja vista a aniquilação daqueles seres que já foram descritos como "animais" pelo seu ministro da defesa, Yoav Gallant — designação que os nazistas também davam aos judeus — são motivo de irritação mas também de distração da carnificina. Aquilo que o assessor da presidência Celso Amorim chamou de "circo".
Aliás, por paradoxal que possa parecer, diversos autores apontam que sionismo e nazismo estiveram muito próximos antes de ser deflagrada a "solução final" pelo Terceiro Reich. Em 1933, resultou no Acordo Haavara ("Transferência"), onde as duas partes trocaram favores, facilitando-se a ida de 60 mil judeus, os mais bem aquinhoados, para a Palestina.
Menachem Begin, mais tarde primeiro-ministro de Israel por duas vezes, integrava o grupo Irgun que, em 1946, explodiu o hotel King David, em Jerusalém, matando 91 pessoas. Do terrorista Irgun nasceu o Herut ("Partido da Liberdade") e deste o Likud, a legenda de extrema-direita de Bibi.
Por falar em Begin e sionismo, é famosa a carta que intelectuais e personalidades judias, entre as quais o físico Albert Einstein e a filósofa Hannah Arendt, publicaram no New York Times em 1948. Nela, descrevem o Irgun e o Herut como assemelhados "aos partidos nazistas e fascistas".
À beira de novo banho de sangue, desta vez em Rafah, onde estão um milhão de palestinos, Lula chutou o balde para ser ouvido. Para desgosto de uma mídia cúmplice ou acoelhada, não pediu "uma pausa temporária" como suplica o frouxo Joe Biden. Não chamou o açougue de Netanyahu de "direito de defesa". Numa época em que as palavras traem e iludem, chamou o genocídio de genocídio.
*Ayrton Centeno é jornalista, trabalhou, entre outros, em veículos como Estadão, Veja, Jornal da Tarde e Agência Estado. Documentarista da questão da terra, autor de livros, entre os quais "Os Vencedores" (Geração Editorial, 2014) e "O Pais da Suruba" (Libretos, 2017). Leia outras colunas.
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Matheus Alves de Almeida