Racismo ambiental

Bairros periféricos e de maioria negra são os mais afetados por desastres em São Paulo

Alagamentos, inundações e deslizamentos estão concentrados onde moram mais pessoas negras, aponta levantamento

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Julião Dourado, conhecido como Seu Julião, conta que a água chegava a invadir a loja da família, que fica em uma das entradas da casa. - José Cícero/Agência Pública

Distritos da cidade de São Paulo onde moram mais pessoas negras tiveram mais alagamentos, inundações e deslizamentos nos últimos dez anos. A conclusão é de um levantamento exclusivo da Agência Pública a partir dos dados da Defesa Civil do município. No período, os dez distritos com mais ocorrências do tipo possuem população negra acima da média da cidade. Além disso, nove dos dez ficam nas periferias da cidade, enquanto apenas um, o distrito da Sé, está na zona Central.

Os distritos do Jardim Helena, Vila Jacuí e São Miguel Paulista são os com a maior média de ocorrências no período. Só no Jardim Helena são mais de 2 mil casos na década. Os três distritos ficam na região administrada pela subprefeitura de São Miguel Paulista, na Zona Leste da capital.

Além da proximidade, outra característica une os distritos: os três têm população preta ou parda acima de 37%, que é a proporção na cidade de São Paulo. A população negra do Jardim Helena, Vila Jacuí e São Miguel é de aproximadamente 55%, 49% e 44% respectivamente. Os três distritos, juntos, concentram quase um terço das ocorrências de alagamentos, inundações e deslizamentos registradas na década.

A Zona Leste reúne seis dos dez distritos mais atingidos. Além dos já mencionados Jardim Helena, Vila Jacuí e São Miguel Paulista, estão Itaim Paulista, que teve 285 ocorrências no período, Itaquera, com 234 casos, e Iguatemi, com 198. No Itaim e Iguatemi, mais da metade da população se declara preta ou parda. Em Itaquera, a população negra está acima da média da cidade.

Para Gisele Brito, Coordenadora de Cidades Antirracistas do Instituto de Referência Negra Peregum, os dados evidenciam como o racismo ambiental acontece nas grandes cidades. “Essa palavra [ambiental] remete à natureza, à verde. Quando, na verdade, o racismo ambiental tem a ver com uma coisa que a gente já falava antes, que é a desigualdade de investimentos. Você tem uma disparidade muito grande do investimento público e privado na cidade, esse investimento é concentrado em uma área e isso produz um déficit de infraestrutura, falta de qualidade da oferta de serviços”, diz.

O termo racismo ambiental ficou em evidência depois que a ministra da Igualdade Racial Aniele Franco fez um post em suas redes sociais no dia 14 de janeiro comentando os desastres causados pela chuva no começo de janeiro no Rio de Janeiro. Apesar da grande repercussão, o conceito é usado ao menos desde de meados dos anos 1980.

Brito explica que São Paulo e outras grandes cidades brasileiras foram construídas de forma incompatível com a natureza do local. “A gente cimenta os rios, destrói as áreas verdes. No contexto da mudança climática, as coisas vão ficar imprevisíveis. Numa época que chovia, essa chuva pode triplicar, ou o calor pode vir a 40ºC. Isso significa que você precisa de uma infraestrutura adequada para lidar com a imprevisibilidade”.


Bairros com maior número de desastres tem população negra acima da média da cidade / Matheus Pigozzi/Agência Pública

Ela comenta que essa dinâmica das cidades evidencia o racismo ambiental, porque as áreas que já sofriam antes com o simples déficit de infraestrutura acabam lidando com duas situações: uma em que o ambiente fica mais agressivo, após sofrer intervenções que o afastam do natural, como remoção de árvores; e outra em que se permite que a natureza siga seu curso, sem “fazer nada”. “Vou fazer uma drenagem muito ineficiente, ou não vou fazer drenagem, e aí isso vitimiza as pessoas”, complementa.

30 anos convivendo com alagamentos

As ruas do distrito do Jardim Helena lembram cidades do litoral paulista: muitos cruzamentos, sem morros e um tráfego intenso de bicicletas. Uma dessas é a Rua da Goiabeira Serrana, no Jardim São Martinho. Lá, a maioria das casas têm calçadas altas, algumas com mais de três degraus. Essa foi uma das soluções que os moradores encontraram para evitar que a água entre em suas casas sempre que chove. Os alagamentos atingem a região há cerca de três décadas e, segundo os moradores, começaram quando as ruas do bairro foram asfaltadas de forma irregular, deixando algumas ruas mais baixas.

Miriana Ribeiro mora no local há 50 anos e lembra quando aconteceu. “Há 30 anos essa rua não era asfaltada e não tinha alagamento. Onde foi o erro de infraestrutura: entrou o esgoto, entrou o asfalto e fizeram uma rua mais alta e a nossa ficou mais baixa”, diz. Quando chove, a água se acumula na rua em que Ribeiro mora, sem ter para onde escoar.

Nos últimos anos, os moradores afirmam que a situação piorou após uma obra da Sabesp, realizada em janeiro de 2023. “Piorou, não só por conta da parte climática, mas também pela mão do homem. Foram mudar a encanação e entupiu essa galeria. Quando chovia, ficava aquela água aqui por dias, agora que entupiu, fica mais tempo ainda”, explica Ribeiro. Após reclamações dos moradores a Subprefeitura de São Miguel enviou uma solicitação para que a Sabesp fizesse melhorias no asfalto da rua.

Questionada pela reportagem sobre a obra, a Sabesp informou que realizou no dia 14 de fevereiro, terça-feira, uma vistoria na Rua Goiabeira Serrana, altura do número 455 e “não identificou nenhum problema nas redes coletoras de esgoto, que estão operando normalmente. Há cerca de dois anos foi realizada uma pequena obra de remanejamento da rede de esgoto para melhoria de sua eficiência. A Companhia acrescenta que essa obra não possui nenhuma relação com as galerias de águas pluviais, responsáveis por captar, transportar e drenar as águas de chuva. Esse sistema não é operado pela Sabesp e os alagamentos relatados não possuem relação com os serviços da Companhia”.

Nessas três décadas de alagamentos constantes, Ribeiro conta que já viu pessoas perderem tudo dentro de casa e que ela mesmo já teve que repor móveis e reformar seu portão por conta da água. “Eu me sinto desprotegida. Nós pagamos impostos, arrumamos nossa casa, gastamos dinheiro. São trinta anos nesse sofrimento, sabe? Se perguntando quando isso vai melhorar. É uma sensação de impotência muito grande”, desabafa.


Preocupada com a previsão de chuva, Miriana Ribeiro observa a formação de nuvens no Jardim Helena / José Cícero/Agência Pública

O levantamento da Pública mostra que, apesar de antiga, a situação do Jardim Helena segue crítica. Nos dez anos analisados, o distrito registrou mais de duas mil ocorrências, com destaque para o ano de 2016, em que foram registradas 1435 ocorrências.

Bruna Costa, 24 anos, bacharel em Direito e líder comunitária, mora na região desde que nasceu. Junto com Ribeiro e outros vizinhos, ela procura alternativas para resolver a situação. Há dois anos ela começou a dialogar com a subprefeitura da região, protocolar ofícios e fazer abaixo assinados para que ações fossem tomadas.

Mesmo com a organização coletiva, os moradores continuam sem saber quando o problema vai ser resolvido. “A resposta é sempre evasiva ou transfere a responsabilidade para outros órgãos, da Sabesp para a Prefeitura. A resposta que tivemos foi que precisa de um estudo de macrodrenagem para saber o que precisa ser feito para o problema não voltar. Mas não tem uma resposta efetiva de data, como vai acontecer e quem é o responsável”, diz Costa.


Bruna Costa, líder comunitária do Jardim Helena, Zona Leste de São Paulo / José Cícero/Agência Pública

A Pública procurou a Prefeitura de São Paulo no dia 9 de fevereiro e perguntou sobre um possível prazo para o estudo ser feito, além de questionar se o órgão planeja resolver os problemas das áreas mais atingidas, em especial os distritos da Zona Leste. A Prefeitura pediu mais prazo para a resposta, que ainda não foi respondida até o momento da publicação.

Costa conta como o asfalto irregular das ruas faz com que a água fique acumulada. “Essa rua é o problema. Ela tem um desnível, como se fosse uma concha, a água fica empoçada. Uma chuva curta, não precisa ser muito forte, a rua enche de água e todo mundo fica ilhado”.

Apesar do problema já ter sido detectado e da necessidade do estudo, Costa diz que os moradores ainda não sabem quando esse processo vai começar. “É uma coisa a longo prazo, um estudo que vai durar anos. Isso me deram certeza, que não é uma solução que acontece em seis meses. Tanto é que já tem mais de seis meses que eu fui à subprefeitura e até agora nada”, explica.

Segundo Brito, territórios negros costumam ser relegados pelo poder público para tomar ações. “O que motiva a tomada de decisão nem sempre é a vida das pessoas, mas a [pessoa] atingida. Às vezes, o que motiva é o impacto econômico, é o impacto na vida de pessoas que não estão acostumadas a sofrer impacto negativo de nenhum tipo. Normalmente, essas pessoas são a população negra, que é a última a ser atendida. São os territórios onde vive essa população. Todos eles passam por uma normalização do problema”, diz.

“Tá insustentável morar nesse pedacinho”

Apesar de estar próximo ao Rio Tietê e à região do Jardim Pantanal, bairro que sofre com enchentes históricas, a situação dos moradores no Jardim São Martinho não está ligada ao transbordamento do rio e sim à falta de infraestrutura para escoamento nas ruas.

Julião Dourado, conhecido como Seu Julião, tem 73 anos e diz ser um dos primeiros moradores da região. Ele conta que, já naquela época, percebeu o desnível das ruas e pensou em maneiras de não ter prejuízo na sua casa. A saída foi construir por conta própria uma elevação, para tentar impedir que a água entrasse durante os alagamentos. “Quando eu fiz essa casa, falaram que eu estava louco, porque o baldrame estava alto. Se [não]tivesse feito isso, teria perdido tudo”, diz. Ele ainda conta que, até um tempo atrás, a água chegava a invadir a loja da família, que fica em uma das entradas da casa.


Julião Dourado aponta para a altura em que a água alcança em dias de chuvas / José Cícero/Agência Pública

Simoni Silva mora na Rua da Goiabeira Serrana há 16 anos. Logo no primeiro dia em que se mudou para a casa atual, já teve que enfrentar um alagamento. Enquanto a reportagem estava em frente a sua casa, ela saiu rapidamente para buscar seu filho na escola, com medo da tempestade que estava ameaçando cair.

João, seu filho mais novo, tem necessidades especiais e mobilidade reduzida, o que torna a rotina deles complicada, por morarem no ponto mais problemático da rua. “Se ele ficar doente e aqui tiver alagado, não tem como sair. Não tem como entrar no carro do SAMU para tirar. Se tiver consulta marcada, tem que desmarcar, porque não tem como sair”, diz. Silva conta que várias vezes o filho perdeu consultas ou dias de aula por conta dos alagamentos. “Quando ele pegava perua para ir pra escola, não tinha como entrar e nem deixar ele aqui. Se chovesse, eu tinha que sair daqui e pegar lá na avenida, lá embaixo. Aí ele entrava no meio da água para poder entrar dentro de casa”, relata.

Além de João, Silva tem outros três filhos, já adultos. Ela diz que, quando a rua alaga, eles precisam sair com sapatos na mão e bermuda para ir trabalhar e trocar de roupa na estação.

Na análise dela, a situação tem piorado nos últimos anos, com chuvas mais intensas e a obra da Prefeitura. “Outro dia a chuva foi tão forte que entrou água na minha casa. Depois que mexeram aqui [no esgoto], ficou ainda pior”, reclama. “No meu caso, eu só moro aqui porque não tenho outro lugar para morar. Mas, se eu tivesse a oportunidade de sair daqui, eu já teria saído. Fora a sujeira, os ratos, barata, sapo que deu para aparecer agora. Tá insustentável morar nesse pedacinho”, desabafa.