Rio de Janeiro

Coluna

Desafios sociopolíticos para uma agenda efetivamente metropolitana no Rio de Janeiro

A ausência de integração dos espaços de decisão com as demandas e o planejamento municipal só revela que a atual estrutura de governança é frágil como modelo de construção de uma agenda metropolitana - Foto: divulgação
É difícil enxergar uma saída para esse dilema sem a participação ampla de segmentos sociais

*Filipe Souza Corrêa, **João Paulo de Jesus Pacheco e ***Breno Serodio de Castro Rossi 

Passados nove anos desde a promulgação do Estatuto da Metrópole (Lei n° 13.089 de 12 de janeiro de 2015) e cinco anos desde a aprovação da Lei Complementar nº 184 de 27 de dezembro de 2018, que institui a estrutura institucional da Governança Metropolitana da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ), já é possível avaliarmos como tem funcionado a dinâmica deliberativa dessas legislações e quais têm sido os temas mobilizadores da sua agenda de discussões. Destacam-se as limitações da estrutura organizacional desse arranjo de governança, principalmente a ausência de uma mobilização sociopolítica que, de fato, alimente democraticamente o processo decisório, diminuindo o risco de captura desse espaço de articulação pelos interesses de uma agenda política do governo estadual.

As discussões acadêmicas sobre a questão metropolitana no Brasil sempre destacaram a carência de estruturas institucionais que incentivassem uma necessária cooperação entre os entes federativos no âmbito das regiões metropolitanas. Principalmente, porque a região metropolitana é uma unidade regional que se forma a partir do agrupamento de municípios limítrofes que compartilham problemas urbanos comuns, o que exigiria maior integração do planejamento e execução de determinados serviços.

Porém, a materialização dessa cooperação tem esbarrado, historicamente, na enorme dificuldade de superação das autonomias municipais.  

Esse cenário se modificou com a aprovação do Estatuto da Metrópole, que resultou numa oportunidade para a construção de estruturas institucionais, de deliberação, planejamento e execução, a partir das quais os diversos interesses territoriais e segmentos sociais envolvidos nas questões metropolitanas pudessem discutir e construir soluções integradas para problemas compartilhados. Em 27 de dezembro de 2018, com o objetivo de adequar-se ao novo estatuto, o estado do Rio de Janeiro promulgou a Lei Complementar n°184, que atualiza a composição da RMRJ após quase 50 anos da sua criação e cria uma estrutura institucional de governança orientada pelas diretrizes do Estatuto da Metrópole. 

Essa nova estrutura institucional, conforme o artigo 9º da Lei Complementar 184 de 2018, passa a compreender: (a) um Conselho Deliberativo presidido pelo governador do estado do Rio de Janeiro e composto pelos prefeitos dos 22 municípios da RMRJ, além de três representantes da sociedade civil indicados a partir do Conselho Consultivo; (b) um Órgão Executivo denominado de Instituto Rio Metrópole - IRM, que é uma autarquia especial vinculada indiretamente à Administração Pública Estadual, cujo objetivo é fornecer o suporte técnico necessário para o estabelecimento das diretrizes gerais, planos e normas metropolitanas no âmbito do Conselho Deliberativo, colocando em prática as decisões tomadas; e (c) um Conselho Consultivo, formado por representantes da sociedade civil nomeados pelo presidente do Conselho Deliberativo, a fim de assegurar a participação da população no planejamento e na tomada de decisões relativas à gestão metropolitana. 

Havia uma expectativa de que o Conselho Consultivo da RMRJ tivesse sua composição derivada da mobilização dos diversos segmentos sociais envolvidos na formulação do Plano Estratégico de Desenvolvimento Urbano Integrado (PEDUI) da RMRJ. O Conselho Consultivo do PEDUI foi criado em 21 de março de 2016 e teve quatro reuniões ao longo dos anos de 2016 e 2017, contando com a participação de 172 integrantes da sociedade civil.

Esse processo participativo culminou na realização da Primeira Conferência Metropolitana, realizada em 26 de maio de 2018, que elegeu 18 delegados dentre os indicados oriundos de 10 pré-conferências distribuídas pelo território metropolitano. Esses delegados tinham como missão compor o Fórum de Acompanhamento do PEDUI. Após a promulgação da Lei Complementar 184, esses 18 representantes chegaram a participar de uma reunião convocada pela extinta Câmara Metropolitana de Integração Governamental, realizada no dia seis de junho de 2019, onde chegou-se a eleger a presidência e a vice-presidência do Conselho Deliberativo numa eleição vencida pela chapa composta por Henrique Silveira (representante da ONG Casa Fluminense) e Marília Ortiz (representante da Prefeitura de Niterói). 

No entanto, logo na segunda reunião do Conselho Deliberativo, realizada em 19 de setembro de 2019, o presidente do Conselho, então governador Wilson Witzel, declarou, com base em um parecer da Procuradoria-Geral do estado, a nulidade da indicação dos representantes da sociedade civil, alegando que os membros não teriam sido nomeados pelo Presidente do Conselho Deliberativo e que ele ainda não havia sido constituído no momento da realização da conferência. Comparando-se os dados biográficos dos integrantes do atual Conselho Consultivo da RMRJ com os dos 18 delegados destituídos por Witzel é possível perceber um afastamento da sociedade civil engajada na temática metropolitana, especialmente de especialistas do meio acadêmico e dos movimentos sociais urbanos, substituídos por atores políticos alheios à discussão metropolitana. Uma explicação plausível é que Witzel tenha indicado para o conselho grupos cujo posicionamento político seja mais próximo ao seu. 

Uma segunda evidência dos desafios para a participação sociopolítica em torno da governança metropolitana na RMRJ reside no exemplo da captura da agenda metropolitana pelo leilão de concessão regionalizada da Companhia Estadual de Água e Esgoto do Rio de Janeiro (Cedae), logo após a aprovação do arranjo institucional de gestão metropolitana da RMRJ. Nesse processo, podemos perceber o protagonismo assumido pelo governo estadual, tornando a concessão da Cedae o tema central de discussão nos primeiros anos de funcionamento do arranjo institucional de governança. 

Esse monopólio da agenda de deliberações pela temática da concessão da Cedae também foi acompanhado de um esvaziamento do processo deliberativo, pois a questão da concessão já tinha sido colocada na 2ª reunião do conselho deliberativo da RMRJ, em 19 de setembro de 2019, e o processo seguiu sem muita discussão por parte dos integrantes do conselho deliberativo. Enquanto isso, o conselho consultivo, que teve o início dos trabalhos atrasados por conta da sua reconfiguração, só conseguiu se reunir no dia três de agosto de 2020, ou seja, após a aprovação da concessão pelo conselho deliberativo, que se deu no dia 12 de fevereiro de 2020. Portanto, esse impedimento na deliberação do conselho consultivo foi conveniente para os objetivos do governo do estado, considerando que para o presidente do conselho, Wilson Witzel, a concessão regionalizada da Cedae geraria maior capacidade de investimentos para o estado do Rio de Janeiro. Ainda cabe registrar que esse foi o único ponto de efetiva deliberação durante os primeiros anos de existência do arranjo institucional de governança metropolitana da RMRJ.

Além disso, o atropelo da participação sociopolítica no processo de governança metropolitana também se evidencia pela falta de conexão com as instâncias institucionais de gestão de recursos hídricos na RMRJ, como os Comitês de Bacia da Baía de Guanabara e do Rio Guandu.

A falta de transparência sobre os investimentos a serem realizados após a concessão dos serviços gerou reclamações por parte do presidente do Comitê da Bacia do Rio Guandu, Paulo de Tarso, que integrava o Conselho Deliberativo apenas como um representante oriundo do Conselho Consultivo. Os Comitês de Bacias Hidrográficas existentes na RMRJ foram totalmente excluídos da discussão sobre a concessão regionalizada da Cedae. Não existe um assento definido para as representações dos Comitês de Bacias nessa estrutura institucional. 

Portanto, Paulo de Tarso foi voz solitária no Conselho Deliberativo ao manifestar preocupação com a falta de integração entre os planos municipais, os planos de bacias hidrográficas e o plano metropolitano de saneamento básico. Um levantamento feito sobre as atas recentes dos comitês das bacias hidrográficas do Guandu e da Baía de Guanabara também revelou uma reação posterior dos conselheiros ao projeto de concessão regionalizada. Alguns membros manifestaram as mesmas dúvidas sobre como a dinâmica de concessão seria compatibilizada com um planejamento em escala metropolitana, reforçando a constatação de que a concessão regionalizada da Cedae atendeu a objetivos meramente fiscais para o governo do estado, tendo as outorgas municipais como uma importante moeda de troca na relação com os prefeitos de municípios metropolitanos.

A partir de meados de 2022, superados os debates em torno da concessão do saneamento, a agenda de discussões muda para incorporar a composição do Fundo de Desenvolvimento da Região Metropolitana (FDRM) e para a finalização de três planos importantes para a integração metropolitana que não haviam ganhado grandes holofotes até o momento: o Plano Metropolitano de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos (PmetGIRS); o Plano Metropolitano de Saneamento Básico (Plansan); e o Planmob Rio Metrópole (PRM 2034). O FDRM, que é destinado a investimentos na Região Metropolitana e custeio do Instituto Rio Metrópole, entra na agenda pelo fato de ter sido alimentado com parte da outorga fixa da concessão regionalizada da Cedae e por ser alimentado mensalmente com 0,5% da arrecadação do sistema de saneamento, a chamada outorga variável.

Esse aporte de recurso do FDRM parece ter tido um efeito significativo na reorientação da forma como o Governo do estado do Rio de Janeiro se relacionava com as instituições de governança metropolitana. Nas duas reuniões do Conselho Deliberativo ocorridas ao longo de 2023, a primeira no dia 29/06 e a segunda em 22/11, as atenções se voltaram para novos projetos estratégicos como o monitoramento de transporte de cargas, inventário metropolitano de créditos de carbono, ecossistema metropolitano de aplicação do BIM e de modelagem para concessões de galerias técnicas da metrópole. 

Esse maior envolvimento do governo Cláudio Castro com a estrutura institucional de governança metropolitana resultou, inclusive, em uma mudança na Presidência do IRM e de sua estrutura interna. Portanto, fica evidente que esses projetos foram propostos pelo Governo do estado por meio do Instituto Rio Metrópole e apenas submetidos à aprovação da instância deliberativa da governança metropolitana sem qualquer debate no âmbito do Conselho Consultivo. Isso ocorre justamente no momento em que há um aporte de recursos do FDRM derivado da concessão regionalizada da Cedae. Portanto, apesar de serem articulados com alguma ação prioritária contida no PEDUI, ainda que vagamente, não é possível identificar uma permeabilidade na definição desses projetos e sua capacidade de servir às reais demandas dos municípios e de sua população. 

Apesar da estrutura de governança metropolitana ser idealizada para funcionar como fórum dos problemas metropolitanos, o seu funcionamento tem sido mobilizado a partir de uma agenda política do Governo do estado.

Como agravante, destacamos o fato de que os representantes dos municípios metropolitanos nem sempre terão o distanciamento necessário de suas agendas políticas locais no momento das discussões. Isso fica evidente nas deliberações em torno da concessão da Cedae, em que as outorgas municipais obscureceram qualquer discussão mais aprofundada sobre o funcionamento da concessão para o contexto metropolitano. A ausência de integração dos espaços de decisão com as demandas e o planejamento municipal só revela que a atual estrutura de governança é bastante frágil como modelo de construção de uma agenda efetivamente metropolitana. 

É difícil enxergar uma saída para esse dilema sem a participação ampla e profundamente engajada de segmentos sociais interessados em incidir politicamente sobre as questões metropolitanas, especialmente os representantes dos movimentos sociais urbanos, das ONGs e órgãos de representação de profissionais envolvidos com o planejamento urbano e regional e pesquisadores acadêmicos das questões urbano-metropolitanas, cuja participação foi retirada do Conselho Deliberativo. Precisamos construir espaços mais participativos, nos quais a formulação de uma agenda metropolitana leve a sério a emergência dos problemas colocados pelos diversos agentes envolvidos na construção do espaço urbano-metropolitano, seja em diálogo com o que já foi consolidado no PEDUI, seja a partir da construção de novas soluções compartilhadas para os problemas comuns aos municípios metropolitanos.
 

*Professor Adjunto do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ) e pesquisador do INCT Observatório das Metrópoles.

**Mestrando em Planejamento Urbano e Regional no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ) e pesquisador do INCT Observatório das Metrópoles.

***Mestrando em Planejamento Urbano e Regional no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ) e pesquisador do INCT Observatório das Metrópoles.

*****Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato RJ.

Edição: Jaqueline Deister