Não há novidade no fato de que Jair Bolsonaro usou aparelhos do Estado para perseguir adversários
Não há qualquer novidade no fato de que Jair Bolsonaro, durante os 4 anos em que esteve à frente do Executivo Federal, usou as instituições, os órgãos, os aparelhos do Estado para perseguir adversários políticos.
Vivemos os tempos dos “dossiês”, com investigação sigilosa para levantamento de dados dos policiais do “movimento antifascistas” produzidos em uma secretaria do Ministério da Justiça, com produção de relatórios de orientação para o senador Flávio Bolsonaro e seus advogados no pedido de anulação da investigação do escândalo das “rachadinhas”, com interferência nas investigações sobre Jair Renan e suas relações com empresas que mantinham e tinham interesse em contratos com o governo federal. Essas entre outras várias denúncias.
Em julho de 2020 Bolsonaro editou o Decreto nº 10.445 que alterou a estrutura da Abin permitindo que o diretor-geral da Agência acessasse informações sigilosas a partir de uma simples requisição. A intenção, muito evidente agora, era conferir legalidade ao que já faziam secretamente.
O Supremo Tribunal Federal (STF) considerou desvio de finalidade no decreto, que seria revogado em 2023 pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Apontou, ainda, a Corte, que de acordo com o entendimento estabelecido pelo STF, mesmo quando presente o interesse público, os dados referentes às comunicações telefônicas ou dados de pessoas devem respeitar os direitos fundamentais e, nas hipóteses cabíveis de fornecimento de informações e dados à Abin, são imprescindíveis procedimento formalmente instaurado e a existência de sistemas eletrônicos de segurança e registro de acesso, inclusive para efeito de responsabilização em caso de eventual omissão, desvio ou abuso.
A instrumentalização da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), que já apresentava esse e vários indícios, foi confirmada em março de 2023, com documentos divulgados pela imprensa e relatos de servidores de que a Agência operou um sistema secreto de monitoramento da localização de cidadãos em todo o território nacional.
Com o uso de um software israelense, com uma ferramenta chamada FirstMile, comprada da empresa Cognyte para monitorar determinados alvos a partir de seus celulares, a Abin armazenava os dados coletados em um servidor localizado em Israel, país com tradição de desenvolver programas de espionagem, de acordo com a investigação da PF.
Na operação “última milha”, iniciada no ano de 2023, foram cumpridos mandados de busca e apreensão, dois ex-agentes da Abin foram presos e cinco servidores do órgão foram afastados dos cargos. O foco então foi o uso de dinheiro público em compra de um equipamento por quase 6 milhões de Reais para uso não justificável e sem licitação. Na operação “vigilância aproximada”, deflagrada na semana passada, se tem indícios claríssimos da criação de uma Abin paralela com vistas a blindar a família Bolsonaro e a espionar ilegalmente pessoas escolhidas.
A Polícia Federal informa que o rastreamento ilegal foi feito sobre jornalistas, políticos e até integrantes do Poder Judiciário.
Segundo as investigações, a "necessidade" de monitorar essas pessoas era criada sem qualquer lastro técnico e sem autorização judicial. Desse modo, os dados de cerca de 30 mil pessoas estavam armazenados em nuvem em Israel.
Alexandre Ramagem, delegado da Polícia Federal, hoje deputado federal eleito pelo Rio de Janeiro, chefiou a Abin durante a maior parte do governo Bolsonaro. Sempre foi uma figura central nesse processo todo, não apenas como agente público, mas como uma pessoa muito próxima da família Bolsonaro.
O filho do ex-presidente, Carlos Bolsonaro, é outra personagem emblemática que foi apontado pelo ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, Mauro Cid, como operador do chamado gabinete do ódio, uma estrutura paralela montada no Palácio do Planalto para criar fake news que seriam disseminadas por perfis de extrema direita para difamar autoridades.
As investigações chegarem aos nomes de Ramagem e Carlos Bolsonaro é, portanto, uma consequência natural. E as revelações são de extrema gravidade.
O que está sendo trazido à luz é uma verdadeira organização criminosa, desvio de finalidade com o uso da máquina para produção e compartilhamentos de dados para atender a interesses privados e ilegais. O uso de um órgão de inteligência para monitoramento de comunicações telefônicas - que só pode ser feito em investigação criminal e com autorização da autoridade judiciária – com evidente agressão ao direito à vida privada, à intimidade e à liberdade de locomoção.
Todos os caminhos apontam para o mesmo lugar. A Abin foi manejada para atacar instituições e pessoas - inclusive com grupos de servidores com tarefa de forjar documentos para estabelecer falsamente relações entre autoridades e o crime organizado - e ao mesmo tempo para defender Bolsonaro, sua família e aliados com informações obtidas de forma ilegal, e com interferência em diversas investigações da Polícia Federal.
O abuso da máquina estatal para atendimento de objetivos criminosos como esses que se voltam a obter dados sobre pessoas para impor-lhes restrições inconstitucionais, agressões ilícitas, medos e exposição de imagem não são compatíveis com o Estado democrático de direito.
Arapongagem é crime. E como tal deve ser tratada.
A questão que está posta com as revelações da investigação da Polícia Federal não é se Ramagem, Carlos Bolsonaro e outros serão presos, mas se o governo de Jair, o pai, será passado a limpo naquilo que foi mais danoso à democracia brasileira: a tentativa de sua derrocada.
* Tânia Maria de Oliveira é advogada, historiadora e pesquisadora. É membra do Grupo Candango de Criminologia da UnB (GCcrim/UnB) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Compõe a equipe do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos do Governo Federal.
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Vivian Virissimo