'Rachadinhas'

Moraes reacende suspeita sobre relatórios da Abin para defesa de Flávio arquivada pela PGR na gestão Aras

Operação da última quinta-feira traz à tona episódio que MPF não conseguiu investigar antes a fundo

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
O ministro do STF Alexandre de Moraes - Reprodução/TV Justiça

Ao autorizar a Operação Vigilância Aproximada, que investiga a existência de uma estrutura paralela de inteligência na Abin durante o governo Jair Bolsonaro (PL), o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes reacendeu uma suspeita antiga revelada pela imprensa de que a agência teria produzido relatórios para auxiliar na defesa do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), filho do então presidente, no caso das "rachadinhas".

A suspeita, que envolve mais especificamente o ex-diretor da Abin e deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ) e um agente da PF, Marcelo Bormevet, que assumiu um cargo na agência na gestão de Ramagem, chegou a ser investigada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) durante o governo Bolsonaro, mas foi arquivada em um procedimento que sequer passou pela PF.

Agora, porém, a PGR, sob a gestão de Paulo Gonet, defendeu para o ministro Alexandre de Moraes que fossem feitas buscas nos endereços de Bormevet e Ramagem com base nas suspeitas de produção dos relatórios e também em outros episódios levantados pela Polícia Federal.

O Brasil de Fato teve acesso a trechos da apuração realizada durante a gestão de Augusto Aras e que, diferente da investigação conduzida atualmente, se baseou apenas em relatórios divulgados pela imprensa e não encontrou "suporte mínimo de justa causa" para avançar nas investigações com buscas nos endereços de Ramagem e Bormevet, como as realizadas na quinta-feira, (25).

Apuração começou após pressão da oposição

Na época da primeira investigação sobre a suspeita de uma Abin paralela, a PGR estava sob o comando de Augusto Aras e só abriu em novembro de 2020 uma "notícia de fato" – espécie de apuração preliminar para checar se as informações são suficientes para justificar a abertura de inquérito – após vários parlamentares que faziam oposição a Bolsonaro acionarem o STF.

Diferente de um inquérito, no qual podem ser adotadas medidas mais drásticas para investigar a fundo as suspeitas de um crime, a notícia de fato é um procedimento que tramita apenas dentro do próprio Ministério Público Federal. Com isso, o procedimento para apurar a suspeita de que teria ocorrido um desvirtuamento das funções da agência de inteligência para favorecer um dos filhos do presidente se limitou a encaminhar ofícios às autoridades para checar se, de fato, havia sido produzido algum relatório de inteligência paralelo usando as estruturas do governo.

A PGR enviou ofícios para a própria Abin, então comandada por Ramagem, para o então ministro do GSI (pasta sob a qual ficava a Abin), general Augusto Heleno, para a Editora Globo, responsável pela Revista Época, que revelou a existência dos relatórios de inteligência, e também para as advogadas de Flávio Bolsonaro no caso das "rachadinhas".

A Editora Globo alegou sigilo da fonte do jornalista responsável pela matéria e não enviou as informações dos relatórios a que o repórter teve acesso. As advogadas de Flávio Bolsonaro alegaram estar impedidas legalmente de prestar depoimento sobre fatos envolvendo seu cliente.

Autoridades negaram e PGR acatou argumentos 

Em resposta à PGR, a Abin negou a produção e envio de qualquer relatório para auxiliar na defesa de Flávio Bolsonaro, que no fim de 2020 foi denunciado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro por suspeita de ter criado em seu gabinete de deputado estadual na Alerj um esquema que desviava para ele os salários de seus funcionários, chamado de "rachadinha".

A agência, sob o comando de Ramagem, chegou inclusive a instaurar uma sindicância interna que ouviu, dentre outras pessoas, o próprio Ramagem e Marcelo Bormevet, apontado nas matérias jornalísticas que foram veiculadas naquele ano como o responsável pela produção dos relatórios para Flávio.

Foi no âmbito dessa sindicância, inclusive, que a Abin identificou que militares do gabinete pessoal de Bolsonaro e outros funcionários públicos chegaram a buscar informações sobre o chefe da Receita nas bases de dados do governo federal, como revelou o Brasil de Fato.

Em seu depoimento à sindicância, Ramagem chegou a afirmar que a linguagem dos relatórios que foram divulgados pela imprensa, remeteriam à "atividade antiga de inteligência", como revelou o Brasil de Fato. Já Bormevet, negou à sindicância ter feito qualquer relatório ou pesquisa para auxiliar na defesa de Flávio Bolsonaro.

"Que nem o diretor-geral da Abin, nem qualquer outra pessoa demandou isso (produção de relatórios para auxiliar defesa de Flávio Bolsonaro) ao depoente e que o depoente tampouco executou qualquer pesquisa nesse sentido, nem elaborou qualquer documento ou relatório para auxiliar a defesa do senador Flávio Bolsonaro ou de qualquer outro parlamentar ou agente público", afirmou Bormevet à sindicância da Abin.

Com isso, a sindicância da própria agência foi concluída sem encontrar nenhum elemento que indicasse que Ramagem, Bormevet ou algum outro integrante da Abin no período tivesse produzido os relatórios.

Além disso, o Tribunal de Contas da União também abriu uma investigação própria, mas acabou arquivando-a, após não conseguir identificar irregularidades.

Durante a apuração, porém, a área técnica do TCU reconheceu que, por se tratar a suspeita de uma atuação informal de servidores da Abin, eles não dispunham dos meios adequados para apurar esse tipo de conduta. "Se houve participação no feito de pessoas ligadas à Abin, esta foi informal, sendo sua averiguação alheia ao escopo de apuração de órgão de controle de contas, sendo mais pertinente à investigação policial, na qual há a interveniência do Ministério Público, ou à natureza de órgão de inteligência e contrainformação", afirmou o parecer da área técnica do TCU.

Neste cenário, o promotor Henrique Ziesemer, que estava atuando como membro-auxiliar da PGR no período, emitiu um parecer defendendo o arquivamento do caso. "Ante o exposto, não encontrados elementos suficientes, por ora, nem identificado suporte mínimo de justa causa, no que se refere à verossimilhança dos fatos supostamente ilícitos apontados pela requerente aptos a embasar a abertura de procedimento investigatório, proceder-se ao arquivamento da presente representação é medida que se impõe", diz o promotor no parecer que foi acatado pela PGR em fevereiro de 2022.

Notícia sobre relatório foi suficiente para Moraes

Menos de dois anos depois, porém, graças a um inquérito aberto na Polícia Federal para investigar o uso indevido do software de rastreamento de celulares First Mile (cujo uso não era de conhecimento público em 2020 e 2021) pela Abin, a PGR se deparou com novos elementos para apurar a suposta estrutura paralela que envolveria Ramagem.

No caso de Bormevet, a representação da PF, chancelada em grande parte por Gonet (ele foi contrário ao afastamento de Bormevet da PF), se baseia justamente em uma matéria de 2020 do portal Intercept Brasil sobre a produção de relatórios para a defesa de Flávio (que inclusive consta na sindicância interna da Abin que tentou rastrear a fonte dessa e de outras matérias) para solicitar a busca e apreensão nos endereços dele.

A reportagem questionou a PGR sobre a mudança de entendimento entre as gestões passada e atual do órgão e a assessoria de imprensa informou que "o PGR não comenta atuação de colega".

O pedido de buscas foi autorizado pelo ministro Alexandre de Moraes, que ainda determinou o afastamento de Bormevet de sua função de agente da Polícia Federal e a proibição de frequentar as depedências do órgão, exceto se for intimado para prestar esclarecimentos. Diferente de anos atrás, as suspeitas que sempre foram negadas por Flávio Bolsonaro ao que tudo indica poderão ser checadas a fundo agora pela Polícia Federal e pela PGR.

Edição: Nicolau Soares