Mesmo antes de tomar posse, Ricardo Lewandowski já está com os pés na que talvez seja a pasta mais visada no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Por um lado, a oposição e parte da imprensa já cobram medidas mais duras e imediatas do futuro ministro da Justiça e Segurança Pública contra o crime organizado. Por outro, sua experiência como magistrado poderia ajudá-lo a driblar o imediatismo e estruturar políticas de longo prazo.
Respaldado pelo presidente, Lewandowski só assumirá em 1º de fevereiro e tem a seu favor fiadores de peso em sua incursão na política. De saída, também carrega consigo o prestígio pela longa carreira vestindo a toga do Supremo Tribunal Federal (STF), além de uma equipe com nomes destacados em 2023, como o de Andrei Rodrigues, diretor-geral da Polícia Federal (PF).
Para a gestora pública de segurança Jacqueline Muniz, professora da Universidade Federal Fluminense e que chegou a participar da equipe de transição na área, abre-se uma janela de oportunidade para reformas estruturais mais profundas. "O maior desafio do ministro Lewandowski, com seu currículo, é um desafio de mentalidade. De superar o mundo dos achismos de ocasião na segurança pública, não se deixar render pelas pressões de ocasião, porque a insegurança dá voto, matança dá voto, violência dá voto", explica.
Jacqueline, que também é antropóloga, cientista política e já esteve na composição do ministério em 2003, é crítica da adoção de medidas emergenciais "mais midiáticas do que efetivas". Ela menciona as GLOs (operações de garantia da lei e da ordem) em alguns portos e aeroportos anunciadas em novembro: "serviram apenas para ajudar a limpar a imagem das Forças Armadas e dar sensação de segurança para a classe média. A vigilância desses locais já é muito bem feita pelos órgãos federais".
:: Especialistas veem com ceticismo GLO do governo Lula em portos e aeroportos ::
Alvo recorrente dos bolsonaristas, Flávio Dino (PSB), que permanece na pasta até a chegada do novo ministro, foi convocado diversas vezes para depor na Câmara dos Deputados. Caso a composição da Comissão de Segurança Pública para esse ano siga dominada por bolsonaristas, é provável que o assédio parlamentar se transfira a Lewandowski.
Montagem da equipe indica caminhos
Mesmo ainda fora da cadeira, o ex-juiz já sinalizou que manterá a guarda alta no enfrentamento aos grandes cartéis criminosos. No dia 17, o procurador-geral de Justiça de São Paulo, Mario Sarrubbo, aceitou convite para assumir a Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), alçado pelo seu perfil linha-dura no combate ao crime organizado.
Indicado pelo ministro do STF Alexandre de Moraes, Sarrubbo teria vencido internamente uma tentativa de emplacar o nome de Benedito Mariano, secretário de Segurança Pública de Diadema (SP). Acredita-se que Sarrubbo teria chance de utilizar sua experiência à frente do Ministério Público e do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco) paulista para unificar o grupo de atuação especial em todo país. Algo que envolveria a criação de estruturas próprias e o compartilhamento de informações de todas as polícias estaduais.
Por outro lado, há o temor por uma espécie de "continuísmo" no fortalecimento e investimento do aparato repressivo, o que para Jacqueline ajuda a exaurir recursos importantes. Também ajudaria a manter os pilares de sustentação do discurso bolsonarista, misturando ódio, medo e belicosidade. "Diante do agravamento do temor, nós abrimos mão das nossas garantias individuais e coletivas em favor do primeiro musculoso, o fortão de ocasião, que nos prometa proteção e segurança. Só que a proteção nos fideliza pela ameaça constante e permanente", reclama.
Ela ainda relembra as grandes e "efêmeras" operações especiais com o emprego das Forças Armadas para responder a crises de segurança que, avalia, são "inventadas politicamente" e reforçadas midiaticamente por "conveniência eleitoreira". "É exatamente isso que estamos vendo aí: a insegurança como um projeto político de poder que tem dado certo. Veja os resultados eleitorais no Rio de Janeiro, em Minas Gerais, em São Paulo e em outros estados, nos últimos anos, nas últimas eleições", salienta.
De conflitos em territórios indígenas a crimes cibernéticos, de sistema prisional a fiscalização de fronteira, de combate à letalidade policial à criação de normas e jurisprudências, Lewandowski terá que conectar muitas frentes sob o guarda-chuva do ministério. Segundo Jacqueline, várias diretorias foram recriadas e programas foram lançados por Dino, mas ainda não estão operando plenamente. A expectativa é de que, além de evoluir, as áreas estejam cada vez mais conectadas para enfrentar os principais dilemas abertos na área da segurança.
"Como é que você pode pensar em prender melhor, ao invés de prender muito e prender mal, prender melhor e fazer cumprir a custódia, de maneira que esse preso não vire uma mercadoria do crime organizado? Porque, hoje, o preso é a principal commodity do crime organizado, o que tanto agora agrada governos interessados na falsa guerra contra o crime, rentável eleitoralmente, e também é vantajoso para o próprio crime, que arregimenta mão de obra barata", exemplifica.
Garantismo x repressão a todo custo
Considerado de perfil garantista, Lewandowski tomou decisões enquanto membro da Corte Suprema no sentido de endurecer regras de acesso à armas de fogo. Também foi contra operações em favelas durante a pandemia de covid-19 e pela responsabilização de agentes de segurança por balas perdidas decorrentes de operações policiais. Em outras ações, foi contra a "cultura do encarceramento" e a favor de investir em melhores condições para o sistema prisional.
Para saber o contraponto a essas ideias, a reportagem conversou com o subprocurador-geral da Justiça Militar Carlos Francisco Pereira, identificado com conceitos à direita para a área de segurança pública. Ele faz coro às campanhas de políticos, muitos deles egressos das forças de segurança, em prol de maior força e rigor por parte do Estado para enfrentar o crime. Em sentido oposto ao de coibir abusos e a impunidade dos maus agentes, ele sugere mudanças na legislação que aumentam a permissividade das polícias "para operar em uma situação de guerra".
Ele acredita que Lewandowski pode "se adaptar à missão", abandonando convicções, para evitar o que chama de "mexicanização do Brasil", em referência a o que vê como um nível "insustentável" de violência e corrupção por parte de um crime organizado internacionalizado e "terrorista". "Enfrentar esse tipo de desafio ao Estado exige realmente atitude conservadora nos sentidos de aplicar a lei na sua integralidade. Na repressão a esses crimes não cabe garantismo penal, nem poder criminal consensual, ele exige polícia criminal repressiva mesmo, entendeu?", argumenta Pereira pela tese da excepcionalidade.
Na margem oposta do rio, Jacqueline Muniz rema contra a multiplicação da sensação de insegurança e seus efeitos colaterais. "Quando a gente fica refém da polícia de operações, ficamos reféns da polícia ostentação, da polícia de espetáculo. E isso gera, como eu falei, escassez da capacidade de cobertura extensiva e investigativa, gerando saturação do trabalho de inteligência. Ou seja, você fica trocando seis por meia dúzia, nadando, nadando e morrendo na praia", sintetiza.
Edição: Nicolau Soares