Passado um ano de atividades do governo Lula na Terra Indígena (TI) Yanomami, em Roraima, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) avalia que a gestão tem dado pouco de si na assistência ao território, onde vivem 384 comunidades. A TI está sob ação federal há um ano, desde 20 de janeiro de 2023, quando o presidente decretou estado de calamidade pública em decorrência de uma crise humanitária que se alastrava na área desde a gestão Bolsonaro.
“O governo visualizou o problema que ocorria ali naquela região e minimamente se dispôs a enfrentar a situação, mas falta ainda a gente avançar muito pra solucionar o problema. Por mais que a gente saiba de toda a dificuldade que a gestão possa ter enfrentado ano passado por ter herdado um orçamento defasado, uma estrutura precária do governo anterior, o governo atual teria condições de fazer algo mais efetivo e mais contundente pelos Yanomamis, principalmente no que se refere à desintrusão, à retirada dos invasores e a garantia do não retorno deles ao território”, afirma Kleber Karipuna, integrante da secretaria-executiva da Apib.
Em setembro de 2022, o Ministério da Defesa havia contabilizado uma redução de 80% na área afetada pelo garimpo na TI Yanomami, mas a estimativa extraoficial é de que cerca de 8 mil garimpeiros ainda estejam presentes no território, que tem 9.965 mil hectares. A Apib aponta que a permanência de invasores na região se dá porque ao longo do ano passado o governo federal não manteve tropas de segurança em alguns pontos do território, o que provocou um retorno de garimpeiros que haviam sido expulsos no começo de 2023.
“A gente teve uma situação parecida na década de 1990, embora em menor grau de gravidade, mas também na TI Yanomami. Houve a retirada dos invasores naquele momento e se comprovou depois que a ausência do Estado fez com que isso retornasse como um problema muito maior depois. Estamos falando de 20 mil garimpeiros invadindo e destruindo o território. Então, já há uma lição aprendida de governos passados que já deveria ter sido contabilizada neste momento em que se retoma o processo”, resgata Kleber Karipuna.
O garimpo é uma atividade ilegal em áreas indígenas e traz diversos impactos negativos, entre eles a contaminação de rios, peixes e outros alimentos. Um outro efeito colateral é considerado preocupante pelas comunidades da TI Yanomami: a presença de garimpeiros acaba prejudicando a instalação de unidades de saúde por conta da ação violenta de bandos que agem a favor do garimpo e impedem a oferta dos serviços. O presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami, Júnior Hekurari Yanomami ressalta que, quando o governo deflagrou a operação de emergência sanitária no território, mais de 300 comunidades estavam sem atendimento de saúde havia quatro anos, período do governo Bolsonaro.
Segundo o dirigente, todos esses grupos foram atendidos pelas equipes enviadas ao local, mas a situação foi se modificando ao longo do ano, com a retirada das tropas de parte da área da TI. “Temos hoje cerca de 60 comunidades que estão sem esse serviço por conta da presença de garimpeiros fortemente armados. Nós entendemos que a situação na TI melhorou, avançou bastante em alguns aspectos, mas tem dados que mostram que precisamos avançar mais”, cobra.
O Greenpeace, uma das entidades da sociedade civil que acompanham a situação da TI Yanomami, destaca que o problema está permanentemente na boca dos moradores. “A gente vê que essa é uma das principais reclamações das pessoas que costumamos ouvir no território”, destaca o porta-voz da organização, Jorge Dantas. Ele observa que a ação federal na região carece de maior articulação interministerial para fortalecer a presença estatal e não só poupar os moradores da área de um agravamento do problema, mas também garantir uma assistência mais integrada.
“No ano passado, a máquina pública federal conseguiu agir de forma célere no início da operação, aplicando um olhar minimamente transversal e acionando os Ministérios dos Povos Indígenas, do Meio Ambiente, dos Direitos Humanos, da Defesa, bem como Força Nacional, Ibama, etc. Isso foi algo positivo, mas ações voltadas pra expulsão de garimpeiros, queima de aeronaves e coisas do tipo precisam ser pensadas de forma associada ao conjunto das políticas públicas que precisam chegar no território e ainda não chegaram de forma tão efetiva. Isso ocorre principalmente na área da saúde.”
Como resultado da precariedade do atendimento na TI, o índice de mortes no território segue sendo alarmante: entre janeiro e novembro de 2023, por exemplo, foram 308 casos, uma queda de apenas 10% em relação a 2022. As três causas principais foram problemas respiratórios, doenças parasitárias e males consequentes da desnutrição. Na sequência, aparecem os registros de doenças intestinais e mortes por agressões. Já os casos de malária saltaram 61% na comparação com o ano anterior, ultrapassando a faixa das 25 mil notificações. Os dados são do Ministério da Saúde.
“Nós tivemos um período de quatro anos de subnotificações dos problemas de saúde na área Yanomami, então, é também por conta disso que os números são mais elevados, mas é preciso dizer que essa situação de subnotificação já era de conhecimento do governo brasileiro. Sendo assim, nós entendemos que eles poderiam ter investido de uma maneira mais contundente pra barrar esses problemas o máximo possível”, sublinha Kleber Karipuna.
Desdobramentos
A gravidade da situação do povo Yanomami virou caso de Justiça nos últimos meses. Após provocação da Apib, o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou que o governo apresentasse um relatório detalhado sobre o andamento das ações voltadas à proteção das comunidades. Em novembro, o magistrado determinou que a União elabore em 60 dias um novo plano para a retirada de invasores de sete territórios indígenas, entre eles a TI Yanomami.
Barroso também fixou que em 90 dias seja apresentado para tais áreas um plano de ação para melhorar o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS), que deverá ser aplicado em até três anos. Um dos desdobramentos do caso se deu no último dia 9, quando Lula convocou uma reunião ministerial para debater a situação dos Yanomamis. O governo definiu que irá instalar uma casa de governo na região para combater o garimpo ilegal e articular o apoio humanitário. Também deliberou que em 30 dias apresentará um plano de ação com a participação das Forças Armadas, da Polícia Federal (PF) e outros órgãos federais.
Diálogo
Para as lideranças indígenas, os entraves nas áreas de saúde e segurança passam pelo que consideram uma falta de escuta do governo em relação às comunidades para definir pontos que necessitam de atendimento no território. Júnior Yanomami afirma que, diante desse cenário, em 2024 a pressão por diálogo com a gestão tende a aumentar para garantir que as medidas sejam “mais efetivas”.
“A gente precisa de segurança permanente e quer indicar onde tem problema pra gente consertar a Terra Yanomami de vez, porque quem está sofrendo são crianças. Temos que acertar [isso] de vez. Ano passado teve muito trabalho, mas este ano nós lideranças, organizações queremos participar para que a gente possa apontar onde tem [problema] e como se chegar nessas comunidades pra gente zerar em 2024 o número de garimpeiros na TI Yanomami.”
Ele afirma que as lideranças irão pressionar a gestão por “ações mais planejadas” no local. “O governo precisa entender que essa questão do planejamento afeta muitas outras coisas. A gente não quer mais a comunidade bebendo água suja, sendo contaminada com mercúrio, pegando malária. A gente quer resgatar o bem-viver das comunidades. O nosso objetivo é salvar a população Yanomami, por isso vamos cobrar mais diálogo.”
A Apib acrescenta que é da melhoria dos atendimentos de saúde e segurança que dependem outras medidas aguardas pelas 384 comunidades locais. “Ali tem muito o que ser feito. Queremos não só atendimento de saúde, mas uma política de recuperação ambiental pra garantir soberania alimentar ao povo Yanomami, por exemplo. Esse tipo de ação precisa ser efetivado porque é preciso dar uma sobrevida ao povo Yanomami no seu próprio território”, encerra Kleber Karipuna.
Governo
O Brasil de Fato procurou ouvir o Ministério dos Povos Indígenas para tratar da articulação do trabalho feito pelo governo federal na TI no último ano, mas a assessoria de imprensa informou que não havia porta-voz com agenda disponível para atender a reportagem. O jornal também procurou o Ministério da Justiça para abordar especificamente as questões de segurança, mas a pasta disse que a demanda seria com a Casa Civil.
Já a Casa Civil respondeu que o governo promoveu 400 operações de desintrusão na TI em 2023 e que este ano o trabalho terá “nova infraestrutura e gerência” após a decisão de que a presença das forças de segurança será permanente. Segundo o ministério, em um ano de operação houve 85% de redução nos alertas de desmatamento em novas áreas de mineração e diminuição de 90% do tráfego aéreo desconhecido, além de 114 de mandados de busca e apreensão, 175 prisões e flagrante e destruição de 340 acampamentos de garimpeiros.
A respeito das ações de saúde, a Casa Civil diz que o governo mobilizou 960 profissionais de saúde, 40% a mais do que em 2022. “Também foram reabertos sete Polos-Base e Unidades Básicas de Saúde Indígena, que estavam fechados por ações criminosas, totalizando 68 estabelecimentos de saúde com atendimento em terra Yanomami. Nessas localidades, onde é possível prestar assistência e ajuda humanitária, 307 crianças diagnosticadas com desnutrição grave ou moderada foram recuperadas”, diz a nota.
Edição: Matheus Alves de Almeida