Três meses após o auge da seca avassaladora que atingiu o Amazonas, os rios da região entraram no período de cheias. A volta das chuvas e a subida do nível da água normalizaram a vida de boa parte das mais de 630 mil pessoas que, em outubro de 2023, ficaram isoladas após os rios se transformarem em grandes bancos de areia.
Porém, ainda pesam sobre as populações da floresta a escassez de peixes e o medo de que a próxima cheia possa ser tão extrema quanto a última seca. Por isso, lideranças indígenas e ribeirinhos pedem que os governos implementem medidas de prevenção e fazem campanhas de arrecadação de alimentos.
"A navegabilidade melhorou em algumas regiões, mas a questão da insegurança alimentar e a falta de água potável permanecem", diz Mariazinha Baré, coordenadora da Articulação das Organizações e Povos Indígenas do Amazonas (Apiam), que representa 63 povos originários.
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O aumento da temperatura da água levou à alta mortandade de peixes, que podem demorar anos para se reproduzir. Para alimentar as famílias indígenas vulneráveis, a Apiam faz uma campanha para arrecadar recursos que serão destinados à compra de cestas básicas e outros materiais que possam ajudar as comunidades (clique aqui para contribuir).
"Muita coisa está voltando ao normal, mas aos poucos", disse ao Brasil de Fato Silvia Elena, secretária de Direitos Humanos do Conselho Nacional de Seringueiros (CNS), que representa as populações extrativistas.
A insegurança alimentar é potencializada pela falta de alimentos como macaxeira e feijão, que, junto com os peixes, compõem a base alimentar das populações da floresta. O CNS explica que, com a falta de água durante a seca, os extrativistas perderam a produção nas roças, cujo excedente também serve como fonte de renda.
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"As populações estão plantando roças de produção mais rápida, para poder conseguir recursos e alcançar o objetivo deles, que é não deixar faltar alimentação em casa e ter a comida também para os animais que eles criam", disse Silvia Elena.
Subida rápida dos rios preocupa
Enquanto os moradores da floresta tentam se recuperar da seca, o CNS observa com preocupação a rápida subida de nível dos rios amazônicos. Segundo Silvia Elena, a estiagem forte pode significar uma cheia igualmente devastadora, com risco de submergir comunidades.
"E aí vai ser um outro problema para o qual a gente tem que começar a se preparar. Os governos têm que começar a pensar nisso, a formular estratégias para atender famílias que podem ser atingidas por uma cheia muito grande", cobra.
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Ayan Fleischmann, pesquisador do Instituto Mamirauá em Tefé (AM), também vê sinais de uma cheia forte em 2023. Segundo ele, várias áreas da floresta de várzea, que ficam inundadas durante o pico das cheias, já estão alagadas, antes do período em que isso normalmente acontece.
Enquanto isso, Fleischmann diz que o nível dos rios está subindo rápido e, no caso do Solimões, que se transformou em "deserto" há três meses, está acima da média para janeiro.
"O Amazonas passa todo ano por potenciais desastres: uma seca extrema e uma cheia extrema. Quando acaba a estiagem, já começa o período de enchente. E todos estão preocupados com a próxima seca, que pode ser forte", afirma o pesquisador.
Como garantir alimento e água?
As fontes ouvidas pela reportagem defendem medidas para prevenir e diminuir o impacto de futuras secas e cheias no território amazônico, especialmente a insegurança alimentar.
Entre as propostas, estão a remoção prévia de moradores de áreas de risco, a ampliação no número de cisternas para captação de água da chuva e a construção de poços artesianos, para que a única água disponível não seja a dos rios.
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"Antes das cheias ocorrerem, os governos deveriam providenciar a evacuação das pessoas, garantindo um local seguro para abrigá-las e evitar que corram riscos em suas casas alagadas. Poderia ser considerada a criação de uma base flutuante para atender a essas populações. Muitas comunidades remotas precisam viajar de barco por dois ou três dias para acessar um mercado. Portanto, é essencial desenvolver métodos eficientes para a distribuição de alimentos", defende Ayan Fleischmann, do Instituto Mamirauá.
Pesquisadores irão monitorar botos após mortandade na seca
Fleischmann esteve na linha de frente no socorro aos botos, que sofreram altas taxas de mortalidade depois que a água atingiu os 40ºC. Ele contabilizou 219 mortos no lago Tefé e 122 no lago Coari, um total de 341 mortes.
"O Instituto Mamirauá planeja realizar um monitoramento ambiental para entender como os animais se comportarão na próxima seca. Entre as medidas estudadas, estão o isolamento de partes do lago para preservar os botos e o treinamento de resgate de animais, caso venha a ser necessário", disse Ayan Fleischmann.
Edição: Nicolau Soares