Conciliar a maternidade com a carreira acadêmica deveria ser um direito assegurado para mulheres que assim desejam. É o que defende a antropóloga Rosa Carneiro, docente da Universidade de Brasília (UnB) e mãe de duas crianças pequenas. A realidade, porém, mostra como mulheres pesquisadoras são sistematicamente penalizadas por essa escolha: desde a ausência de creches nas universidades até a invisibilidade da condição nos editais de fomento.
Em entrevista ao Brasil de Fato, a pesquisadora que integra a Rede Transnacional de pesquisas sobre Maternidades destituídas, violadas e violentadas (REMA) conta como a divisão sexual do trabalho de cuidado afeta a qualidade do tempo que pesquisadoras têm para se dedicar à produção acadêmica.
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"Já produzi muito na parte da noite enquanto os meninos estavam dormindo, mas hoje eu não faço mais. Acho que compromete muito a saúde física, emocional e a capacidade de reflexão de nós mulheres pesquisadoras, porque chega um momento que você não vai conseguir produzir da maneira como você precisa produzir", relata Rosa Carneiro.
Nas últimas semanas, a divulgação do resultado do edital de Produtividade de Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) trouxe para o debate público a desigualdade de gênero. Ao justificar a negativa a uma proposta apresentada pela pesquisadora e professora da Universidade Federal do ABC (UFABC), Maria Caramez Carlotto, o órgão afirmou que "as gestações [provavelmente] atrapalharam essas iniciativas [pós-doutorado no exterior], o que poderá ser compensado no futuro".
Segundo dados levantados pelo projeto Parent in Science no último ano, as mulheres representam apenas 35,6% do total de bolsistas dessa modalidade, que contempla pesquisadores e pesquisadoras que se destacam na sua área de conhecimento.
Após a repercussão do caso e a divulgação de outros pareceres semelhantes emitidos pelo CNPq a mães pesquisadoras nas redes sociais e na imprensa, o órgão lamentou o caráter discriminatório dos resultados e anunciou que mães pesquisadoras terão extensão de dois anos no prazo de avaliação da sua produtividade científica. A mudança é um passo na direção de quebrar o silêncio da maternidade no ambiente acadêmico na avaliação de Rosa Carneiro.
"Nunca a condição de que aquela mulher seja mãe é considerada. Então se exige a todo tempo uma igualdade. A igualdade da produção, a igualdade da ocupação de cargos, a igualdade na representação, mas é impossível. Ao mesmo tempo existe um silêncio como se as mulheres não pudessem trazer para a vida universitária essa dimensão da vida", completa.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato: Quais os obstáculos que marcam a trajetória das pesquisadoras que são ou se tornam mães ao longo da carreira?
Rosa Carneiro: São muitos os obstáculos e de distintas ordens. A gente não tem editais de fomento, para programas de mestrado de doutorado, que particularizam a condição de pesquisadoras mães e que podem ter a sua produção afetada por conta do trabalho reprodutivo e do trabalho de cuidado. Então mesmo para o ingresso na pós-graduação a gente não tem esse olhar diferenciado. A mesma coisa para o prazo de conclusão de um mestrado ou de um doutorado.
Se aquela pesquisadora materna, se ela cuida de alguém, a produtividade dela é afetada. A gente não tem a mesma qualidade de tempo, do silêncio para reflexão. E pode parecer uma coisa pequena, mas o silêncio e a capacidade de pensar, produzir, pesquisar, refletir em silêncio, é muito preciosa para quem faz pesquisa.
O trabalho acadêmico e científico de mulheres mães é sempre interrompido pelas crianças e pelas suas demandas, que são urgentes da vida.
Com isso, é óbvio que o tempo para a produção, o tempo para escrita, o tempo para pesquisa, o tempo para publicação, é muito menor. Mas isso não é considerado nos editais para ingresso na pós-graduação. Se a gente olhar para a permanência dessas pesquisadoras mães nas universidades e para critérios de progressão [de carreira], a gente também vê como isso é afetado.
Uma série de pesquisadores são pais, mas via de regra contam com mulheres em casa para cuidar dos seus filhos. Durante o período da pandemia, pesquisas mostravam que mesmo os dois ocupando o ambiente doméstico, quem assumia mais as tarefas de cuidado eram as mulheres. A divisão sexual do trabalho sempre se instalava.
Ao mesmo tempo, a gente tem uma exigência de que essas mulheres ocupem espaços de gestão, ou seja, chefia em departamentos, colegiados, cursos, quando na verdade elas têm um tempo muito mais reduzido e isso gera uma imensa sobrecarga.
Pesquisadoras mães são cobradas a terem o mesmo desempenho dos homens?
Nunca a condição de que aquela mulher seja mãe é considerada. Então se exige a todo tempo uma igualdade. A igualdade da produção, a igualdade da ocupação de cargos, a igualdade na representação, mas é impossível. Ao mesmo tempo existe um silêncio como se as mulheres não pudessem trazer para a vida universitária essa dimensão da vida.
Acho que os feminismos têm que refletir muito sobre isso. Há muito tempo a gente fala que o pessoal é político. Por que nesse ambiente de trabalho a gente não consegue pautar que esse pessoal é político e que ele tem que gerar políticas de proteção a essas mulheres?
Então se espera sim que a gente tenha a mesma produção que os homens.
E eu nunca vi nenhum concurso, nem em concorrência para pesquisador, algo que reconheça uma diferença de pesquisadoras ou de docentes mães. E, pelo visto, se espera ou se esperava isso também na distribuição das bolsas produtividade do CNPq.
A pedra no sapato, segundo aqueles pareceres horrorosos, são na verdade um imenso trabalho que as mulheres realizam fora da universidade, mas também junto dela, que é o trabalho de sustentabilidade da vida.
Se nós não exercêssemos o trabalho do cuidado, não haveria nem universidade, nem quem frequentar a universidade porque não haveria vida. Acho que essa é uma reflexão importante.
A desigualdade de gênero é definidora do conceito de excelência para a academia?
É muito importante a gente pensar no tempo que essas mulheres têm para fazer pesquisa. Na Antropologia, por exemplo, a gente faz pesquisa de campo. A gente sai de onde a gente vive e faz pesquisa intensiva, passa a viver em contextos, às vezes, muito diferentes dos quais a gente vive.
Como que uma mulher que é mãe, uma pesquisadora que materna, consegue fazer trabalho de campo?
Como é que a escrita dela é impactada, para a produção dos seus resultados? Tem as pesquisadoras de bancada. Ou seja, que precisam ficar muitas horas envolvidas em laboratórios. Como a pesquisa delas caminha se nesse meio tempo tem crianças que adoecem, horários reduzidos de creche e escolas? Além de toda demanda afetiva emocional e de asseio, cuidar da comida, lavar, passar. Então muda muita coisa.
Como fica o trabalho das pesquisadoras mães nesse contexto?
Um grupo de pesquisadoras que faço parte tem pensado muito em propor um grupo que pauta parentalidade dentro da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). A nossa ideia é discutir como a nossa produção científica é extremamente alterada.
Eu já produzi muito a noite enquanto os meninos estavam dormindo, mas hoje eu não faço mais.
Acho que compromete muito a saúde física, emocional e a capacidade de reflexão de nós mulheres pesquisadoras, porque chega um momento que você não vai conseguir produzir da maneira como você precisa produzir.
Tenho um filho de 8 anos e um filho de 4 anos. Acho que a minha carreira nesse momento pede que eu faça uma internacionalização das minhas investidas de campo. Mas como é que eu saio do Brasil ou vou para outros contextos com duas crianças e sem bolsa?
As bolsas não reconhecem que a gente tem filhos pequenos ou adolescentes que precisam estudar. O auxílio creche nas universidades federais é de R$ 321. A imensa maioria das universidades brasileiras não têm creche. Então como é que uma mulher consegue pesquisar se ela não tem nem onde deixar os filhos?
Eu tenho muitos planos, projetos de pesquisa, que tenho certeza que seriam maravilhosos, mas eu tenho sempre que pensar qual é o tamanho do passo que eu consigo dar para também não comprometer a minha logística familiar. Até mesmo porque eu quero estar nesse momento da vida dos meus filhos, maternando da maneira que eu acredito.
O importante é que a gente tenha esse direito, de querer maternar com atenção. E esse direito nosso precisa ser resguardado, ele precisa ser protegido e não só pelas crianças, mas também pelos nossos desejos, de nós mulheres pesquisadoras e mães.
Que iniciativas e políticas públicas podem ser adotadas para incentivar e acolher a maternidade no ambiente científico e acadêmico?
Creches nas universidades é ponto básico, e em horário estendido, inclusive espaços de contraturno, à noite, por exemplo, porque a gente tem pesquisadoras mães que trabalham e que fazem pesquisa à noite.
É um horário que você não tem nem como nem como contar com uma creche paga. Além das creches para todas essas mulheres, editais específicos que prevejam uma diferenciação na pontuação para essa ampla concorrência tanto para pós-graduação como para editais do CNPq. Que a contabilidade da produção e do tempo de produção para mulheres que são mães seja diferenciada por conta do reconhecimento do trabalho de cuidado.
Por que não editais específicos para essas mulheres? Para que elas tenham mais esse incentivo, bolsas de pesquisa, que também sejam na verdade bolsas famílias, que possibilitem que essas mulheres possam trabalhar e que façam seus deslocamentos de trabalho com crianças.
Acho que institucionalmente e administrativamente a universidade também tem que pensar que aquela mulher em muitos momentos não pode assumir a gestão por conta de uma sobrecarga de trabalho que ela já tem dentro de casa. São uma série de políticas que pensem a permanência dessas estudantes desde apoio até estrutura.
Quais avanços ocorreram nesse sentido?
Hoje na Universidade de Brasília (UnB), por exemplo, a gente tem um grupo que está gestando uma política materna para as mulheres da comunidade universitária e que vai refletir sobre editais, permanência, ensino a distância, acesso, em muitas frentes. São muitas frentes, desde infraestrutura até editais, apoio psíquico emocional, e de outras ordens.
Tivemos recentemente a dilatação dos prazos de mestrado e doutorado para pesquisadoras mães.
Mas essa é uma portaria de ontem, do final de 2023, por conta do que a gente viveu no CNPq. Agora vai ser considerado dois anos a mais no caso das mulheres para a contabilidade da produção científica.
A legislação que prevê o ensino à distância não é de agora, ela é de muito tempo atrás, mas ela não é efetiva. Precisa de acompanhamento. Então são pouquíssimas as iniciativas. Institucionalmente são pífias as atitudes que a gente tem.
Vale dizer que atualmente a gente está gestando a Política Nacional de Cuidados, dentro do Ministério do Desenvolvimento Social. Eu me pergunto onde é que essa reflexão vai entrar. Sobre as pesquisadoras, docentes, estudantes que são mães e o contexto de produção delas, como produzem, a qualidade esperada, qual a métrica, como isso pode ser comparado ou não ao produzido por homens.
Edição: Mariana Pitasse