A característica histórica do apartheid carioca continua se perpetuando até os tempos atuais
Por Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro* e Marcelo Gomes Ribeiro**
A Região Metropolitana do Rio de Janeiro pode ser considerada a metrópole do apartheid cordial. Apartheid pelas profundas e duradouras separações hierárquicas entre as classes sociais no território e pelas suas consequências no destino social dos indivíduos, na medida em que distribui desigualmente as condições de acesso à renda, ao bem-estar e às oportunidades.
Mas também pelos distintos padrões de relação das instituições sociais com os territórios populares e com os enclaves fortificados das elites. É cordial por tal separação se estabelecer por um duplo regime de segregação residencial – físico e social –, que se apoia em um sutil jogo de sociabilidade que camufla o apartheid, fato que nos lembra o famoso livro de Sérgio Buarque de Holanda, chamado "Raízes do Brasil" (Companhia das Letras, 1996).
Este regime foi historicamente caracterizado pelo duplo padrão territorial de separação social: centro-periferia e favela-não favela.
O primeiro diz respeito à correspondência entre distância física e distância social, tendo em vista que, em geral, as pessoas que ocupam as posições mais inferiores da estrutura social tendem a residir nas áreas periféricas da metrópole e vice-versa. O segundo padrão – favela-não favela – é caracterizado pela proximidade física e distância social, pois parte da localização das favelas se concentra no município-capital e em suas áreas mais nobres.
Apesar disso, as interações sociais entre os diferentes grupos sociais – quando há – são marcadas por relações de dominação e subordinação. A imagem-ícone que retrata esse fato é a da moradora de favela empregada doméstica nas residências da Zona Sul carioca.
Essa característica histórica do apartheid carioca continua se perpetuando até os tempos atuais. Os dados mais recentes que nos permitem realizar uma análise intraurbana das condições sociais no espaço da metrópole são os provenientes do censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010. Passados mais de 13 anos de sua realização, não parece ter ocorrido nenhuma transformação na metrópole do Rio de Janeiro que possa ter modificado essa realidade radicalmente.
A renda é uma das dimensões sociais importantes para a análise das diferenças de condições sociais na metrópole.
Em valores monetários atualizados (dados do IPCA/IBGE, para novembro de 2023, a partir da Calculadora do Cidadão do Banco Central do Brasil), nas áreas do tipo superior (referente à tipologia socioespacial elaborada pelo Observatório das Metrópoles para análise da organização social do território metropolitano) – onde se concentram relativamente os grupos sociais que ocupam o topo da estrutura social –, a mediana do rendimento domiciliar per capita era de R$ 7.578,41.
Nas áreas do tipo popular – onde se concentram relativamente os grupos sociais que ocupam a base da estrutura social, que em geral estão na periferia metropolitana –, a medida do rendimento domiciliar per capita era de R$ 757,84. Em algumas das favelas possíveis de serem identificadas na base do censo demográfico – Rocinha, Alemão, Jacarezinho e Maré –, esse mesmo rendimento era de R$ 755,84. Portanto, a mediana do rendimento domiciliar per capita era 10 vezes maior nas áreas do tipo superior (áreas nobres da metrópole) do que nas áreas periféricas e nas favelas.
Em relação à escolaridade, quando se considera as pessoas que não tinham completado o ensino médio, observamos que no ano do levantamento censitário havia 15,9% de pessoas de 25 anos ou mais de idade nessa condição nas áreas do tipo superior da metrópole. Nas áreas populares, essa proporção correspondia a 70,7%. Quando consideramos aquelas áreas das favelas mencionadas acima, a proporção de pessoas sem o ensino médio completo chegou a 76%. Ou seja, tanto na periferia quanto nas favelas a proporção de pessoas sem o ensino médio completo, mas em idade de ter completado o seu processo de escolarização, ultrapassou dois terços da população, número muito mais elevado do que o verificado nas áreas mais nobres da metrópole.
Importante ressaltar que a dimensão racial é mais uma expressão da segregação residencial metropolitana.
Nas áreas do tipo superior da metrópole do Rio de Janeiro, residiam apenas 13,1% de pessoas negras (pretas + pardas), ou seja, essas áreas eram caracterizadas pela concentração de pessoas brancas. Nas áreas do tipo popular e naquelas de favela, a proporção de negros correspondia a 62%. Havia, portanto, nitidamente uma segmentação racial na metrópole do Rio de Janeiro.
Os padrões de segregação residencial não apenas têm se perpetuado como também têm contribuído para a reprodução das desigualdades de oportunidades. Em trabalho anterior, publicado em formato do artigo "Segregação socioespacial e desigualdades de renda da classe popular na metrópole do Rio de Janeiro", quando analisamos o efeito do local de residência das pessoas de classe popular sobre o nível de rendimento obtido no mercado de trabalho, constatamos que o território se constitui como variável ativa na reprodução das desigualdades sociais, independente dos atributos dos indivíduos.
Quanto maior a proporção de pessoas que realizavam deslocamento casa-trabalho acima de 1 hora, menor era o nível de rendimento do trabalho; e quanto maior a concentração de pessoas pretas nas áreas de moradia, ou quanto menor era a concentração de pessoas com ensino superior, menor era o nível de renda.
Esses resultados apontam para a existência de barreiras materiais e simbólicas no espaço metropolitano que, por um lado, favorecem as pessoas residentes em áreas de melhor localização e, por outro lado, constrangem aquelas que residem em áreas da periferia metropolitana ou de favelas. As barreiras materiais dizem respeito às condições de mobilidade e acessibilidade existentes na metrópole, tendo em vista a sua infraestrutura, a qualidade dos transportes públicos e, também, o custo do seu deslocamento.
As barreiras simbólicas decorrem da ausência de laços sociais que poderiam favorecer a obtenção de recursos – como a informação, por exemplo – e o acesso a melhores oportunidades no mercado de trabalho. Essas barreiras simbólicas também se manifestam por meio de mecanismos de discriminação territorial baseados na raça, pois morar em áreas de alta concentração de pessoas pretas contribui para a obtenção de menor remuneração no mercado de trabalho, mesmo a pessoa não sendo preta, em relação às pessoas que moram em áreas de baixa concentração de pessoas pretas.
Outros estudos realizados pelo Observatório das Metrópoles, como os compilados no livro "Desigualdades urbanas, Desigualdades escolares" (Letra capital, 2010), mostraram que crianças moradoras de favelas que cursavam a 4ª série no ensino público tinham 24% de risco de atraso escolar se comparadas com aquelas com características individuais e familiares semelhantes, mas habitando em outros espaços da cidade.
O que vimos é que as periferias metropolitanas e as áreas de favelas, além de concentrarem as pessoas que apresentam, em média, as condições sociais mais precárias na metrópole do Rio de Janeiro e a maior concentração de pessoas negras, são as áreas que também se caracterizam por maior desvantagem social. Essas desvantagens se referem às menores chances de acesso às melhores oportunidades sociais, como aos empregos de melhor remuneração no mercado de trabalho ou aos menores riscos de atraso escolar de crianças. Isso significa que a perpetuação dos padrões de segregação residencial na metrópole do Rio de Janeiro contribui para a reprodução das desigualdades sociais. A reprodução das desigualdades se dá pela perpetuação desse padrão de segregação residencial. Um círculo vicioso que dificilmente se romperá espontaneamente.
A dificuldade de rompimento espontâneo desse padrão de segregação residencial, cujo caráter denominamos de apartheid cordial, também decorre por ele se expressar na dualidade da capacidade política dos territórios separados.
Nos enclaves fortificados ou nas áreas nobres da metrópole a concentração territorial coesiona social e politicamente aqueles já poderosos, enquanto que nos territórios populares – periferias e favelas – a concentração fragmenta os já fragilizados, tornando muito desigual a disputa do acesso à renda, ao bem-estar e às oportunidades que a metrópole distribui por meio do mercado ou das políticas públicas.
Como reivindicar nas eleições de 2024 uma política urbana desenhada para promover a justiça social na RMRJ que enfrente o apartheid cordial e os seus mecanismos de reprodução das desigualdades sociais? Ela deve garantir que todas as pessoas tenham acesso igual a oportunidades, serviços e recursos necessários para uma vida digna.
*Professor Titular do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ) e coordenador Nacional do INCT Observatório das Metrópoles.
**Professor Adjunto do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ) e coordenador do Núcleo Rio de Janeiro do INCT Observatório das Metrópoles.
Edição: Mariana Pitasse