Ex-procurador do estado do Rio Grande do Sul, Jacques Távora Alfonsin é advogado das grandes causas populares. Em 1995, fundou a ONG Acesso – Cidadania e Direitos Humanos. Desde então, defende os direitos de grupos tradicionalmente excluídos, como os sem terra, os sem teto e as vítimas de violência no campo e na cidade.
Alfonsin foi entrevistado no podcast De Fato, onde falou sobre ética e respeito ao próximo e criticou a privatização de Porto Alegre, obra conjunta do poder público municipal e dos grandes interesses imobiliários.
Confira os principais trechos da entrevista:
Brasil de Fato RS: Vou começar perguntando não sobre direito à moradia, direito à terra e outras atribuições do Jacques ao longo da sua carreira de advogado. Vou falar com o Jacques igrejeiro, que ele é um homem da linha de frente da luta social via Teologia da Libertação. Então, recentemente, houve uma manifestação do padre Júlio Lancellotti muito interessante. Perguntado pelo [apresentador] Chico Pinheiro na TV do ICL sobre o Natal, o padre Júlio disse que Jesus Cristo não estaria "nessas luzinhas todas que se veem pela cidade" e que, se retornasse à Terra, retornaria na Cracolândia. O que poderia dizer sobre isso?
Jacques Alfonsin: Que pergunta oportuna! Me dá chance de mostrar como é atual a realidade do aniversariante que se comemora no Natal e que é tão pouco lembrado. Vou relembrar um fato da minha atividade profissional que está muito na linha do que o padre Lancellotti falou.
No fim da década de 1970, início de 1980, um irmão marista, Antônio Cecchin, que tinha sido meu professor e que me conhecia como advogado, procurador do estado e tal, me pediu para estar presente numa reunião que ele estava preparando em uma ocupação de 42 hectares em Canoas, hoje Vila União dos Operários. Mas o que aconteceu nessa reunião? Cecchin convidou o pessoal a meditar sobre o nascimento de Jesus Cristo, aquela dificuldade toda, chegou o José montado, tirou Nossa Senhora do lombo do burro e levou para a cocheira, a manjedoura, mais ou menos como a Cracolândia do padre Lancellotti. E a criança nascida nas piores condições.
Cecchin tinha o costume de convidar para comentar o que tinha sido aquela palavra mas, com a timidez do povo, ninguém queria se manifestar. Até que, lá no fundo da sala, levantou-se uma pessoa que mudou toda a minha vida de advogado. Era um negro, justamente um oprimido, e disse o seguinte: “Eles também não tinham teto”, referindo-se a José, Maria e a criança. Vejam a atualidade dessa manifestação do padre Lancellotti e desse negro lá no fim da década de 1970. O Natal ficou de tal forma deturpado que a gente não se dá conta que aquele que é considerado, e inclusive pela igreja Católica, pelos cristãos em geral, como um Deus, nasceu sem teto.
E é interessante você trazer toda essa história porque a sua vida como advogado é uma vida de militância em defesa dos pobres...
Comecei a ver o quanto a lei tinha obrigado José e Maria, ela grávida, a ir para lá. Havia um recenseamento, o império romano queria saber sobre tanta gente, mandava esse poder político. Então, a lei, ela mesma, é a responsável pela opressão do povo. Isso me inspirou para o resto da vida.
Na época, era o império romano, hoje é outro império...
Exatamente, isso também me leva a mostrar em grande parte como a Renap (Rede Nacional de Advogados Populares), a Acesso (a entidade na qual atua) e todas essas muitas ONGs que defendem direitos humanos refletem isso. Uma espécie de questionamento da própria lei, enquanto manifestação de um poder de opressão do povo e não de libertação como a Teologia da Libertação procura resgatar. Morreu, meses atrás, o Franz Hinkelammert, um pensador que conviveu com (o arcebispo) Oscar Romero na reação à ditadura de El Salvador, conviveu com (o pensador espanhol) Jon Sobrino, e outros teólogos da libertação, e escreveu um livro extraordinariamente provocativo, A Maldição que Pesa Sobre a Lei. Nele, explora o pensamento do Marx. Imagina que ele vê Marx inspirado por São Paulo! Isto porque, nas epístolas aos Romanos e aos Gálatas, São Paulo ataca de frente quem elabora as leis, desde sua vigência até os seus trágicos efeitos. Como acontece, por exemplo, quando há uma reintegração de posse de gente que não teve como se colocar em outro lugar.
Ele disse o seguinte: Como Marx interpreta a lei? Como a lei contempla a realidade? Contempla como um espelho, quer ser um espelho da realidade. Então, se você se coloca diante do espelho, você que está pobre, que está sem teto, que está sem trabalho, que está sem terra, você levanta a mão direita o espelho está levantando a esquerda. Ou seja, passa a ser o principal motivo de decisão do drama que você está vivendo. Não a sua pobreza, não a sua situação, não um homem hostilizado, humilhado, uma mulher necessitada, mas sim a lei. Serve de álibi para a opressão continuar. Ao lado de Franz Hinkelammert, tivemos outra morte, a do Enrique Dussel, um homem que teve que se exilar. Na época do regime militar na Argentina, atiraram uma bomba na frente da casa dele e ele teve que se exilar no México e fez uma grande obra, suas dez teses sobre política…
Já que estamos nessas reflexões sobre a vida, a tua vida no caso, queria que tentasses lembrar qual foi, na defesa dos sem-teto e da defesa dos sem-terra, qual foi o momento da tua vida mais marcante, mais comovente?
No julgamento daquela reintegração de posse em Canoas, perdemos no tribunal. Tínhamos conseguido uma coisa rara nas ações possessórias. Tínhamos conseguido eliminar a liminar. Foi uma solução muito boa para o povo. Perdemos por 2 a 1 na câmara (do tribunal). O voto vencido foi do desembargador Antônio Augusto Fernandes. Era um homem já de bastante idade, e disse assim: "Olha, gente, eu não estou muito convencido que vocês têm que sair de lá, ainda mais numa época (de Natal) como essa. Vamos discutir melhor". Esse voto serviu de base para um recurso que reunia as três câmaras, cada qual com três desembargadores.
Durante a sustentação oral, não me contive, fiquei muito emocionado com a defesa que estava fazendo. O certo era que estávamos perdendo por 3 x 1 nas três câmaras. Se o próximo voto fosse contra nós, teríamos que sair. Mas o próximo voto mudou praticamente o rumo do julgamento. O desembargador era José Maria Rosa Tesheiner, um antigo procurador do estado. Ele fez uma análise do quanto os julgamentos sofrem por ficarem mais presos à lei do que à justiça. Fez um comentário extraordinariamente duro sobre isso, tanto que os votos seguintes, todos eles, foram a nosso favor. Ganhamos por 5 x 4. Quando o povo saiu das galerias e entrou no ônibus para voltar para Canoas, aquilo foi uma coisa fora do comum.
Foi uma vitória. Mas tive outras coisas muito duras. Por exemplo, estive no velório do (agricultor sem terra) Elton Brum da Silva, em 2009, um homem que foi morto pelas costas por um brigadiano. Portanto, pelo poder oficial, o poder de morte que o poder público tem de eliminar a vida. Foi um momento de muita dor.
Jacques, o que está acontecendo com Porto Alegre?
Porto Alegre talvez nunca na sua história tenha nos chamado tanto a atenção para a falta de respeito do direito à cidade, uma coisa que a nossa Constituição de 1988 introduziu por construção popular. O que é esse direito à cidade? Temos várias maneiras de contemplar o povo da cidade nas suas muitas dificuldades, na falta de serviço público, de água, de energia, de transporte, de segurança, de tudo aquilo que é direito humano fundamental. Então, o direito à cidade não deixa de ser o conjunto desses direitos que toda a doutrina, toda a lei, conhece como indivisíveis. Não posso cuidar da educação sem cuidar da saúde. É uma coisa só e o direito à cidade reúne isso tudo.
Qual é a responsabilidade que hoje existe para rever o Plano Diretor? Deveria ser em primeiríssimo lugar o bem-estar, a convivência desses direitos, as políticas públicas desses direitos humanos fundamentais. E de quem é a responsabilidade pelo caos que a cidade tem e que provoca a necessidade do Plano Diretor? De quem é a responsabilidade? Não pode se negar que é do mercado imobiliário. E ele está presidindo tudo hoje na reforma do Plano Diretor.
Ou seja, a capital se submete ao capital.
É exatamente isso. A inversão de valores é de tal forma, e é de tal forma publicada como uma grande vitória, por aqueles que transformaram a cidade antes num caos, e agora têm que reformar. Vão colocar gasolina no fogo porque vão fazer a mesma coisa. Vão querer aumentar a densidade da ocupação do solo, vão querer transformar a cidade naquilo que é conveniente ao mercado, e não naquilo que é conveniente a quem tem direito de moradia...
Fico pensando como chegamos a isso, uma cidade que foi pioneira nesse debate do direito à cidade, que teve o Orçamento Participativo, teve os grandes Fóruns Sociais Mundiais, teve uma efervescência cultural muito grande...
Agora vamos entrar num campo difícil, porque é o campo da nossa responsabilidade, a gente chora muito a injustiça sofrida, mas também temos as nossas dificuldades em assumir as nossas responsabilidades. Isso me dá chance de explorar um outro teólogo da libertação na linha de igrejeiro. Vou me referir a Inácio Ellacuria, um jesuíta e reitor da Universidade Centroamericana, da UCA, em El Salvador. Ele foi assassinado com mais quatro jesuítas, na mesma época em que Dom Oscar Romero também foi assassinado.
Era um grupo de teólogos que estudava a guerrilha, como enfrentar o regime opressor de então. Ele dizia que, em cada fenômeno político, jurídico, de exercício de poder e tal, temos que examinar três coisas com muito cuidado: a realidade, a responsabilidade e os encargos que essa responsabilidade nos traz.
O segundo ponto para mim foi fundamental: responsabilizar-se pela realidade. Somos responsáveis por isso. Na medida em que o caos se estabelece, temos que pensar o que estamos fazendo para eliminar esse caos. Às vezes, uma liderança sobe em um tamborete, entusiasmada, e faz um libelo contra a injustiça social mas não aponta um gesto de enfrentamento, uma proposta concreta. Responsabilizar-se pela realidade tem o sentido de mostrar que o interesse próprio desaparece em favor do coletivo.
Esta submissão, na verdade o mercado vai capturando as estruturas públicas, vai capturando a cidade e transformando todos os direitos em mercadoria. Ou seja, o direito de ir e vir é mercadoria, o direito de viver é mercadoria, tudo vira mercadoria. Mas isso de certa forma não é alimentado também por uma questão de que as pessoas vão se individualizando a partir da relação de trabalho individualista, a partir da uberização do trabalho, do empreendedorismo de si mesmo, toda uma cultura que vai se criando? Uma educação competitiva que gera competidores é um processo complicado de superar?
Terra, teto e trabalho, esses três Ts que o Papa tanto fala, o acesso a esses três Ts, está na base disso tudo. O poder do mercado é muito superior ao nosso, mas esse responsabilizar-se pela realidade é nosso. Nós é que temos que nos mexer. E é preciso muita esperança e coragem para isso. O número de derrotas que se sofre... o Judiciário, por exemplo. A decisão judicial que transformou aquele belo Parque da Harmonia que tínhamos ali naquele deserto... Trocaram o canto dos passarinhos por sons tão estridentes que agora os vizinhos estão reagindo. Moradores estão entrando com ações contra os sons. O doutor (biólogo) Paulo Brack detectou oito espécies de passarinhos raras que cantavam no Harmonia.
Lembro do movimento contra a venda do Morro Santa Teresa no governo Yeda Crusius, a Acesso inclusive teve uma grande atuação. E, ali, foi a organização do povo que impediu a venda...
A Yeda foi obrigada. Aí está o direito achado na rua. Ela foi obrigada a retirar da Assembleia Legislativa o projeto de alienação da área tal a pressão que houve. O povo pegou nas mãos o seu destino. Havia até projetos do condomínio, de várias torres lá para cima, uma série de coisas de uma posse que vinha desde 1938. Tinha gente morando lá, descendentes, gente que se criou lá. Tive foi a honra de ter feito parte da mobilização mas fomos meros coroinhas. Eles (o povo) foram os sacerdotes daquela missa do morro.
Eles tiveram uma derrota boa no negócio do estacionamento debaixo da Redenção
Estamos no verão e às voltas com o velho problema de Porto Alegre, que é a falta d’água assessorada pela falta de luz. Com um calorão de 40 graus, em bairros como a Lomba do Pinheiro, o pessoal ficou sem água, que é um negócio completamente absurdo. Fica mais absurdo ainda, porque o ex-diretor do Dmae, Guilherme Barbosa, observou que o Dmaeou a prefeitura tem R$ 400 milhões aplicados nos bancos. O dinheiro que deveria bancar as obras que não foram feitas. Como uma prefeitura que vive de prestar um serviço, resolve se tornar mais um elemento do mercado financeiro?
Por isso digo que o direito à cidade, a esse bem-estar da população, não é prioridade. Quem dessas grandes empresas não quer participar de um leilão de um órgão público como o Dmae? Então, aquela mística que o direito à cidade inspira, a teologia da libertação sublinha muito isso, é colocada em terceiríssimo plano. Primeiro fica, eu estou aqui na administração pública, mas na realidade eu estou aqui a serviço do capital, do mercado.
O Caio Lustosa que já foi até secretário do meio ambiente na prefeitura do Tarso Genro disse que os proprietários da cidade transformam tudo. Não há (preocupação) com o bem-estar coletivo, de todo o povo. Houve uma publicação na Zero Hora, tempos atrás, de um defensor desse novo empreendedorismo, mostrando que, quando tudo isso estiver feito, aí vamos nos dar conta de como estávamos atrasados. Quer dizer, o progresso para eles significa justamente aquilo que era sinal de não mercadoria, que era sinal de bem-estar...
Eles tiveram uma derrota boa no negócio do estacionamento debaixo da Redenção. Já considerei uma grande coisa. De vez em quando, eles perdem também.
Como está avaliando a atuação do Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano Ambiental, o CMDUA?
Bah...
Uma expressão que diz tudo... (Risos)
Ali eu tenho muita consideração com a coragem e a competência da Claudete (Simas) que representa lá a nossa entidade, a Acesso. É até humilhada em algumas sessões porque ela é um testemunho vivo de que o conselho não está a serviço do direito à cidade. Está a serviço dessas grandes construtoras.
Há uma sentença judicial, que nunca é citada pela grande mídia, que mostrou que são nulos os atos praticados pelo conselho desde 2020 ou 2021 porque já tinha terminado o mandato dos conselheiros e das conselheiras. Essa sentença mostra como a manipulação - esse é o termo - é feita pela bancada no conselho que faz parte do empresariado e do poder público. A minoria, que é o Instituto dos Arquitetos, a Acesso, a antiga representante da Ufrgs, ficou tão escandalizada com o que estava aparecendo que caiu fora. Não aguentou aquele ambiente de completa manipulação.
Quer dizer que a bancada do mercado e a bancada da prefeitura juntas são o Centrão do negócio?
São o Centrão do conselho. É bem isso aí. Estamos nas mãos de gente com muito poder de destruir, de realmente violar a lei, esse direito à cidade é uma coisa completamente alheia.
Um conselho que é formado para garantir o direito à cidade é proibido de aconselhar porque, na verdade, já tem uma posição firmada de colocar em discussão só aquilo que essa maioria quer. E de dar andamento aos projetos que ela quer. E por mais que haja divergência, como alguns conselheiros manifestam, eles já sabem o resultado final.
A desmoralização dessa última conferência... o desrespeito à democracia era tão grande que saiu um vídeo na internet muito gozado com o prefeito (Sebastião Melo, do MDB) entrando em uma das sessões e o pessoal alcançando para ele uma motosserra. Porque ele fez aquela espécie de concessão para aquela empresa que ganha pelo número de árvores que corta.
Mas esse esvaziamento dos conselhos e dos espaços de participação e de debate faz parte também. Só se consegue esse domínio do capital esvaziando os espaços de participação.
Sim, aí é mais grave. Existe até um projeto de lei de um bolsonarista que quer retirar o poder deliberativo dos conselhos.
Aliás, o caso de Maceió é um exemplo flagrante do desprezo à cidade e ao cidadão...
Gramado também. O professor Rualdo Menegat, da Ufrgs, mostrou um estudo da declividade onde foram construídos aqueles prédios, em cima de um solo vulnerável. Se fossemos enumerar que todos os casos de violação. Vivemos em um estado que tem tudo previsto na Constituição para ser um estado de direito mas não é um estado de justiça e nem é uma democracia.
Está começando o ano, vem aqueles votos de paz e tal. Mas é possível paz sem justiça?
Não. Vou citar um judeu, o (filósofo) Emmanuel Levinas. Ele ficou mais de cinco anos numa prisão nazista durante a guerra. Deveria ter saído de lá com uma sede terrível de vingança mas esse homem diz o seguinte: no humanismo, você é refém do seu próximo. Imagina que revolução existe atrás disso! Ou seja, o seu interesse próprio deve ser precedido pela ética e não pela liberdade. Levinas acha que toda a modernidade se baseou na liberdade e deu nisso aí. Não se baseou no respeito pelo outro.
Estávamos comentando os desastres do Plano Diretor. Desapareceu do Plano Diretor a consciência da alteridade, sobre quem é esse outro, quem é essa outra, quem é essa gente que vai sofrer os efeitos do que está sendo mal feito agora.
Nas últimas décadas, tivemos dois papas bastante conservadores, João Paulo II e Bento XVI. Agora, temos uma espécie de guinada na igreja, mais ou menos lembrando lá o Papa João XXIII, que é o papado do Papa Francisco. Você acha que essa virada é para ficar, uma conquista dos mais fragilizados dentro da igreja? Ou isso muda com a ascensão do próximo Papa?
O modelo de igreja do Papa Francisco é um modelo sinodal. Ou seja, é a capilaridade, é uma igreja em saída como ele diz, vão pra rua, saiam da sacristia. O (padre Júlio) Lancellotti é um exemplo disso.
Dentro da igreja, na primeira ascensão do sínodo, a principal oposição foi do clero, que não está gostando nada disso. Então, não sei se ele vai conseguir. Lamento, pois ele está doente e acho que tem pouco tempo pela frente. Ele já disse que, se não puder trabalhar, cai fora, faz como o Bento fez. O Bento teve essa grandeza de ver que não dava mais do jeito em que estava.
Assista ao podcast De Fato na íntegra:
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Marcelo Ferreira