O início de 2024 marca um ano dos atentados contra prédios públicos em Brasília, que causaram milhões em perdas e escancararam a radicalização do movimento em favor do ex-presidente da República, Jair Bolsonaro (PL). Em 8 de janeiro do ano passado, milhares de pessoas foram até a Praça dos Três Poderes, invadiram as sedes do executivo, do legislativo e do judiciário e destruíram tudo o que viram pela frente.
Embora recente, o acontecimento já pode ser considerado um fato histórico. Situado mais de três décadas após a ditadura militar e em um mundo em que tendências extremistas se proliferam, o ataque à democracia brasileira expõe uma tendência perigosa ao fascismo.
Segundo a historiadora da Universidade de Brasília (UNB) e professora Giulia Bacarin, o movimento se inspirou em ações internacionais que seguem o mesmo caminho: “Parecia inimaginável e, na verdade, foi a primeira vez que tivemos algo do tipo acontecendo no Brasil. Já tivemos protestos nas sedes dos poderes, mas a forma que aconteceu - tentar destruir, ter o intuito de fechar e feito por civis, claro que com apoio de setores militares – isso é inédito no Brasil. Talvez nem todas as pessoas que estavam lá tenham essa noção, mas são características na escalada de regimes fascistas.”
Descontente com a vitória do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas eleições de outubro de 2023, o grupo defendia um golpe para que Bolsonaro, derrotado nas urnas, voltasse ao poder.
Entre as pautas golpistas destacavam-se pedidos de apoio das forças armadas. O discurso era baseado principalmente nas afirmações falsas de que as urnas eletrônicas não eram seguras, propagadas pelo ex-presidente insistentemente desde o início do mandato dele.
O historiador Francisco Carlos Teixeira da Silva afirma que o discurso de Bolsonaro teve impacto direto na radicalização do grupo que o apoiava.
Teixeira, que é ex-professor titular aposentado de História Moderna e Contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professor visitante de Teoria Social da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e professor emérito do programa de pós-graduação em Ciências Militares da ECEME/Ministério da Defesa, escreveu o livro Como (não) fazer um golpe de estado no Brasil: uma história interna do 8 de janeiro de 2023.
“É um processo histórico, porque na verdade, o 8 de janeiro não foi um raio em céu azul. Ele foi antecedido pelo 7 de setembro de 2021, quando Bolsonaro reuniu multidões, acusou o Supremo Tribunal Federal, disse que não ia obedecer a ordens e decisões do supremo. Depois, no dia 30 de outubro, quando ele não reconheceu o resultado das eleições de 2022. Agora, sabemos que já havia uma minuta de um golpe de estado pronta. Depois, no dia 12 de dezembro, quando houve um ensaio geral do 8 de janeiro, com quebra-quebra em Brasília. Mais do que um fato histórico isolado, é um processo histórico, que já está sendo incorporado à história contemporânea do Brasil”, analisou o pesquisador.
Algumas estimativas indicam que o número de pessoas que passaram pelo ato pode chegar a até 20 mil. Uma parte considerável estava acampada, há mais de dois meses, em frente ao Quartel-General (QG) do Exército na capital federal, local que após as eleições foi tomado por extremistas. No início da tarde de 8 de janeiro, cerca de 4 mil pessoas deixaram o acampamento e foram para a Esplanada dos Ministérios.
Já nas proximidades da Praça dos Três Poderes, alguns confrontos com a polícia foram registrados, mas houve pouco controle da multidão. Pouco antes das 15 horas, o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal foram invadidos. Quase que imediatamente, surgiram questionamentos sobre a atuação das forças de segurança na ação, principalmente sobre o número de agentes e equipamentos envolvidos no controle da manifestação.
O professor Francisco Carlos Teixeira da Silva observa três pilares na tentativa de golpe, uma massa mobilizada com pouco acesso à formação política e tendências a ações violentas, a atuação ineficiente do Governo do Distrito Federal e a inação de órgãos de inteligência do poder público, como a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), o Ministério da Defesa, as Forças Armadas e a guarda presidencial. Ele avalia que ainda é preciso chegar a quem gestou, incentivou ou foi conivente com as invasões.
“O presidente Lula mesmo disse que o Palácio do Planalto não foi invadido, abriram as portas para a destruição do Palácio do Planalto. Mas o que vemos é que só a massa bolsonarista, desinformada, mais violenta e fanática, está sendo punida exemplarmente. Em compensação, aqueles que estavam dentro dos órgãos de prevenção, que não cumpriram seu papel por ação ou inação, essa justiça está desigual”, disse.
O Brasil acompanhou a ação em tempo real. Pela internet, vídeos dos locais eram publicados por pessoas que estavam nos atentados e comemoravam a ação. O grupo depredou e vandalizou as sedes dos três poderes, destruiu obras de arte, equipamentos e materiais de trabalho e registrou tudo. Posteriormente, os vídeos foram usados como provas dos crimes cometidos.
Giulia Bacarin identifica um desapreço pelo processo democrático e pela existência dos três poderes, permeados pelo saudosismo de períodos ditatoriais. Para a historiadora, o Brasil ainda precisar debater, construir memória histórica e superar o período.
“Quando pensamos em como isso acontece, tem a ver com essa memória da ditadura militar, que não foi trabalhada no Brasil. Aqueles que cometeram crimes por parte do estado não foram punidos de forma alguma no Brasil. Na verdade, eles viveram muito bem, até como heróis. Isso se repete no que aconteceu. Como deixamos, por 30 anos, um deputado defender a ditadura e ninguém fez nada”, questiona ela, se referindo a Jair Bolsonaro.
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O cálculo do prejuízo é de cerca de R$ 20 milhões. Somente no Supremo, os danos já custaram mais de R$ 12 milhões. No Planalto e no Congresso Nacional, os gastos estão acima de R$ 4 milhões. Francisco Carlos Teixeira da Silva afirma que o Brasil não pode apagar o 8 de janeiro da memória e deve trabalhar para que o conhecimento sobre o fato influencie na superação de riscos à democracia.
“Hoje, na sociedade brasileira - na política principalmente - existem dois grupos de pessoas. Uns que acham que está na hora de virar a página, de esquecer a questão do golpe, de reconciliação e de que o governo Lula não pode ser marcado por esse assunto. Existem também aqueles que assumem que o golpe exisitiu, foi brutal, estivemos na iminência de ter o afastamento de um presidente. Eu creio que não podemos esquecer isso e que não é possível virar a página de uma história se essa história não está plenamente conhecida e sabida.”
No dia dos ataques, cerca de 400 pessoas foram detidas, segundo informações do Governo do Distrito Federal. Na manhã seguinte, mais 1.2 mil foram levadas pela polícia do acampamento em frente ao QG do exército. Posteriormente, o número total ultrapassou 2 mil. Mais de 100 continuam presas.
Das mais de mil pessoas denunciadas pela Procuradoria Geral da República ao Supremo Tribunal Federal, 30 já foram julgadas e condenadas. Entre os crimes cometidos estão associação criminosa armada; tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito; golpe de Estado; dano qualificado pela violência e grave ameaça e deterioração de patrimônio tombado.
A historiadora Giulia Bacarin afirma que é difícil construir uma cultura antiextremista em um país polarizado. Para ela, a saída é a busca pelo diálogo, não só social, mas político.
“Se juntarmos (em um ato) os representantes dos poderes, que são pessoas politicamente muito distintas entre si, já representa um pluralismo. Para mostrar que o Brasil é de todo mundo e que não existe espaço para o autoritarismo. A busca por igualdade no Brasil precisa convencer a todos e todas. Ela não pode entrar para o imaginário de uma parcela da população como uma injustiça. É preciso agregar todos e todas” finaliza Giulia Bacarin.
Edição: Rebeca Cavalcante