DESPEJOS

'Pela primeira vez houve preocupação com famílias atingidas', avalia desembargador do PR

Fernando Prazeres, do Tribunal de Justiça do Paraná, realizou 200 visitas técnicas em áreas de ocupação desde 2019

Brasil de Fato | Curitiba (PR) |
Prazeres: "Nós estamos tratando de pessoas, nós estamos tratando de dignidade dessas pessoas" - Pedro Carrano

Desembargador Fernando Prazeres, do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR), desde 2019 capitaneou uma experiência, efetiva e contraditória, de mediação de conflitos fundiários no Paraná, no campo e na cidade, situação intensificada a partir de grave crise social da pandemia, quando esses conflitos se acirraram.

O trabalho e as ferramentas da ação da Comissão tornaram-se referência nacional e orientação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para os tribunais de todo o país. Impediu despejos. Não pôde evitar outros que seguem ocorrendo.

A exemplo de entrevista realizada com a Defensoria Pública do Estado, Prazeres coincide que o mecanismo mais importante nesse duro período foi o da visita técnica para conhecer a realidade das comunidades e ter contato com o povo.

No breve intervalo da intensa agenda do desembargador, a entrevista foi realizada no dia 14 de dezembro, como parte do projeto de um livro de reportagem sobre a experiência da Campanha Despejo Zero. Na manhã do mesmo dia, 80 famílias foram despejadas e tiveram casas destruídas, o que também marcou o rumo da conversa.

Brasil de Fato Paraná - Tenho o hábito de iniciar pelo tema mais imediato. A situação de hoje (14), do despejo forçado na ocupação na Prainha, em Pontal do Paraná, mostra toda a expectativa das comunidades que ocuparam no período da pandemia – e a gente acaba vendo o despejo. Como o senhor avalia essa situação, em vista de que foram criadas ferramentas que acabam permitindo um ambiente de mediação, mas há casos que são inevitáveis? Como o senhor dimensionou o episódio de desocupação Prainha em vista do que temos vivido no Paraná e no Brasil nos últimos três anos?

Desembargador Fernando Prazeres - Olha, o caso da Prainha, nós temos que retroceder um pouco no tempo e tentar compreender exatamente, do ponto de vista jurídico, o que aconteceu. Havia um pedido de reintegração de posse feito pelo município, a área ocupada supostamente era pública. E, paralelamente a isso, havia uma ação civil pública proposta pelo Ministério Público contra o prefeito municipal, contra o governador do estado e contra o diretor do Instituto Água e Terra (IAT).

Tanto a ação de reintegração de posse quanto ação civil pública estavam calcadas no mesmo fundamento fático, que seria a ocupação irregular e o prejuízo ou dano ao meio ambiente. Por conta disso, o município pediu a reintegração de posse e o MP pediu não só a reintegração de posse, mas também a demolição das casas que foram construídas local. E a liminar, tanto na ação de reintegração de posse quanto na ação civil pública, foram concedidas.

Na ação civil pública, inclusive, foi imposta multa aos gestores, entenda-se aí o prefeito municipal, governador do estado e o diretor do IAT caso não cumprissem a decisão judicial. E essas decisões, por conta da pandemia e por conta da ADPF 828 (instrumento jurídico que garantiu a não realização de despejos na pandemia), foram suspensas. O processo é retomado. Busca-se o cumprimento dessa decisão judicial.

A comissão é instada a intervir por vários órgãos, inclusive. Inclusive pela Defensoria Pública, a Defensoria pede isso nos autos. E a juíza indefere, disse que não é caso de cumprimento ou de utilização da comissão para esse fim, até porque outras medidas ela tinha sido tomadas. Já tinha sido feita audiência de mediação e a questão não avançou. Não conseguiram uma solução de consenso, mas respeitando os termos de Resolução 510 (do Conselho Nacional de Justiça), se o juiz da causa entende que não é caso de intervenção da comissão, a comissão tem muito pouco o que fazer.

Nós temos que respeitar, a comissão tem que respeitar a decisão judicial e foi o aconteceu nesse caso. A despeito de existir recursos e tudo mais, tal intervenção da comissão não foi autorizada por quem tinha atividade jurisdicional, ou, enfim, quem estava à frente do processo. E, como você falou, tem questões que lamentavelmente, as instâncias de mediação elas não conseguem avançar por uma série de circunstâncias, uma série de obstáculos e nesse caso, o obstáculo foi uma decisão judicial.

Não teria havido apontamento de um plano de realocação para as famílias. Neste e em outros casos. Neste sentido, as ferramentas atuais servem de crítica a eventuais situações em que isso não acontece? Ou seja, para onde vão as famílias?

Veja, esse é um ponto de vista muito particular meu: Em se tratando do despejo de natureza coletiva que atinge um contingente bastante significativo de pessoas, não importa quando aconteceu a invasão e não importa se foi antes ou depois da ADPF 828.

Nós estamos tratando de pessoas, nós estamos tratando de dignidade dessas pessoas. E esse plano de desocupação, como eventual realocação, ou eventual encaminhamento para um local adequado dessas pessoas, que vão sofrer o despejo, deve acontecer em qualquer circunstância. Então, é mais uma lição para nós. A comissão vai ter que discutir esse tipo de situação e ver qual é a melhor abordagem nesses casos que, enfim, que são semelhantes ao que aconteceu na Prainha.

Todo esse período desde o início da pandemia, a própria formação da Comissão de Conflitos Fundiários, que deu ensejo para própria Resolução 510. Toda essa experiência é reconhecida nacionalmente. Na sua percepção, por que do, entre aspas, êxito dessa experiência do Paraná?

Porque, de fato, foi a primeira vez que, na solução dessas causas que envolvem demandas coletivas, houve uma preocupação com com as famílias atingidas. Preocupação no sentido de ouvi-las, entender as circunstâncias dessas ocupações. Procurar saber quem são essas pessoas.

O por quê que elas se submetem a essa situação, muitas vezes, de vulnerabilidade e dignidade, enfim, ocupando espaços totalmente inadequados, procurando entender todo esse contexto. E, a partir daí, começar a construir soluções viáveis que não passassem necessariamente pela reintegração de posse. E, para isso, a gente se viu na contingência de visitar as áreas de conflito. Aí que está o grande diferencial.


Prazeres: "A visita técnica propicia a compreensão desse contexto e, a partir daí, a construção de soluções de consenso" / Valmir Fernandes

A visita técnica da Comissão?

A visita técnica. O grande diferencial é a é a visita técnica. A visita técnica propicia a compreensão desse contexto e, a partir daí, a construção de soluções de consenso. E isso acontece dentro de um âmbito do que nós chamamos de processo estruturante, porque nós chamamos para nos auxiliar na mediação todos os possíveis interessados na solução do problema, ainda que não façam parte da relação processual.

Nós não nos limitamos àquela dicotomia assim, autor e réu. Nós chamamos todos os interessados ou possíveis interessados que, dentro das suas competências institucionais, podem auxiliar na solução do problema. Chama o Ministério Público. Os municípios onde está localizada a área do conflito. IAT, Cohapar, Cohab, o Incra, quando se trata de de ocupações, rurais. E esse modelo criado no Paraná, modelo inédito.

Dá para chamar de inédito?

Sim, era inédito. Como conseguiu resultados expressivos, acabou servindo de modelo para outros estados.

Como o senhor avalia o papel dos movimentos populares nesse contexto todo? Dá para dizer que, inclusive, o reconhecimento da Comissão de Conflitos Fundiários do Paraná se deve a uma particularidade também pelo fato de o Paraná ter movimentos organizados que criaram a Campanha Despejo Zero? Como o senhor vê o papel dos movimentos populares nessa história toda?

Os movimentos sociais são de fundamental importância para os fins da associação. E isso nós identificamos quando começamos a fazer as visitas, porque nós precisávamos de um interlocutor - eu vou colocar aspas aqui na minha expressão - autorizado ou legitimado.

Como são muitas famílias envolvidas, nem sempre é fácil você identificar uma liderança e que possa servir de interlocutor para aquela comunidade como um todo. E os movimentos sociais nesse aspecto acabam servindo de meio de comunicação com essas pessoas.

Você pode me questionar assim, mas eles têm legitimidade para isso? Isso, para mim, na verdade, é uma questão secundária. Se tem ou não tem legitimidade, a partir do momento que o movimento social me dá acesso a esses locais de conflito e eu consigo identificar nos movimentos sociais um, possível, um provável interlocutor, ele me serve para figurar na mesa de mediação.

Então, assim, eu vou pegar dois exemplos. O MST nas ocupações rurais, o Movimento Popular por Moradia (MPM) aqui nas urbanas, entre outros. São exemplos concretos de movimentos sociais já consolidados, já reconhecidos, e que nos tem auxiliado sobremaneira na construção de soluções de consenso. E, veja, não me preocupa, para fins de mediação, como foram construídos esses movimentos e qual o papel deles dentro da comunidade.


Prazeres: "a partir do momento que o movimento social me dá acesso a esses locais de conflito e eu consigo identificar nos movimentos sociais um, possível, um provável interlocutor" / Pedro Carrano

O senhor não entra nas contradições internas de eventual organização ou eventual área? O importante é ter esse canal? É isso?

O importante é a construção do canal. Todo movimento social, como todo organismo social tem lá suas divergências, suas contradições, enfim, as suas ideologias e tal. Mas isso realmente, não digo que não me interessa. Claro que interessa, porque eu tenho estudado movimentos sociais a partir do momento que comecei a trabalhar com eles, mas para fins de mediação é uma questão extremamente secundária. Não vem ao caso a ideologia que professam esses movimentos.

Que reflexões o senhor faz na medida em que o senhor se colocou numa mediação de um dos principais conflitos históricos da formação social brasileira? A questão da terra, seja da terra urbana, seja da terra rural e na medida em que o senhor também se dispôs a dialogar com forças, por exemplo, ir até os locais de área de ocupação, imagino que também, no outro lado, dialogando com eventuais proprietários das áreas. Uma mediação difícil, né? O senhor foi muito pressionado nesse período? Que reflexão o senhor faz sobre esse papel de mediar um conflito de classes, não resolvido, da sociedade brasileira?

No início dos trabalhos da Comissão, quando existia só no âmbito do Tribunal de Justiça do Paraná, nós sofremos alguma incompreensão do alcance das nossas atividades. Muito se falou em proteção àquele que invadia terras privadas ou públicas. Muito se falou em em postergação dos processos. Mas a realidade que nós encontramos era muito diferente disso.

Nós começamos a trabalhar processos que tramitavam a 10, 15, 20, 25 anos dentro do Judiciário sem uma solução efetiva. A partir daí, conversando com os movimentos sociais, conversando com os ocupantes, com os possíveis interessados, com os proprietários. Inclusive nós demos palestra para a Sociedade Rural lá em Cascavel para explicar o alcance do nosso trabalho...

Sociedade Rural do Oeste? (SRO – conhecido braço organizador do agronegócio no Oeste do Paraná, com histórico de criminalização dos movimentos populares – nota do entrevistador)

Isso. Sociedade Rural do Oeste. Fizemos um encontro com eles em Cascavel até para explicar o alcance da nossa atividade. Porque nessas áreas de conflito - eu vou pegar um exemplo aqui que eu acho que todos conhecem, que é a área de Pinhão (região centro do Paraná), por exemplo, Pinhão, não consegue prosperar do ponto de vista socioeconômico por conta dos conflitos fundiários.

É a partir do momento que nós conseguimos equacionar os problemas desses conflitos, a prosperidade da comunidade ou da sociedade envolvida como um todo é um corolário lógico, né? Isso vai acontecer obrigatoriamente. Você, superando o conflito, as pessoas começam a viver melhor, investem nos seus negócios, e isso começa a gerar receita, gerar renda, gerar emprego e criamos um círculo, no meu modo de ver, virtuoso.

Isso que nos anima a prosseguir no trabalho. Essa questão que você coloca dessa colisão entre a terra e os movimentos sociais, eu sei que existe isso, é nesse ponto que a gente trabalha, mas não é o que me motiva, na verdade. O que nos motiva é a tentar construir soluções adequadas e com outro olhar para esse tipo de problema social.

Mais duas perguntas. Inevitável, me parece, esse processo gerar uma forma de empatia. O senhor mesmo, na Britanite, chegou a comentar que gostava do café sem açúcar, quer dizer, conhece as pessoas nas suas casas, toma café, conhece a situação legítima e impactante de grande contingente de trabalhadores brasileiros. E como o senhor se sente assim nesse trabalho que às vezes também tem que ir na mesma área dar notícia de que não há mais saída de negociação, como aconteceu na Tiradentes II? Como isso impacta o senhor? Desculpa se a pergunta parecer muito pessoal.

Não, não tem problema nenhum. Foi muito gratificante esse meu trabalho, essa identificação com essas pessoas que, de alguma maneira, depositam as suas esperanças nos trabalhos da Comissão. Isso é muito gratificante. Por outro lado, eu sempre fui muito franco durante a nossa atividade.

Eu nunca prometi uma solução. Eu prometi muito trabalho para criar uma solução de consenso. E nas visitas que nós fazemos nós deixamos muito claro que a nossa presença ali não significa em absoluto que as pessoas vão permanecer nessas áreas em conflito, até porque eu não posso prometer uma coisa que eu não posso entregar. E uma das coisas mais difíceis que eu fiz, foi justamente isso, chegar nessas áreas, que eu já conhecia, que eu já estive lá numa outra oportunidade e volto com uma outra missão, agora, o ambiente um pouco mais tensionado, vou dizer assim, para explicar a elas que a mediação cessou, que nós não temos sucesso e o caminho seria a desocupação. Se ela não for voluntária, ela vai acontecer de forma coercitiva. Isso foi uma das coisas mais difíceis que eu fiz. Eu fiz em três oportunidades, em duas ocupações urbanas aqui em Curitiba e uma rural, no interior do estado. É muito difícil, mas faz parte do diálogo franco que nós prometemos manter com com todos os envolvidos.

O senhor tem ideia do número de visitas técnicas feitas nesse período?

Rapaz, foram mais de 200.


Fernando Prazeres afirma que a visita técnica tem papel fundamental no conhecimento do contexto das comunidades. Foram mais de 200 da comissão no Paraná / Pedro Carrano

Uma última pergunta, eu não sei se dá para a gente classificar assim, mas há percepção de que nos finais de ano têm ocorrido situações de reintegração de posse. 2020, no dia 17, de dezembro, o despejo da Guaporé foi bastante traumático, e esse ano a gente tem visto algumas movimentações e hoje estamos num dia justamente de um despejo. Alguma reflexão sobre isso? Final de ano e começo de ano tem algum fator? Pergunto porque as famílias têm muita preocupação.

Até uma comissão de deputados veio conversar com o presidente do Tribunal de Justiça. Ele me convidou para participar dessa reunião e eles externalizaram essa preocupação, né? Na verdade, eu vejo isso como uma mera coincidência. Não existe nada programado para que isso aconteça nesse período do ano. São as contingências do processo.

É claro que vai da sensibilidade de quem está à frente disso permitir que essas coisas aconteçam nesses períodos de festa. Mas quando uma liminar está vigente, há uma organização toda, já é preparada, é inevitável que isso aconteça, mas é assim novamente: eu não vejo que isso seja uma política, vamos dizer, de Estado, no cumprimento dessas ordens judiciais. Eu vou debitar isso a uma mera coincidência.

Agradecer aqui o espaço. O senhor gostaria de fazer mais alguma consideração final?

Não, Pedro. Eu que agradeço a oportunidade de poder conversar com você a respeito disso. A comissão foi reproduzida em todos os tribunais do país. Os outros tribunais também têm conseguido soluções que eles não imaginavam que um dia poderiam ser construídas. E, enfim, mas é um trabalho, tem a parte gratificante, mas bastante difícil. Eu, toda vez que existe uma desocupação, pessoalmente, sofro muito, porque eu sempre acredito que a possibilidade do diálogo vai existir em qualquer, em qualquer situação. Às vezes não é possível, mas é isso. Obrigado.


Prazeres: "No início dos trabalhos da Comissão, quando existia só no âmbito do Tribunal de Justiça do Paraná, nós sofremos alguma incompreensão do alcance das nossas atividades" / Valmir Fernandes

Fonte: BdF Paraná

Edição: Lucas Botelho e Frédi Vasconcelos