ARGENTINA RESISTE

Ajuste fiscal: cada vez mais acuado, Milei ameaça convocar plebiscito que poderia ser inútil

Enxurrada de recursos judiciais ganha adesão da maior província argentina, que aponta inconstitucionalidade no decreto

Brasil de Fato | Botucatu (SP) |
Argentinos se reuném na Praça Lavalle para protestar contra o pacote de ajuste fiscal apresentado pelo governo Milei: presidente considera que protestos contrariam a vontade expressa nas urnas - Luis Robayo / AFP

Enquanto as ruas se enchem de manifestantes contra o megadecreto de ajuste fiscal, os tribunais recebem processos pedindo sua anulação e parlamentares se articulam para rejeitá-lo, o presidente Javier Milei ameaça convocar um plebiscito para tentar obter apoio da população às medidas anunciadas por ele, uma estratégia de democracia direta que poderia se revelar inútil nesse caso, uma vez que a Constituição prevê que apenas o Congresso pode convocar uma consulta popular vinculante, ou seja, cuja decisão teria de ser acatada obrigatoriamente.

Mais de uma dúzia de recursos judiciais já foi apresentada para tentar barrar a implementação das medidas de ajuste fiscal. Um dos mais relevantes é da Província de Buenos Aires, que pleiteia a nulidade absoluta do Decreto de Necessidade e Urgência (DNU) 70/23, por inconstitucionalidade, e que seja ordenada uma proteção cautelar, suspendendo imediatamente os efeitos do megadecreto.

O pedido está sob responsabilidade do juiz federal de La Plata, Alberto Recondo, que possivelmente terá que emitir decisão antes da sexta-feira, quando o DNU entra em vigor. Se ele suspender o DNU, a Casa Rosada deve apelar da decisão, levando o caso à Câmara Federal de La Plata. Ao fim a ao cabo, a batalha final deve ocorrer na Suprema Corte.

"A decisão do presidente de modificar aproximadamente 300 leis de conteúdo múltiplo e heterogêneo, algo expressamente proibido pelo artigo 99 da Constituição Nacional, nos coloca diante de uma situação institucional grave, inédita, excepcional para um dos pilares de nossa Constituição: a forma republicana de governo", argumenta Guido Lorenzino, defensor do Povo da Província de Buenos Aires. Seu recurso tem peso porque representa o maior distrito da Argentina e 40% da população nacional.

Plebiscito

Nesta terça-feira (26), Javier Milei ameaçou convocar um plebiscito "para que o povo decida" caso sua vontade encontre resistência social e institucional. Seu argumento: sua proposta consiste em "um choque libertador, anticasta" e em uma "mudança cultural" para que a Argentina "deixe de estar doente de socialismo".

Apesar das divergências em relação ao conteúdo do DNU, os diferentes campos políticos da oposição concordam numa crítica ao governo: de que a iniciativa de revogar as leis por decreto dá as costas ao Poder Legislativo. "Que parem de mentir para as pessoas", respondeu Milei a respeito. "(Mauricio) Macri e Cristina (Kirchner) assinaram muitos DNUs, mas eu não posso".

Na Casa Rosada, existe um entendimento de que a oposição no Congresso poderia chegar a um acordo para rejeitar a iniciativa, o que seria um golpe duro para o governo. Sem falar na possibilidade de um revés judicial, que poderia ocorrer mais rapidamente.

A Constituição prevê que apenas o Congresso pode convocar um referendo vinculante. Consultas populares convocadas pelo Poder Executivo só podem ser não vinculantes, ou seja, mesmo que o governo ganhe, isso não se traduziria em normativa concreta, não se aplica obrigatoriamente. Durante a campanha, Milei já havia proposto esse mesmo mecanismo para revogar a Lei da Interrupção Voluntária da Gravidez, à qual se opunha. Na época, vários constitucionalistas já haviam apontado que havia esse limite.

Manifestações

No final da manhã desta quarta (27), a CGT (Confederação Geral do Trabalho), maior central sindical da Argentina, juntamente com a Unidade Piqueteira, a União de Trabalhadores e Trabalhadoras da Economia Popular (Utep), a Corrente Classista e Combativa e partidos de esquerda, entre outras organizações sociais, políticas e sindicais, começaram a ocupar a Praça Lavalle, em frente ao Palácio dos Tribunais, no centro de Buenos Aires, para manifestarem repúdio ao decreto de Milei.

Com a palavra de ordem "Abaixo o DNU", a concentração foi convocada pela CGT com o objetivo de conferir mais peso à sua representação judicial, assim como outras que já foram apresentadas — mais de uma dúzia — com o intuito de frear o alcance do decreto presidencial.

Diante da massiva mobilização esperada, o governo ameaça lançar mão dos mesmos recursos já utilizados na semana passada durante os primeiros protestos de rua contra Milei: protocolo anti-bloqueio de vias, operação policial desmedida e retirada de direitos dos cidadãos. Segundo o porta-voz da Presidência, Manuel Adorni, serão implementadas "todas as medidas de dissuasão" idealizadas pelo Executivo.

Questionado sobre o direito de se manifestar, que entrou em contradição com o protocolo da ministra da Segurança Patricia Bullrich, Milei disse: "Em 16 dias de governo, já serão três as marchas. Não podem aceitar que perderam? A sociedade escolheu outra coisa, que outro governe com outras ideias, com outra visão de mundo".

 

Com informações do Página 12 e La Nación.

Edição: Rodrigo Durão Coelho