Brasil, 1985. Últimos anos de Guerra Fria, generais desgastados, pressões pela convocação de uma Assembleia Constituinte. Os militares, que por duas décadas tiveram influência sobre o conjunto das políticas de Estado, estavam prestes a ver suas atribuições reduzidas aos assuntos de Defesa.
Sem forças para barrar a redemocratização, o alto escalão das Forças Armadas tentou, por várias frentes, preservar ao menos parte de seu poder fora da caserna.
Um dos projetos elaborados à época, com outra finalidade, garante hoje que bilhões de reais para obras e atividades de infraestrutura, logística, educação, saúde e assistência social em 783 municípios sejam alocados no Ministério da Defesa (MD). A pasta possui um departamento específico para gestão dos repasses, coordenado por um general de divisão nomeado por Jair Bolsonaro (PL). São 1.354 convênios em execução com estados e municípios, com montante total de R$ 2,99 bilhões, e um vasto histórico de irregularidades desde os anos 1980, que o MD não tem se mostrado capaz de prevenir.
Esta é a primeira matéria de uma série sobre o Programa Calha Norte (PCN), que descreve como seu propósito se modificou ao longo dos anos, contribuindo para ampliar a presença das Forças Armadas na Amazônia e legitimá-las regionalmente.
Segurança e desenvolvimento
A política da ditadura para a Amazônia baseou-se no binômio "segurança" e "desenvolvimento", combinando elementos de assistência à população civil com uma perspectiva de segurança armada e defesa do território. A baixa densidade populacional, especialmente próximo às fronteiras, era vista com preocupação pelos militares, que incentivaram a ocupação e exploração dos bens da floresta por brasileiros de outras regiões.
"A ideia de articular segurança e desenvolvimento, com essas características, é da Guerra Fria, da guerra de contrainsurgência. Foi um modelo que os franceses desenvolvem a partir das experiências na Argélia e no Vietnã, e que os Estados Unidos – a partir do Vietnã também, e do apoio que começam a dar a todas as forças contrarrevolucionárias no mundo – aprendem e levam adiante nos anos 1960", explica Thiago Rodrigues, professor no Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Sob essa perspectiva, a ausência de desenvolvimento e de integração da economia local tornaria a população amazônica suscetível a propostas alternativas e anticapitalistas, o que justificaria maior presença militar na região, com investimentos em infraestrutura e serviços básicos. "Isso se conecta com as origens positivistas da República brasileira e com a compreensão, desde o final do século 19, de que os militares brasileiros são uma força 'civilizatória', e não apenas de segurança", acrescenta Rodrigues. O professor lembra que, nesse contexto, "as noções de progresso e desenvolvimento são sempre baseadas no parâmetro ocidental".
Em 1970, o projeto Radar da Amazônia (Radam) coletou dados sobre recursos minerais, vegetação e uso da terra da Amazônia e áreas adjacentes da região Nordeste, onde seria inaugurada em 1972 a Rodovia Transamazônica (BR-230). A construção dessa estrada, assim como da BR-174, que liga Manaus (AM) a Boa Vista (RR), da BR-163, que liga Cuiabá (MT) a Santarém (PA), e da hidrelétrica de Tucuruí, no Rio Tocantins, eram parte do Plano de Integração Nacional do general Emílio Garrastazu Médici, que expulsou povos indígenas e comunidades tradicionais e jamais obteve os resultados prometidos.
O projeto Calha Norte, por sua vez, nasce por meio de um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) em 1985, já sob governo José Sarney. O objetivo era enfrentar o "vazio de poder" entre os rios Solimões e Amazonas e o traçado de fronteira entre o Oiapoque (AP) e Tabatinga (AM), na tríplice fronteira Brasil-Colômbia-Peru, dotando a região de instalações militares e infraestrutura de transporte aéreo e terrestre, entre outros serviços. A exposição de motivos foi assinada pelo general Rubens Bayma Denys, então secretário-geral do Conselho de Segurança Nacional e ministro-chefe do Gabinete Militar.
"A Bertha Becker, renomada professora da UFRJ [falecida em 2013], dizia que o Calha Norte era o último dos grandes projetos da ditadura. Ele tinha essa marca, essa ideia de vivificar as fronteiras, e também havia grande preocupação com a possibilidade de infiltração comunista na região", observa Adriana Aparecida Marques, pesquisadora do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
A Amazônia era vista pelos militares como uma área isolada do centro econômico e político e, portanto, sujeita a dissidências e à captura por agentes externos. Por meio de pelotões e unidades militares, prometia-se estimular outras atividades econômicas nas áreas de fronteira, como estratégia de ocupação.
"Não pega bem falar que é um projeto militar, por isso a concepção é sempre de um projeto civil, mas com aplicação militar, execução militar, ou que atenda os preceitos militares", analisa Samuel de Jesus, professor do Grupo de Estudos de Política Internacional da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). "Essa é uma característica do Calha Norte, mas também do Sistema de Vigilância da Amazônia [Sivam, a partir da década de 1990] e do sistema de monitoramento terrestre", completa.
O projeto Calha Norte foi elaborado sob sigilo, sem participação social. O relatório final do GTI é de dezembro de 1985, mas os brasileiros – incluindo os moradores da região e o próprio Congresso Nacional – só tomaram conhecimento meses depois, após o documento ser vazado por servidores da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
Retórica anti-ONGs respaldou retomada do programa
Os dois primeiros anos foram dedicados à construção e ampliação de quartéis, aeroportos e bases navais na tríplice fronteira. A partir de 1989, o aporte de recursos caiu drasticamente, e só voltou a crescer no final do governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB).
Um dos impulsos à retomada do projeto, rebatizado em 1995 como Programa Calha Norte (PCN), baseou-se nos trabalhos de uma Comissão Especial Mista do Congresso Nacional da qual fazia parte o então deputado Jair Bolsonaro. O discurso anti-ONGs, que caracterizaria sua passagem pela Presidência da República, já era explícito há quase 30 anos.
Bolsonaro dizia que os indígenas eram "massa de manobra" de organizações internacionais e defendia maior presença do Exército na Amazônia e redução da terra indígena Yanomami. No relatório final da Comissão, o envio de militares à região é citado como "um ótimo 'anti-vírus' para qualquer ação de ONGs que queiram falar ao povo indígena".
Autor do livro "Esperando os bárbaros: geopolíticas da segurança no Brasil do século XXI", o geógrafo Licio Monteiro explica que os militares se projetam no espaço localizando quais são os elementos de ordem e de desordem. "Eles partem da ideia de que o Brasil está ameaçado, de um lado, por traficantes de drogas, guerrilheiros; de outro, por potências estrangeiras, pela cobiça sobre a Amazônia. Como não há ameaça de exércitos francês, inglês ou norte-americano na Amazônia, eles projetam essa ameaça a um agente interno, e as ONGs são vistas nesse lugar de desordem, de cooptação de indígenas", afirma Monteiro, que também é professor adjunto de Geografia Política e Geopolítica da UFRJ. "O curioso é que, para eles, o garimpeiro, mesmo que ilegal, ocupa outro lugar: o da ordem, do desenvolvimento".
Ao final dos trabalhos, os parlamentares pediram ao governo FHC a elevação do orçamento do PCN – estimado em R$ 4 milhões em 1997, o que incluía atividades tão diversas como a implantação de aeródromos, construção de centrais de telecomunicações, distribuição de material escolar, criação de polo madeireiro e de pesquisa de produtos farmacêuticos.
A Amazônia como laboratório
Após a criação do Ministério da Defesa, em 1999, em substituição ao Estado-Maior das Forças Armadas e aos Ministérios Militares, o PCN se desdobrou em duas vertentes: civil ("desenvolvimento regional") e militar ("soberania e integridade territorial"). No ano seguinte, o orçamento do programa saltou de R$ 1,2 milhão para R$ 24 milhões. O incremento coincidiu com o anúncio do Plano Colômbia, de combate ao narcotráfico, com apoio dos Estados Unidos.
A realidade do PCN muda de patamar definitivamente em 2003, quando passa a contar com recursos provenientes de emendas parlamentares. Até hoje, deputados e senadores definem os municípios e as obras a serem realizadas; ao programa, cabe "acompanhar a gestão do recurso público, monitorar a execução dos projetos e aferir se os recursos estão sendo aplicados conforme a finalidade aprovada".
Concebido para atender apenas áreas ao norte do rio Amazonas, o PCN passou a abranger o sul da bacia em 2006, chegando a 32% do território nacional – 194 municípios, dos quais 99 fora da faixa de fronteira (150 km de largura ao longo das fronteiras terrestres). Nos dois primeiros mandatos de Lula (PT), os investimentos anuais no programa aumentaram de R$ 42,4 milhões para R$ 376,7 milhões.
"Municípios e estados passam a recorrer cada vez mais ao Ministério da Defesa para ter recursos para asfaltamento de rua, construção de escola, posto de saúde, etc", relembra o professor Licio Monteiro. "Inicialmente, isso chegou a ser compreendido como uma forma de 'civilizar' a verba da Defesa. Depois, vendo o que aconteceu, entendemos que o que houve foi a militarização da intervenção social, desempenhando, de certa forma, um papel de 'relações públicas' das Forças Armadas dentro da Amazônia".
Além de obras, em territórios com infraestrutura precária como São Gabriel da Cachoeira (AM) ou Santa Rosa do Purus (AC) a vertente militar inclui ações cívico-sociais, por meio das quais as Forças Armadas oferecem tratamento médico-odontológico, entre outros serviços. "É uma forma ainda mais incisiva de ganhar legitimidade social no âmbito amazônico. Ou seja, estar presente no território para dissuadir atores não estatais", analisa Monteiro, acrescentando que a Amazônia funcionou como "laboratório para um Brasil militarizado".
A legitimação da presença dos militares também ocorre no interior das terras indígenas. "Em uma situação de grande dificuldade, as pessoas tendem a valorizar quando alguém oferece socorro. Comunidades indígenas diretamente beneficiadas por essas ações acabam valorizando e fazendo uma avaliação pessoal da situação, e isso às vezes dificulta uma leitura mais crítica e mais ampla sobre os impactos gerados", relata Chico Gunther, integrante do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Os impactos a que ele se refere serão detalhados na próxima reportagem desta série.
Em 2013, com a reestruturação do MD, foi criado o Departamento do Programa Calha Norte (DPCN), ao qual compete "planejar, executar e coordenar as atividades relacionadas à execução orçamentária e financeira do Programa"; "celebrar convênios e contratos de repasse com Estados e Municípios para aplicação dos recursos"; "realizar ações de acompanhamento, de apuração de danos ao erário e de ressarcimento dos recursos da União, quando necessário, referentes aos convênios e aos contratos de repasse"; e "planejar, celebrar e supervisionar as atividades relacionadas a convênios realizados por meio de contrato de prestação de serviços". O atual diretor do departamento, desde o primeiro ano do governo Bolsonaro, é o general de divisão Ubiratan Poty.
Entre 2014 e 2016, o número de convênios vigentes passou de 292 para 457, e os valores quase triplicaram – de R$ 170 milhões para R$ 485 milhões. Hoje são 1.354 em execução, com montante total aproximado de R$ 3 bilhões e um ritmo de assinaturas superior a um por dia desde 2016.
Jair Bolsonaro priorizou a liberação de emendas para o Ministério da Defesa desde o início de seu governo. Já no primeiro semestre de 2019, o capitão reformado garantiu R$ 150 milhões para a pasta, dos quais 98% foram destinados ao PCN.
Thiago Rodrigues, professor da UFF e coordenador do grupo de pesquisa Segurança e Defesa nas Américas, ressalta que a lógica securitária se mantém preponderante na ocupação da região Norte do Brasil, independentemente de governos.
"O fato de a faixa de atendimento do Calha Norte estar se expandindo para fora da linha de fronteira mais imediata é só o reforço de que esse modelo de segurança e desenvolvimento foi o escolhido pelo Estado brasileiro para lidar com uma região de vastidão territorial, de baixa densidade demográfica e de muita preocupação em termos de controle soberano do território", analisa.
Ainda segundo o professor, embora tenham sido evidenciados durante o governo Bolsonaro, o favorecimento a madeireiros e mineradores ilegais e os conflitos com povos indígenas por conta da ocupação e exploração desses territórios não são uma novidade na região. "A lógica predatória e a lógica assistencialista, de desenvolvimento, coexistem no espaço amazônico. Não é uma invenção de Bolsonaro. É uma sobreposição que sempre existiu, mas que ficou mais evidente no governo Bolsonaro porque recebeu uma chancela praticamente oficial", completa.
Ao todo, nos últimos 10 anos, o PCN investiu mais de R$ 3 bilhões. Para 2023, a Lei Orçamentária Anual (LOA) previu R$ 529 milhões apenas para despesas da vertente civil. Na delimitação do escopo, o MD elegeu as obras de engenharia como prioritárias.
"A pergunta é: por que não esses municípios da Amazônia acessarem esses recursos por esses outros ministérios, sem fazer esse lobby via Ministério da Defesa?", questiona o professor Licio Monteiro. "Tem uma importância simbólica que esses recursos sejam acessados através do MD. É uma forma do Exército e das Forças Armadas estabelecerem vínculos com os municípios e estados", reforça o geógrafo.
Hoje, o PCN está presente nos 9 estados da Amazônia Legal (Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e parte do Maranhão) e em Mato Grosso do Sul, totalizando 783 municípios. A área engloba mais de 80% da população indígena e quase 3/4 do território nacional.
Do ponto de vista militar, há 6 brigadas de infantaria de selva, no Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia e Roraima; um Grupamento de Engenharia, com batalhões no Acre, Rondônia e Roraima, encarregado da infraestrutura dos quartéis, construção e manutenção de estradas; e 23 Pelotões Especiais de Fronteira (PEFs), com mais de mil militares só na região conhecida como "Cabeça do Cachorro", na fronteira com Colômbia e Venezuela.
Driblando o veto ao orçamento secreto
Hospitais, unidades militares, estradas, escolas, obras de saneamento. O pretexto de "fixar o homem à terra" e povoar as fronteiras é evocado há décadas para justificar repasses para ações que ultrapassam a concepção clássica de Defesa por meio do Calha Norte. Sob a presidência de Bolsonaro, esse leque de possibilidades permitiu ao programa cumprir um papel menos nobre, na articulação entre o Executivo e o Legislativo.
Irrigado pelo orçamento secreto, o caixa do Calha Norte dobrou de tamanho entre 2020 e 2021 e passou a atender particularmente redutos eleitorais de aliados daquele governo. Conforme apuração do jornal O Globo, de um pacote de R$ 588 milhões do orçamento secreto administrado pelo Ministério da Defesa, R$ 401 milhões atenderam a 11 senadores, a maioria governistas.
Uma investigação do portal Uol, publicada em setembro de 2023, revelou como o governo Bolsonaro usou ao menos R$ 1 bilhão do caixa da Defesa nos dois anos anteriores para beneficiar parlamentares aliados, que direcionaram verbas a seus redutos eleitorais via Calha Norte. O general Poty, diretor do DPCN, admitiu o caráter político da distribuição de verbas – veja o que disseram ao Uol o MD e os parlamentares beneficiados.
Em 3 dezembro de 2021, um mês após decisão liminar da ministra do Supremo Tribunal Federal (STF) Rosa Weber suspender o orçamento secreto, o general Braga Netto (PL), à época ministro da Defesa, enviou ofício ao Ministério da Economia solicitando incremento de recursos para o PCN. O então ministro Paulo Guedes concedeu R$ 328 milhões, repassados ao programa após aprovação do Congresso.
Na mesma semana, Weber voltaria a liberar o orçamento secreto, desde que o Congresso divulgasse os nomes dos parlamentares "padrinhos" das emendas.
Braga Netto deixou o cargo de ministro em março de 2022 para se candidatar a vice-presidente na chapa de Bolsonaro. Porém, o mecanismo de repasses via Calha Norte se manteve na gestão seguinte, segundo a reportagem do Uol. Novamente, a injeção de recursos no Calha Norte ocorreu em reação à proibição do orçamento secreto pelo STF – desta vez em definitivo, em 19 de dezembro de 2022. Dez dias depois, às vésperas da posse de Lula, o ministério de Guedes autorizou mais R$ 703 milhões para o PCN, também distribuídos a parlamentares do Centrão. Os mais beneficiados foram Davi Alcolumbre (União Brasil-AP), Mecias de Jesus (Republicanos-RR), Omar Aziz (PSD-AM) e Chico Rodrigues (PSB-RR).
Interesses em jogo
"No governo Bolsonaro, sobretudo na gestão Braga Netto, através das emendas do relator, houve praticamente uma monopolização do orçamento para a Defesa", relembra o professor Samuel de Jesus, da UFMS. "Isso é um projeto. Não é à toa que o MD teve nos últimos anos um orçamento fabuloso, e por meio do Calha Norte esses recursos foram distribuídos entre os deputados. Quando Bolsonaro deixa a distribuição de verbas do orçamento para a Câmara, se estabelece um pacto, que também é parte de um projeto de manutenção dos militares no poder", reforça.
Curiosamente, Bolsonaro mantém e radicaliza a tendência de fortalecimento da vertente civil do programa, legado dos primeiros governos PT. "A expansão do Calha Norte no último governo [Bolsonaro] não está relacionada à expansão de unidades militares, mas a um processo de militarização da política", interpreta a pesquisadora Adriana Marques.
"Quando os militares assumem tarefas que não são da área de Defesa, não é porque os ministérios da Saúde ou os demais não assumem suas responsabilidades. O que acontece é que eles têm suas responsabilidades capturadas por outra instituição. Isso significa que mais recursos são destinados às Forças Armadas, para que elas executem essas tarefas", completa a professora da UFRJ.
O Brasil é o 17º país do mundo que mais gasta com a área de Defesa – sem que haja conflito externo – e o 1º da América do Sul, conforme levantamento do Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo. Em 2024, o valor do Orçamento destinado ao MD aumentará de R$ 122,6 bilhões para R$ 126,1 bilhões. A cada R$ 10 despendidos pelo MD, em média R$ 8 são referentes à folha de pagamento.
Um levantamento do jornal O Estado de S. Paulo mostrou que 1,6 mil militares receberam mais de R$ 100 mil por mês no primeiro semestre de 2022, incluindo o ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello. Em alguns casos, como o do coronel James Magalhães Sato, lotado no Exército, o pagamento líquido em um único mês superou os R$ 600 mil.
"A gente teve grande penetração securitária interna na ditadura militar, com as Forças Armadas coordenando a repressão interna, e depois da Constituição de 1988 há um deslocamento: a parte civil aprofunda-se muito, e a parte de Defesa fica estagnada", contextualiza Thiago Rodrigues, coordenador do grupo de pesquisa Segurança e Defesa nas Américas da UFF. "Os grandes projetos do campo de Defesa – submarinos nucleares, caças de fabricação brasileira, ou a ideia de ter porta-aviões, blindados brasileiros, por exemplo – caminham a passos muito lentos ou são interrompidos, enquanto as funções civis continuam crescendo."
As funções civis, nesse caso, são serviços básicos que vão desde a abertura de poços artesianos, atendimento médico, vacinação, transporte de pessoas em regiões remotas, até a construção de estradas, pontes, viadutos, etc.
"É difícil justificar perante a opinião pública grandes investimentos em Defesa se o Brasil não tem inimigos internacionais. Então, com a ampliação dessas funções, as Forças Armadas ganham um ponto de justificativa para sua própria existência, e ao mesmo tempo vão alimentando interesses corporativos e individuais – não necessariamente por conta de corrupção, mas pela própria existência de cargos, oportunidades de promoção, deslocamentos territoriais que vão implicar em aumento de salários", exemplifica o professor da UFF.
A sequência desta reportagem descreve impactos socioambientais da presença militar na Amazônia, cita indícios de irregularidades na execução de convênios e debate os limites do terceiro governo Lula diante do desafio de prevenir ingerências das Forças Armadas sobre a política.
Outro lado
Por meio de sua assessoria de imprensa, o Ministério da Defesa informou à reportagem que o PCN evoluiu e ganhou "importância, reconhecimento e consistência" ao longo das últimas três décadas e meia.
Sobre o histórico de auditorias e investigações que apontam problemas nas contas de convênios realizados por meio do Calha Norte desde 1994, o MD afirma que "o PCN tem recebido com atenção as orientações emanadas pela Corte de Contas, adotado as ações corretivas necessárias de sua competência e buscado aperfeiçoar o seu papel de também contribuir, de forma eficiente, para o cumprimento de políticas públicas de interesse social em sua área de atuação".
Segundo o MD, a metodologia utilizada pelo DPCN para acompanhamento e monitoramento da execução dos projetos “envolve a realização de conferências, workshop, visitas 'in loco', exames e verificação de documentos, visando avaliar a suficiência das estruturas, funções e funcionamentos dos controles existentes". Em 2023, houve 539 vistorias presenciais, "entre preliminares (antes do início da obra), intermediárias (no decorrer da execução da obra) e finais (após a conclusão da obra)", realizadas por equipes compostas por engenheiros, técnicos e analistas administrativos.
O PCN também possui métodos de monitoramento à distância, que incluem a análise de relatórios fotográficos georreferenciados e a comunicação constante entre os engenheiros do programa e os engenheiros dos convenentes. "Essas estratégias asseguram uma supervisão contínua e abrangente dos projetos, garantindo que todas as obras sejam vistoriadas de maneira eficaz", ressalta a assessoria de imprensa do MD.
"No que tange à capacidade técnico-operacional e logística, o PCN conta, atualmente, com equipe de servidores e militares das três Forças Armadas, engenheiros e técnicos, que compõem a força de trabalho do Programa, proporcionando um acompanhamento correto e seguro da aplicação do recurso federal. Indiscutível é o reconhecimento de que a capacidade de realizar vistorias em todos os municípios de atuação dos PCN, localizados nas áreas mais inóspitas do país, está relacionada ao competente apoio que as equipes do Programa recebem das organizações militares da Marinha do Brasil, Exército Brasileiro e da Força Aérea Brasileira", acrescenta a resposta enviada à reportagem.
O MD observa ainda que "após a celebração de convênios, a Portaria Interministerial nº 424/2016, no seu Art. 7º, dispõe que cabe aos proponentes/convenentes a execução e fiscalização diária das obras, incluindo a designação de um profissional habilitado no local da intervenção, com a respectiva Anotação de Responsabilidade Técnica (ART)".
Em relação ao possível uso político do programa, por meio das emendas parlamentares, o MD informa que "a execução de qualquer projeto no âmbito do PCN é sempre respaldada em questões técnico-jurídicas e operacionais. São os parlamentares, por meio de emendas, que direcionam os recursos para projetos conduzidos pelo PCN".
Conforme a resposta enviada à reportagem, "a integração do programa com as Forças Armadas resulta em capilaridades logísticas decisivas, especialmente na execução de missões em regiões remotas e de difícil acesso. O apoio logístico e os meios de transporte fornecidos pelas Forças Armadas são essenciais para alcançar localidades sem acesso rodoviário, possibilitando a implementação efetiva das políticas públicas, operando em sinergia e agregando um valor único ao programa, especialmente na execução de projetos em áreas desafiadoras".
Por fim, a assessoria de imprensa do MD salienta que "o PCN atua em estrita conformidade com as diretrizes pertinentes, inclusive aquelas que regulamentam o relacionamento das Forças Armadas com as comunidades indígenas".
Edição: Nicolau Soares